Joana
das Flores*
É inacreditável que Neymar Junior queira presunção de inocência tendo
vazado fotos íntimas de uma mulher para dizer: "olha! ela não é santa, ela
pediu"
Não foram poucos os casos desde o uso das redes de denúncias,
constrangimentos e suicídios de mulheres após publicação de fotos e vídeos
íntimos. Quando uma mulher manda um nude ou um vídeo, a relação estabelecida
ali é com o sujeito, ou melhor dizendo com o Outro.
Para essa mulher sempre há o Outro - e Simone de Beauvoir está aí para
ser lida e relida. Mas, nem sempre esse Outro guarda relação de reciprocidade
com nós, mulheres. Em poucos minutos, as fotos e os vídeos circulam nos grupos
e ela é adjetivada de "vara pau"; "Só zoeira"; "pra
não casar", "engole tudo" e etc.
Nesses grupos e em tantos outros, os caras chegam a compartilhar o
contato das mulheres com quem saem para que os outros integrantes possam
livremente mandar mensagens, como um insuspeito “oi”, vindo de um estranho que
tenta desenrolar uma conversa. Há também o sistema de notas e tabela do que
elas fazem e não fazem. Importa dizer isso para nos darmos conta de que a nossa
intimidade, o nosso desejo, a nossa capacidade de exercer objetificação é posta
em xeque por homens como Neymar.
Facebook
Neymar Jr
Neymar Jr
O que isso significa? Que tratar de temas eróticos, mandar nudes, falar
sacanagens, demarcam um lugar fixo de mulher para o sexo e não é o lugar que
nós reivindicamos.
Neymar e muitos outros partem do pressuposto de que ao mandar nudes, ao
interpelar e assumir um lugar de igual no rito do desejo, na troca de fotos, o
sexo não é mais mediação, torna-se ação sem consentimento, porque parte não da
relação com a Outra, mas de si para si - vira uma masturbação no corpo alheio.
O gozo vem dessa opressão, do uso da força, da intimidação e do poder.
Nesse rito, o homem coloca toda a sua força, violência e incapacidade
libertária com a própria sexualidade, por isso o estupro machuca e, na maioria
das vezes, faz sangrar.
Esse ato em que impera a vontade soberana de um manifesta o anulamento
total da Outra, do desejo, do erotismo e do próprio corpo, desenvolvendo assim
uma subjetivação violenta, provocando o trauma de muitas, muitas mulheres na
rejeição do próprio corpo e sexualidade. "Um estupro é uma cicatriz em
permanente cicatrização". Esse corpo, que seria então expressão de tesão,
de liberdade, é recolocado no lugar socialmente histórico da opressão, da
submissão, do risco e da vulnerabilidade.
É como se Neymar e tantos outros dissessem: "olha quem manda"
ou “provocou agora aguenta". Não são frases ditas entre quadro paredes,
são frases clássicas do patriarcado. Neymar e muitos outros buscam naturalizar
essa violência e a forma mais predatória é pela via da moralidade, ou seja, é
preciso provar que essa mulher não é santa, é quase uma puta, ou talvez seja
uma disfarçada.
Cria-se, de toda forma, o contra-discurso da verdade soberana e mais uma
vez somos nós as abjetas, seres sem sentimento, sem vida e dignidade, na medida
em que para assegurar a sua inocência claramente requer o lugar da vítima, mas
não de qualquer vítima. É uma contradição clara, óbvia, mas encoberta pelo véu
da moralidade.
Por isso, não estranho que agora xs moralistas de plantão apontem seus
dedos rechaçando os nudes da mulher. Inacreditável que o crime de estupro seja
encoberto e reduzido ao nudes. Mais inacreditável é Neymar querer presunção de
inocência tendo vazado fotos íntimas dela, para dizer: "olha! ela não é
santa, ela pediu".
É o mesmo discurso contra mulheres que se vestem com roupas curtas. Não
estamos diante de uma situação simples, estamos diante do uso da nossa
intimidade para formação de indícios de culpabilidade contra nós. É o fim dos
tempos! Nós, Mulheres não podemos aceitar isso!
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* Joana das Flores é doutoranda em Serviço Social pela Puc/RS. Autora
dos livros "Para além dos Muros: as experiências sociais das adolescentes
na prisão" ( Revan, 2017) e "Meninas e Território: criminalização da
pobreza e seletividade jurídica" (Cortez, 2018).
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