domingo, 16 de junho de 2019

POR UMA LITERATURA SOCIAL

Juremir Machado da Silva*

Michel Houellebecq fala do que dói

Houve uma época em que o Brasil jogava futebol ofensivo e a Europa marcava. Hoje, os europeus fazem muitos gols. O Brasil joga para não perder. Europeus querem espetáculo. Compram os melhores jogadores do mundo. Mas não é só isso. Tem mentalidade na jogada. Na literatura, também mudou. Muitos brasileiros não entendem o sucesso do francês Michel Houellebecq. Afora o ranço com franceses, a questão é de padrão estético. O momento é dos grandes temas, do texto simples e da ironia. Os brasileiros continuam nos assuntos umbilicais, na frase barroca e na seriedade metafísica. Houellebecq faz sucesso por uma razão muito simples: fala do que dói em cada um, que vai da depressão aos desejos frustrados.

Cada época tem a sua forma literária. Ninguém supera Balzac, Flaubert, Stendhal, os russos e os ingleses no romance do século XIX. Só que o século XX inventou a sua maneira de fazer romances. É pior? É melhor? É diferente. Proust, Joyce e Céline são péssimos escritores do século XIX e gênios do século XX. Fazer romance do século XIX em 2019 seria como copiar a Gioconda perfeitamente e apresentar como obra original. Os escritores brasileiros dividem-se em três categorias: aqueles que ainda querem ressuscitar o realismo do século XIX, aqueles que continuam agarrados ao formalismo da primeira metade do século XX e aqueles que se acham tão geniais a ponto de prescindir de assuntos.

Vou repetir para quem interessar possa: o que conta hoje para boa parte dos leitores são os grandes temas atuais. Houellebecq capturou isso já no seu primeiro livro, “Extensão do domínio da luta”, que tratou da solidão e da sexualidade como “sistema de hierarquia social”, um mundo dividido entre os com sexo (com quem transar) e os sem sexo, a partir de critérios como juventude, beleza, fama, prestígio, dinheiro, ou seja, o “capital simbólico” de cada um. Nos livros seguintes, abordou depressão, desenvolvimento científico capaz de transformar seres humanos em pós-humanos, turismo sexual, consumismo desenfreado, isolamento nas grandes cidades, seitas esotéricas, terrorismo, gurus, fanatismo religioso, islamização da Europa, eutanásia e, em “Serotonina”, a relação entre medicina, indústria farmacêutica, realidade social e a tal da felicidade. 

Enquanto brasileiros fazem frases bonitas ou obscuras, Houellebecq mete os dedos na miséria existencial de cada um. Alguns brasileiros conseguem um pouquinho de sucesso, o chamado sucesso de estima, graças à força das máquinas pelas quais publicam, com amplo espaço nas livrarias e na mídia, o que se traduz em prêmios e até traduções, mas com vendas minúsculas. Na sua época, Sartre falava dos problemas centrais, do aborto à liberdade. Camus fazia o mesmo. O romance de 30 no Brasil esteve conectado à sua realidade. Hoje, o futebol e a literatura brasileira vivem no passado ou atrelados a esquemas ultrapassados que só levam a empates.

Alguns brasileiros roçam um bom tema, mas o estragam com o barroquismo que praticam. Ou com o esnobismo que não conseguem disfarçar. O Brasil precisa de um grande romance com este título: O Caso Intercept.
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* Escritor. Jornalista. Prof. Universitário.
Fonte:  https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/por-uma-literatura-social-1.345648 15/06/2019

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