Anselmo Borges*
1. "O
que está em crise são estruturas que formam a Igreja, que têm de cair.
Sejamos conscientes. O Estado da Cidade do Vaticano como forma de
governo, a Cúria, seja o que for, é a última corte europeia de uma
monarquia absoluta. A última. As outras já são monarquias
constitucionais, a corte dilui-se, mas aqui há estruturas de corte que
são o que tem de cair." "A reforma não é minha. Foram os cardeais que a
pediram", quando se debatia a sucessão de Bento XVI.
Quem disse
isto foi o Papa Francisco numa extensa entrevista à jornalista Valentina
Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Os temas debatidos, num
imenso à-vontade, mesmo quando difíceis e até escaldantes, foram muitos.
2. O que aí fica quer ser um brevíssimo resumo desse longo diálogo leal, onde não faltou o bom humor.
2. 1. Um
tema constante nas preocupações de Francisco: os migrantes e
refugiados. Não se pode pretender resolver os problemas erguendo muros,
como se "essa fosse a defesa. A defesa é o diálogo, o crescimento, o
acolhimento e a educação, a integração ou o limite saudável do "não é
possível acolher mais", saudável e humano." Referindo-se a Trump, disse:
"Pode-se defender o território com uma ponte, não com um muro."
2. 2.
Algo não funciona em relação à economia, que se tornou sobretudo
economia da especulação financeira: "Já saímos do mundo da economia,
estamos no mundo das finanças. Onde as finanças são gasosas. O concreto
da riqueza num mundo de finanças é mínimo." Então, o mal-estar provém
desta constatação: "Cada vez há menos ricos, menos ricos com a maior
parte da riqueza do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo
para viver."
Francisco pronuncia-se contra uma economia neoliberal de mercado. É favorável a "uma economia social de mercado".
Aqui,
eu acrescentaria: economia social e ecológica de mercado e chamaria a
atenção para as tremendas, se não insuperáveis, dificuldades para
impô-la, apesar da sua urgência em ordem à sobrevivência. Porquê? Num
mundo globalizado, os mercados são globais, mas a política é nacional ou
regional. Nesta situação, onde estão as instâncias de regulação dos
mercados? Francisco sabe disso e, por isso, acrescenta que é necessário
"procurar saídas políticas, eu não as sei dizer, porque não sou
político. Não tenho esse ofício. Mas a política é criativa. Não nos
esqueçamos que é uma das formas mais altas da caridade, do amor, do amor
social."
Em conexão e interdependência com este mal-estar global
da economia está "o maltrato do ambiente". Francisco tem sido incansável
no apelo a uma nova política para a salvaguarda do ambiente, se
quisermos ter futuro. E até pergunta: será que ainda vamos a tempo de
salvar "a nossa casa comum"? Sobre a ameaça do colapso ecológico,
escreveu uma encíclica, Laudato Sí, que fica para a História
como decisiva, propugnando o que chamou justamente "uma ecologia
integral". Neste sentido, o Vaticano acaba de avançar com uma iniciativa
ecuménica global de oração e de acção precisamente em ordem à protecção
desta nossa casa comum: durante um mês, de 1 de Setembro a 4 de
Outubro, chamado o mês do "Tempo da Criação", os cristãos de todo o
mundo são convocados para pôr em prática a Laudato Sí.
2. 3.
Sobre o narcotráfico: "É como se eu, para ajudar a evangelização de um
país, fizesse um pacto com o diabo..., ou seja, há pactos que não se
podem fazer."
2. 4. Os jovens? "Os jovens não
estão corrompidos. Estão debilitados." "A juventude corre o risco de, se
é que o não fez já, perder as raízes." E cita Zygmund Bauman, num livro
escrito em italiano com um seu assistente italiano, com o título: Nati
liquidi, nascidos líquidos, isto é, sem consistência. No alemão apareceu
com o título: Die Entwurzelten, os desenraizados, os sem
raízes. "Os alemães perceberam a mensagem do livro. Isso é muito
importante hoje: ir às raízes", o que nada tem a ver com "ideologia
conservadora." "Assumir as raízes normais, as raízes da tua casa, as
raízes da tua pátria, da tua cidade, da tua história, do teu povo..., de
... mil coisas." Por isso, acrescenta: "Eu aconselho sempre os jovens a
falar com os velhos e os velhos a falar com os jovens, porque... uma
árvore não pode crescer, se lhe cortarmos as raízes, como também não
cresce, se ficarem só as raízes."
2. 5. As
mulheres? Reconhece que a mulher "está ainda em segundo lugar... em
segundo lugar." Mas "sem a mulher, o mundo não funciona. Não por ser ela
que gera os filhos, deixemos a procriação de lado... Uma casa sem a
mulher não funciona." Há uma palavra que está a desaparecer dos
dicionários, porque "todos têm medo dela: ternura. É património da
mulher. Daí ao feminicídio, à escravidão, vai um passo, não? Qual é o
ódio, eu não saberia explicar. Talvez algum antropólogo o possa fazer."
Aqui,
o Papa Francisco que me desculpe, mas vou fazer um reparo. E na Igreja?
Ele vai repetindo que "a Igreja é feminina" e já na viagem ao Brasil
avisou: "Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão total e real,
corre o risco de se tornar estéril." Então, porquê tanta hesitação em
ordenar as mulheres como diáconos? Esse seria um primeiro passo da
abertura que se impõe.
Francisco insiste na Igreja sinodal e essa
ordenação deverá, tudo indica, acontecer já na sequência do próximo
Sínodo para a Amazónia, em Outubro.
2. 6. Sobre
os escândalos da pedofilia na Igreja. Aqui, Francisco reconhece que
também se equivoca. Equivocou-se nomeadamente no que à questão da
pedofilia no Chile se refere. E foram concretamente perguntas dos
jornalistas, "feitas com muita educação" no regresso da viagem ao Chile,
que o fizeram perceber que a informação que tinha não era verdadeira.
Estava mal informado. E não exclui que tenha havido corrupção na
informação prestada: "Nem sempre é corrupção assim... por vezes é estilo
da Cúria - sim, no fundo há uma lei de corrupção -, mas é um estilo que
é preciso ajudar a corrigir."
Concretamente quanto ao cardeal
McCarrick, a quem acabou por retirar o cardinalato e reduzir ao estado
laical, confessa: "De Mc Carrick eu não sabia nada, obviamente, nada,
nada." "O cardeal Pell obviamente que está preso e está condenado,
apelou, mas está condenado. O cardeal Errázuriz já não podia continuar,
era óbvio". Conclusão: o grupo de cardeais consultores começou por ser
constituído por nove e agora são seis. Quanto às acusações que o
ex-Núncio Viganò lhe fez, respondeu, explicando o seu silêncio na
altura: "Eu confio na honestidade dos jornalistas e disse-vos: "Estudai
vós a questão e tirai as conclusões." E o trabalho que fizestes foi
genial, e três ou quatro meses depois um juiz de Milão condenou-o."
Mas,
indo ao cerne dessa chaga que é a pedofilia na Igreja, concluiu que,
com as medidas concretas que estão a ser tomadas, a "tolerância zero" é
mesmo para implementar, salvaguardando também o princípio da presunção
de inocência: "A tarefa do padre é levar o jovem a Jesus. Com os abusos,
sepulta-o. Essa é a grande monstruosidade. Que é mais grave que tudo o
resto." Mas não se pode ignorar os números aterradores de casos de
pedofilia no mundo, a maior parte na família, também entre educadores,
no desporto, etc., que apresentou no discurso final da Cimeira no
Vaticano contra os abusos na Igreja, em Fevereiro passado.
"Evidentemente, a percentagem de sacerdotes que caíram nisto faz parte
do todo, uma corrupção mundial na pedofilia, é de terror... E por isso
quis que todos tivessem as estatísticas da Unicef, das Nações Unidas, as
mais sérias, as estatísticas sérias." "Seria importante aqui referir os
dados gerais - na minha opinião, sempre parciais - a nível global e a
seguir a nível da Europa, da Ásia, das Américas, da África e da Oceânia,
para dar um quadro da gravidade e profundidade deste flagelo nas nossas
sociedades. A primeira verdade que resulta dos dados disponíveis é
esta: quem comete os abusos, ou seja, as violências (físicas, sexuais ou
emocionais) são sobretudo os pais, os parentes, os maridos de
esposas-meninas, os treinadores e os educadores. Além disso, segundo os
dados Unicef de 2017, relativos a 28 países no mundo, em cada 10
meninas-adolescentes que tiveram relações sexuais forçadas, 9 revelam
que foram vítimas de uma pessoa conhecida ou próxima da família." Um
número aterrador, a título de exemplo, no nível global: "Em 2017, a OMS
estimou em mil milhões os menores com idade entre os 2 e os 17 anos que
sofreram violências ou negligências físicas, emocionais ou sexuais."
(Continua)-----------------
*Padre e professor de Filosofia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/confissoes-do-papa-francisco1-11061377.html?utm_term=Alfundao%2C+a+aldeia+que+ganha+nova+vida+com+imigrantes+de+turbante&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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