Maria
Arminda do Nascimento Arruda*
As políticas públicas para a área da
educação no Brasil têm enveredado por estranhos caminhos, que apontam
para vias que podem nos levar a becos sem saída: desestabilização de
projetos exitosos há décadas e a incompreensão sobre a importância do
setor educacional na sociedade. As medidas são concebidas sob a
justificativa de corrigir desvios, em nome de desígnios superiormente
esclarecidos, sem que se saiba, de fato, para que direção apontam.
Exemplos pululam e assombram o ambiente educacional brasileiro, como o
das propostas da chamada escola sem partido, do ataque ao que se
denomina equivocadamente por marxismo cultural, da Comissão Parlamentar
de Inquérito para investigar as Universidades Públicas do Estado de São
Paulo, em curso na Assembleia Legislativa, do erro em supor que as
Humanidades sejam desnecessárias e pouco úteis à formação dos estudantes
e, finalmente, no debate sobre os gastos excessivos do ensino,
especialmente do nível superior, cujo dispêndio reverte em prejuízo aos
investimentos no ciclo básico.
Paradoxalmente, tudo se passa em nome do projeto de educar as futuras
gerações, que teriam sido lesadas pelas decisões dos agentes
responsáveis pela Educação, sejam provenientes dos gestores do
Ministério da Educação, sejam originadas de escolhas dos dirigentes das
instituições de ensino. Os projetos de racionalização dos recursos, com o
objetivo de aplicá-los de modo mais coerente e justo no trato das
urgências do setor, espelham concepções puramente econômicas do debate,
por vezes totalmente aderentes à dinâmica dos mercados.
Isso é feito em franca desconsideração das fragilidades da educação,
que se desdobram em problemas que comprometem o destino da juventude e
abarcam o crescente desemprego, a marginalização social, a violência, o
assassinato de centenas de jovens na periferia das grandes cidades,
apenas para enumerar os mais visíveis. Nesse cenário de profundas
desigualdades, a problemática educacional transcende as soluções
economicistas e de gestão.
A dimensão econômica do debate – cada vez mais alardeada e envolta na
discutível aura de neutralidade que lhe confere o saber especializado –
tende a submeter a questão da educação, especialmente das universidades
públicas, a critérios puramente financeiros. Em artigo recente,
publicado no jornal Folha de S. Paulo, o
economista Sérgio Almeida, professor da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade da USP, trata dos recursos destinados às
universidades públicas no País segundo uma perspectiva altamente
econômica.(1)
Partindo da constatação da precariedade do ensino básico no Brasil, o
autor argumenta que no âmbito do “ecossistema educacional do país, em
que abundam desertos de mediocridade, as universidades públicas,
portanto, parecem oásis. A imagem é ilusória”. Em seguida se indaga: “O
que fazer, então, para melhorar a qualidade do ensino básico e
superior?”. Formulada a pergunta, passa a tecer considerações sobre as
manifestações em prol das verbas para a educação, ocorridas no dia 15 de
maio em mais de 170 cidades brasileiras e que reuniram mais de um
milhão de pessoas. A seu juízo, embora sejam “um reclame legítimo, fazem
ouvidos moucos para dois conjuntos de questões que fornecem algumas
explicações para a baixa qualidade da educação no país”.
Sem refletir mais detidamente sobre o diagnóstico construído para o
ensino público superior, cuja pretensa qualidade derivaria, segundo o
articulista, da mediocridade reinante – opinião que se situa na
contramão das estatísticas que mostram o crescimento da produção
científica brasileira nas últimas décadas -, vale a pena acompanhar o conjunto das questões referidas(2):
“Primeiro, os cortes são um sacrifício em favor do futuro… Segundo
ponto: para um país com a renda per capita do Brasil já gastamos
bastante com educação. O setor consome 6% do PIB, acima da média (5,5%)
da OCDE… O terceiro ponto: antes de pleitear mais dinheiro precisamos
aumentar a qualidade fazendo melhor uso dos recursos disponíveis”. O
segundo conjunto de questões arroladas se diferencia do anterior, dado a
sua condição de mescla de diagnóstico e proposição, atribuindo à
“estrutura de incentivos prevalecente” a responsabilidade geral das
“principais ineficiências e distorções”: “O sistema salarial de escolas e
universidades públicas estimula a mediocridade… Os efeitos perversos de
uma estrutura salarial isonômica – em que, por exemplo, professores de
medicina ganham o mesmo que os de economia -, a despeito da performance,
acabam por afastar os pesquisadores mais produtivos, que buscam
colocações na iniciativa privada… Um segundo aspecto negativo é a falta
de accountability de gestores e de governança externa. Ao
distribuir recursos para escolas e universidades, o Estado não leva em
conta os resultados apresentados…. Um outro ponto é o financiamento das
instituições de ensino superior. Nossas universidades públicas dependem
completamente das transferências do contribuinte para pagar despesas… As
possibilidades de fontes adicionais de receita são inúmeras: leilões de
espaços do campus para empresas interessadas na provisão de serviços
para a comunidade, venda de serviços de consultoria e assessoria para
empresas públicas e privadas, venda de cursos de curta duração e
palestras para aperfeiçoamento profissional, campanhas de arrecadação de
doação entre ex-alunos e empresas… Nesse redesenho do financiamento
deve-se discutir a introdução de cobrança de mensalidades”. Como se
percebe, o sentido subjacente às propostas para a educação e o ensino
superior reside numa mudança nas formas de financiamento e gestão das
instituições, de forma a ajustá-las à dinâmica dos mercados, sem que se
indague sobre o significado mais amplo e abrangente da formação das
novas gerações.
A dimensão econômica do debate – cada vez mais alardeada e envolta na discutível aura de neutralidade que lhe confere o saber especializado – tende a submeter a questão da educação, especialmente das universidades públicas, a critérios puramente financeiros
Se tomarmos esses dois conjuntos de argumentos, vê-se que o corte de
gastos do Ministério da Educação tem sido uma prática inaugurada pelos
governos desde 2015, como demonstram os orçamentos realizados. “Os
recursos globais da pasta tiveram aumento médio de 10% de 2006 a 2014,
durante os governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff… Com a
crise econômica, que fez o PIB … do país derreter 7% em 2015 e 2016, o
orçamento do ministério registrou retração acumulada de 6% de 2015 a
2018, em valores corrigidos pela inflação”(3). Desse
modo, na mesma edição do jornal, outra matéria jornalística demonstra
que o volume de recursos destinados à educação acompanhou as
dificuldades orçamentárias do país, revelando que o setor aceitou a
compressão financeira imposta. No mesmo artigo, segundo os dados
apresentados, o percentual dos gastos por alunos do nível médio no país,
tendo como referência a participação sobre o PIB per capita, está
abaixo da OCDE, respectivamente, 23% e 25% e da Coreia do Sul, país que
despende esforços ponderáveis no campo da educação, participando com
31%. Como se sabe, as mudanças educacionais da Coreia do Sul construíram
as bases das transformações e da modernização do país, revelando que os
investimentos educacionais projetaram o presente, que foi a condição da
qualidade profissional e do impulso à inovação. Nesse cenário, o Estado
sul-coreano dirigiu investimentos vultosos para a educação com o
término da guerra, apesar das múltiplas necessidades originadas do
conflito que devastou o seu território.
Em larga medida, não há como falar em qualidade do ensino na ausência
de recursos para a construção de laboratórios, aquisição de
equipamentos, existência de bibliotecas, sobretudo em face da expansão
das novas tecnologias informacionais. Os incentivos e investimentos não
são excessivos, são parte integrante das mudanças – salários defasados e
até aviltantes são maus conselheiros para o desempenho qualificado do
corpo docente. Especialmente nas universidades, é atitude iníqua
determinar qualidade de performances, ou importância relativa dos
diversos campos do conhecimento, consoante as afirmações do ministro da
Educação que afirmou o caráter dispensável das Humanidades. Quais são os
critérios seguros para determinar a relevância das especialidades? A
questão de fundo é, pois, de outra ordem: é tributária das escolhas
realizadas que estão longe da pretensa neutralidade, ou da busca por
eficiência e aperfeiçoamento da chamada governança, por mais que elas
sejam desejáveis e podem aperfeiçoar a accountability. O
governo atual, ao invés de propor medidas que planificassem a utilização
do orçamento das instituições de ensino, tornando-as mais eficientes,
optou por contingenciar aquelas universidades que, na visão do ministro,
promovem “balbúrdia” e, quando foi instado a contornar a polêmica
gerada pela declaração controvertida, realizou corte horizontal dos
recursos, sem um estudo mais detido e planejado. De fato, tendo em vista
a compressão orçamentária ao longo dos últimos anos, o
contingenciamento é proporcionalmente maior, pois incide sobre um volume
menor, levando a que o bloqueio nas universidades federais atinja 30%
das denominadas despesas discricionárias(4).
As políticas para a educação no país teimam, portanto, em desconhecer
a relação entre uma formação deficiente e desaparelhada e a nossa
gritante e corrosiva realidade, cujo equacionamento exige medidas
urgentes e o concurso de vários agentes realmente comprometidos com a
educação. Soluções ad hoc e exclusivamente econômicas serão
circunstanciais, até porque se sabe que a cobrança de mensalidades não
resolve problemas de financiamento, assim como “exigir no futuro, quando
empregados e com renda adequada (5)” que os estudantes
pobres possam ressarcir a sociedade dos custos da sua educação, é ideia
envolta em incertezas, pois não há dúvida de que é quase impossível
construir projeções em uma “sociedade líquida”, para acompanhar a
formulação do sociólogo polonês Zigmunt Bauman. A problemática do
ensino, em especial das universidades públicas, é de outra ordem:
refere-se ao papel inclusivo que elas cumprem no Brasil. Segundo os
dados da Andifes, nas universidades federais mais de 70% dos estudantes
provêm de famílias que contam com um e meio salário mínimo per capita; o
contingente da chamada população composta de pretos, pardos e indígenas
– PPI – ultrapassou 50%. A pergunta sobre o que fazer deve comportar o
reconhecimento desse contexto complexo e estridente. As informações da
Associação dos Reitores corroboram o fato de o ensino superior público
vir respondendo aos desafios da sociedade brasileira e cumprindo o seu
papel de absorver e formar estudantes oriundos das camadas populares,
democratizando o acesso. O corte dos recursos nessas instituições terá
impacto nas políticas de acolhimento dessa parcela de jovens, cujos pais
não frequentaram universidades, pois, na sua maioria, os alunos
atualmente matriculados foram os primeiros das suas famílias. Senão por
mais nada, não se apoia um setor em detrimento de outro que,
reconhecidamente, tem cumprido a missão de ampliar as oportunidades de
ingresso, em especial no âmbito das disciplinas humanísticas e
artísticas.
Quando, já na década de 1980, o educador Darcy Ribeiro afirmou que
“se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro
para construir presídios”, ele chamava atenção para a ingente escolha
civilizatória da educação. A expansão das organizações prisionais nos
últimos anos comprova o quanto essas palavras eram premonitórias e
indicativas da imprescindibilidade de formação educacional, único
caminho para contornar as desigualdades existentes e preparar a
juventude para viver e atuar nas sociedades contemporâneas, submetidas
ao ritmo vertiginoso de mudança. A intenção do Ministério da Educação de
descentralizar os investimentos nas Humanidades, especificamente nos
cursos de Filosofia e Sociologia, ignora a natureza dessas disciplinas e
descura as implicações da medida.
A concepção de que as Humanidades e as disciplinas da cultura são
apenas ilustrações dispensáveis é avessa às exigências das sociedades do
futuro, da inovação, da inteligência artificial. Estas requerem
profissionais flexíveis e ágeis, capazes de rever constantemente
decisões, aptos a encontrar soluções criativas, no contexto de uma
sociedade na qual o futuro é uma incógnita, sugerindo inexistir
projeções seguras sobre as profissões mais ajustadas à realidade que se
anuncia.
Para isso, será necessário um novo conhecimento científico, de
formato interdisciplinar, cuja apropriação social e ligação com a
prática não sejam externas à própria operação de conhecimento, atributos
inerentes às Humanidades. A vocação fundamental das Ciências Humanas
reside no compromisso com a reflexão pública, cidadã, destinada ao
coletivo e ao bem comum, princípios que embasam as sociedades
democráticas. Confunde-se, por isso, com as demandas educacionais do
novo tempo.
.
1 Sérgio Almeida. “Não basta querer verbas para as universidades”. Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 26 de maio de 2019, p 3.
2 Sobre o crescimento da produção científica brasileira, especialmente da USP: José Goldemberg. “Em busca da excelência”. In: Universidade em Movimento. Memória de uma crise. Jacques Marcovitch (org.), Com Arte, são Paulo, 217, p 79-96.
3 Daniela Brant e Paulo Saldanha. “Orçamento do MEC tem perdas reais desde 2015 após série de cortes”. Cotidiano. Folha de S. Paulo, 26 de maio de 2019, p 1.
4 Cf: Idem, ibidem.
5 Sérgio Almeida, opus cit.
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*Professora titular de Sociologia e
diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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- Editorias:
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/educar-para-o-futuro/ 03/06/2019
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