Melvil
Poupaud (à dir.) faz, em "Graças a Deus", um executivo que, quando
criança,
foi molestado por padre. "Como o filme incomoda, tentaram
proibir a sua estreia na França", diz diretor
O título
do drama "Graças a Deus" vem da declaração do cardeal francês
Philippe Barbarin durante encontro do arcebispo de Lyon com a imprensa, em 15
de março de 2016. Ao abordar o escândalo de pedofilia na diocese de Lyon, onde
foram registradas mais de 70 acusações contra o padre Bernard Preynat,
Barbarin, um dos mais altos representantes da Igreja Católica na França, disse:
"A maioria dos fatos, graças a Deus, estão prescritos".
Quando um
jornalista perguntou se o cardeal se dava conta da "violência" das
suas palavras, Barbarin alegou ter sido apenas "um erro de
linguagem". Ainda que a equipe do religioso tenha mais tarde remediado um
pouco a situação, esclarecendo que o seu "graças a Deus" expressava
"alívio" por fatos assim não terem sido reproduzidos mais
recentemente, o episódio nunca saiu da cabeça do cineasta François Ozon.
O
"faux pas" do religioso é recriado pelo diretor parisiense em
"Graças a Deus", atualmente uma das atrações do Festival Varilux de
Cinema Francês. Depois da passagem pelo evento, com exibições de hoje até
quarta-feira em São Paulo, o longa-metragem que soma um público de mais de 600
mil pessoas na França entra no circuito comercial no Brasil no dia 20.
"Como
o filme incomoda, tentaram proibir a sua estreia na França", diz Ozon, que
insistiu em usar os nomes verdadeiros do arcebispo e do padre na trama.
"Como o caso de Barbarin e Preynat é tão conhecido em nosso país, com uma
vasta cobertura na imprensa, seria hipócrita da minha parte chamar Barbarin de
Barbatin, por exemplo", afirma o diretor de 51 anos, conhecido por filmes
como "Potiche - Esposa Troféu" (2010), "8 Mulheres" (2002)
e "Swimming Pool - À Beira da Piscina" (2003).
O
lançamento de "Graças a Deus" foi garantido por decisão do juiz do
Supremo Tribunal de Paris, tomada em fevereiro último. Os advogados do padre
Preynat queriam que a Justiça impedisse a estreia do drama, alegando que a
história ia "contra a presunção de inocência", da qual o seu cliente
ainda se beneficia. Preynat só deve ser julgado no fim deste ano ou ao longo de
2020.
"Como
o padre já confessou, por meio de seus advogados, que molestou sexualmente
meninos de 8 a 12 anos, não é justificada a presunção de inocência. O fato de
nada ter sido feito, apesar de os pais das crianças terem procurado a igreja na
época para fazer a denúncia, é uma outra história. Barbarin é quem responde por
isso", diz Ozon, referindo-se ao processo judicial que o arcebispo de 68
anos enfrentou.
Em março
último, Barbarin foi condenado a seis meses de prisão por tribunal de Lyon por
ter acobertado os abusos de Preynat, padre de sua diocese, contra menores. Como
o cardeal recorre da sentença, o papa Francisco rejeitou o pedido de demissão
de Barbarin, feito logo após o julgamento, alegando também presunção de
inocência.
Aos 73
anos, Preynat só será julgado agora por ter sido acusado formalmente em 2014,
quando um ex-escoteiro apresentou queixa, sendo seguido por outras antigas
vítimas. Cerca de dez alegações de abuso cometidas pelo padre ainda não estão
prescritas. No total, desde os anos 70, o número de queixas é maior. Atualmente
suas vítimas formam um grupo batizado de La Parole Libérée (A Palavra Libertada,
na tradução literal), reunindo o testemunho de mais de 70 pessoas que teriam
sido abusadas por Preynat em Lyon.
É
justamente esse período de resgate, em que adultos molestados na infância
reabrem feridas em busca de justiça, que "Graças a Deus" cobre nas telas.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no último Festival de Berlim, o filme se
desenrola a partir da ação das vítimas - seus nomes foram os únicos trocados no
roteiro, para preservar suas identidades.
Alexandre
Guérin (vivido pelo ator Melvil Poupaud) é um executivo de 40 anos, pai de
cinco filhos, que se revolta ao descobrir que nada aconteceu com Preynat. O
padre que o molestou entre os 9 e os 11 anos, em acampamento de escoteiros,
continua na ativa. E o que é pior: ainda trabalha com crianças.
Embora o
crime contra ele esteja prescrito, Guérin decide incomodar, levando o caso à
igreja e fazendo investigação por conta própria. Ao contatar a psicóloga da diocese,
consegue marcar encontro com o cardeal Barbarin, descobrindo que a igreja
abafou os abusos de Preynat, apesar do alerta de vários pais. Para que Guérin
deixe o assunto de lado, até marcam um encontro dele com Preynat, na esperança
de que o cara a cara ponha um ponto final no assunto.
O
religioso até admite o que fez diante do executivo, mas não pede perdão. No
fim, a psicóloga presente só sugere que eles façam uma oração juntos.
"Essa noção de perdão é algo que me fascina, principalmente pela religião
católica ser fundada na misericórdia", afirma Ozon, que estudou em escola
católica.
"Sem
o pedido de perdão, o agredido é obrigado a permanecer na posição de vítima.
Mas mesmo que Preynat tivesse pedido perdão às vítimas, isso não resolveria
nada", diz o diretor. "Quando o agressor pede desculpas, a vítima
pode sentir inicialmente uma libertação. Com isso, no entanto, o que se espera
é que a vítima vire a página, como se nada tivesse acontecido. Só uma decisão
da Justiça diminui o sofrimento nesses casos."
Guérin segue
então a luta, tentando encontrar outras vítimas que concordem em testemunhar.
E, de preferência, envolvidas em ocorrências mais recentes - permitindo assim a
abertura de um processo contra Preynat. É assim que ele conhece François (Denis
Ménochet) e Emmanuel (Swann Arlaud), que levam o caso à Justiça.
Diferentemente
de "Spotlight - Segredos Revelados" (2015), filme que usou o viés da
investigação jornalística para expor casos de pedofilia cometidos por padres da
Igreja Católica em Boston, "Graças a Deus" escolhe o recorte do
impacto emocional nas vítimas. Os três homens que se tornam ativistas
confrontam problemas particulares ao tornarem seus traumas públicos.
"Para
cada filme, mesmo os de pura ficção, sempre faço pesquisa. Entrevistei
psiquiatras durante a preparação de 'Sob a Areia' [2000] e pesquisei sobre prostituição
entre estudantes para 'Jovem e Bela' [2013], entre outros. Mas nenhum filme foi
tão complicado quanto 'Graças a Deus', por lidar com dramas humanos de maior
complexidade", afirma François Ozon.
A quebra
do silêncio, segundo o cineasta, pode libertar ou destruir - muitas vezes, as
duas coisas ao mesmo tempo. "A palavra que a princípio alivia a dor é a
mesma que faz tudo desmoronar, sobretudo por acarretar problemas com os familiares,
que também são afetados", diz François Ozon, lembrando que muitas vezes
não é só a instituição da igreja que desaba. "Mas também a da família. Não
é à toa que até a pessoa mais católica começa, diante da situação, a questionar
a própria existência de Deus.".
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Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6305541/gracas-deus-sobre-pedofilia-na-igreja-leva-diretor-francois-ozon-tribunais 14/06/2019
Fonte: https://www.valor.com.br/cultura/6305541/gracas-deus-sobre-pedofilia-na-igreja-leva-diretor-francois-ozon-tribunais 14/06/2019
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