sexta-feira, 14 de junho de 2019

“Graças a Deus”, sobre pedofilia na igreja, leva diretor François Ozon a tribunais



Melvil Poupaud (à dir.) faz, em "Graças a Deus", um executivo que, quando criança, 
foi molestado por padre. "Como o filme incomoda, tentaram 
proibir a sua estreia na França", diz diretor

O título do drama "Graças a Deus" vem da declaração do cardeal francês Philippe Barbarin durante encontro do arcebispo de Lyon com a imprensa, em 15 de março de 2016. Ao abordar o escândalo de pedofilia na diocese de Lyon, onde foram registradas mais de 70 acusações contra o padre Bernard Preynat, Barbarin, um dos mais altos representantes da Igreja Católica na França, disse: "A maioria dos fatos, graças a Deus, estão prescritos".

Quando um jornalista perguntou se o cardeal se dava conta da "violência" das suas palavras, Barbarin alegou ter sido apenas "um erro de linguagem". Ainda que a equipe do religioso tenha mais tarde remediado um pouco a situação, esclarecendo que o seu "graças a Deus" expressava "alívio" por fatos assim não terem sido reproduzidos mais recentemente, o episódio nunca saiu da cabeça do cineasta François Ozon.

O "faux pas" do religioso é recriado pelo diretor parisiense em "Graças a Deus", atualmente uma das atrações do Festival Varilux de Cinema Francês. Depois da passagem pelo evento, com exibições de hoje até quarta-feira em São Paulo, o longa-metragem que soma um público de mais de 600 mil pessoas na França entra no circuito comercial no Brasil no dia 20.

"Como o filme incomoda, tentaram proibir a sua estreia na França", diz Ozon, que insistiu em usar os nomes verdadeiros do arcebispo e do padre na trama. "Como o caso de Barbarin e Preynat é tão conhecido em nosso país, com uma vasta cobertura na imprensa, seria hipócrita da minha parte chamar Barbarin de Barbatin, por exemplo", afirma o diretor de 51 anos, conhecido por filmes como "Potiche - Esposa Troféu" (2010), "8 Mulheres" (2002) e "Swimming Pool - À Beira da Piscina" (2003).

O lançamento de "Graças a Deus" foi garantido por decisão do juiz do Supremo Tribunal de Paris, tomada em fevereiro último. Os advogados do padre Preynat queriam que a Justiça impedisse a estreia do drama, alegando que a história ia "contra a presunção de inocência", da qual o seu cliente ainda se beneficia. Preynat só deve ser julgado no fim deste ano ou ao longo de 2020.

"Como o padre já confessou, por meio de seus advogados, que molestou sexualmente meninos de 8 a 12 anos, não é justificada a presunção de inocência. O fato de nada ter sido feito, apesar de os pais das crianças terem procurado a igreja na época para fazer a denúncia, é uma outra história. Barbarin é quem responde por isso", diz Ozon, referindo-se ao processo judicial que o arcebispo de 68 anos enfrentou.

Em março último, Barbarin foi condenado a seis meses de prisão por tribunal de Lyon por ter acobertado os abusos de Preynat, padre de sua diocese, contra menores. Como o cardeal recorre da sentença, o papa Francisco rejeitou o pedido de demissão de Barbarin, feito logo após o julgamento, alegando também presunção de inocência.

Aos 73 anos, Preynat só será julgado agora por ter sido acusado formalmente em 2014, quando um ex-escoteiro apresentou queixa, sendo seguido por outras antigas vítimas. Cerca de dez alegações de abuso cometidas pelo padre ainda não estão prescritas. No total, desde os anos 70, o número de queixas é maior. Atualmente suas vítimas formam um grupo batizado de La Parole Libérée (A Palavra Libertada, na tradução literal), reunindo o testemunho de mais de 70 pessoas que teriam sido abusadas por Preynat em Lyon.

É justamente esse período de resgate, em que adultos molestados na infância reabrem feridas em busca de justiça, que "Graças a Deus" cobre nas telas. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no último Festival de Berlim, o filme se desenrola a partir da ação das vítimas - seus nomes foram os únicos trocados no roteiro, para preservar suas identidades.

Alexandre Guérin (vivido pelo ator Melvil Poupaud) é um executivo de 40 anos, pai de cinco filhos, que se revolta ao descobrir que nada aconteceu com Preynat. O padre que o molestou entre os 9 e os 11 anos, em acampamento de escoteiros, continua na ativa. E o que é pior: ainda trabalha com crianças.

Embora o crime contra ele esteja prescrito, Guérin decide incomodar, levando o caso à igreja e fazendo investigação por conta própria. Ao contatar a psicóloga da diocese, consegue marcar encontro com o cardeal Barbarin, descobrindo que a igreja abafou os abusos de Preynat, apesar do alerta de vários pais. Para que Guérin deixe o assunto de lado, até marcam um encontro dele com Preynat, na esperança de que o cara a cara ponha um ponto final no assunto.

O religioso até admite o que fez diante do executivo, mas não pede perdão. No fim, a psicóloga presente só sugere que eles façam uma oração juntos. "Essa noção de perdão é algo que me fascina, principalmente pela religião católica ser fundada na misericórdia", afirma Ozon, que estudou em escola católica.

"Sem o pedido de perdão, o agredido é obrigado a permanecer na posição de vítima. Mas mesmo que Preynat tivesse pedido perdão às vítimas, isso não resolveria nada", diz o diretor. "Quando o agressor pede desculpas, a vítima pode sentir inicialmente uma libertação. Com isso, no entanto, o que se espera é que a vítima vire a página, como se nada tivesse acontecido. Só uma decisão da Justiça diminui o sofrimento nesses casos."

Guérin segue então a luta, tentando encontrar outras vítimas que concordem em testemunhar. E, de preferência, envolvidas em ocorrências mais recentes - permitindo assim a abertura de um processo contra Preynat. É assim que ele conhece François (Denis Ménochet) e Emmanuel (Swann Arlaud), que levam o caso à Justiça.

Diferentemente de "Spotlight - Segredos Revelados" (2015), filme que usou o viés da investigação jornalística para expor casos de pedofilia cometidos por padres da Igreja Católica em Boston, "Graças a Deus" escolhe o recorte do impacto emocional nas vítimas. Os três homens que se tornam ativistas confrontam problemas particulares ao tornarem seus traumas públicos.

"Para cada filme, mesmo os de pura ficção, sempre faço pesquisa. Entrevistei psiquiatras durante a preparação de 'Sob a Areia' [2000] e pesquisei sobre prostituição entre estudantes para 'Jovem e Bela' [2013], entre outros. Mas nenhum filme foi tão complicado quanto 'Graças a Deus', por lidar com dramas humanos de maior complexidade", afirma François Ozon. 

A quebra do silêncio, segundo o cineasta, pode libertar ou destruir - muitas vezes, as duas coisas ao mesmo tempo. "A palavra que a princípio alivia a dor é a mesma que faz tudo desmoronar, sobretudo por acarretar problemas com os familiares, que também são afetados", diz François Ozon, lembrando que muitas vezes não é só a instituição da igreja que desaba. "Mas também a da família. Não é à toa que até a pessoa mais católica começa, diante da situação, a questionar a própria existência de Deus.".

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