sexta-feira, 28 de junho de 2019

Ouvir a voz pública da poesia

Ronald Augusto (*)

Ilustração: Daniel Rosa dos Santos.

Divido com os leitores do Sul21 esta entrevista que eu concedi à Carolina Veloso, estudante de literatura da UFSC que prepara artigo sobre o blog A Voz Pública da Poesia, um espaço para a poesia política em tempos de desamor ao debate de ideias.

Carolina Veloso – Como surgiu a ideia de criar um blog de poesia independente?
Ronald Augusto – Não é um blog de poesia independente. É um blog cuja pretensão é apostar na poesia política. Um espaço para o exercício de uma dimensão do fazer poético que não teme a imersão radical e crítica no presente nem a parcialidade de situar-se em termos históricos e políticos. Nos últimos cinco anos a vida político-social brasileira deu uma guinada desconcertante para a direita mais absurda possível, isto é, aquela que, ao mesmo tempo, consegue ser burra e violenta. Quando isso começou a tomar forma (digamos que do impeachment de Dilma pra cá) comecei a perceber que muitos poetas se mostravam soberanamente indiferentes aos sinais do que iniciava a surgir, era como se usassem luvas de pelica; seguiam fazendo seus poemas tão inofensivos quanto poeticamente corretos. Então, numa tarde de domingo, em conversa com amigos, falei sobre a minha indisposição com esses poetas isentões, fleumáticos diante do estado de coisas em que estávamos e estamos mergulhados; aventei a possibilidade de fazer algo, tamanha era a minha indignação. No mesmo dia, já no fim da tarde, criei a página no FB. Na manhã seguinte nasceu o blog.

CV – Como funciona a organização do blog e a seleção dos colaboradores/poesias? 
RA – Comecei convidando poetas que também experimentavam a mesma inquietação, a mesma disposição em promover uma narrativa poética coletiva que fosse capaz de denunciar o clima autoritário e reaça que estava a surgir. Depois um poeta foi indicando outro e mais outro e a coisa começou a andar meio que por conta própria. No início havia poucas poetas, então convidei a Adriane Garcia pra fazer um chamamento às mulheres, isso também ampliou a diversidade. O critério que eu procuro seguir para a escolha dos poemas envolve conciliar o gesto poético inventivo e a contundência mais crua possível em relação ao enfrentamento político. A salvaguarda superciliosa da “qualidade literária” não me interessa; o blog se inclina mais para o hard do que para o soft da poesia. Para quem não conhece a linha do blog adianto que os poemas devem ser de luta contra a onda reacionária (racismo, machismo, homofobia, transfobia, fanatismo religioso etc) e contra o governo Bolsonaro que, afinal de contas, sintetiza tudo isso. Quando topo com um poema porreta nas redes sociais (os poetas publicam muito aí) eu chego e pergunto se posso levar para o blog. Muitas vezes nem conheço bem o poeta ou a poeta, o que vale é o poema realizar aquela combinação da qual falei linhas acima. Às vezes os poetas me enviam algo que vai ao encontro da nossa linha editorial. Já recusei bons poemas não-políticos de amigos. Não abro mão do critério combativo que pensei para o blog.

CV – Os poetas são convidados ou não há ligação entre o editor e os poetas?
RA – Como dá pra ver pela resposta acima é uma combinação das duas alternativas. O que mais me agrada é quando publico poetas que não são meus amigos, ou seja, que ainda não conheço muito bem.

CV – As redes sociais aparecem atualmente como um meio alternativo para os artistas independentes. Nesse sentido, você considera as redes sociais enquanto um importante veículo e ferramenta  para a literatura contemporânea? Principalmente, no que diz respeito as editores independentes que vão contra a corrente mercadológica das editoras “oficiais”? 
RA – Acho que sim, as redes sociais, blogs, todos esses dispositivos virtuais, são fundamentais para as atividades e reflexões tanto de poetas e escritores em busca de afirmação, como de escritores já entronizados. O mesmo vale para as grandes e pequenas editoras em suas relações comerciais e também no contato com os leitores. As grandezas nas formas de investimento são, obviamente, bem diferentes, mas todas editoras, “oficiais” ou não, precisam beber dessa água.

CV – Quem é o leitor do blog? Tem alguma ideia sobre a receptividade e alcance do blog? Já foi realizada alguma pesquisa sobre esses dados? Ou você recebe retorno dos leitores?
RA – É o leitor que gosta de poesia. O leitor que aprecia a diversidade de vozes. O leitor-cidadão que não transige com nenhuma forma de autoritarismo. Não faço um acompanhamento profissional do alcance do blog. Dou uma olhada nas estatísticas e constato que as visualizações são regulares e com bom número de leitores. Como são muitos os poetas publicados, o blog está ficando conhecido em várias regiões do Brasil e também no exterior. A professora Regina Dalcastagnè (UnB) tem se revelado uma grande entusiasta e divulgadora do blog.

CV – Você considera o blog como uma ferramenta de resistência literária?
RA – É apenas mais uma ferramenta, um veículo, um suporte expressivo adequado às condições do nosso tempo.

CV – O que te motiva a dar continuidade a esse trabalho?
RA – Desafortunadamente, o governo Bolsonaro. Enquanto a direita obtusa, de caso pensado com o fascismo, estiver dando as cartas com o suporte do ultraliberalismo, A Voz Pública da Poesia continuará sendo ouvida.
----------------
(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/
Fonte:  https://www.sul21.com.br/colunas/ronald-augusto/2019/06/ouvir-a-voz-publica-da-poesia/

Nenhum comentário:

Postar um comentário