Aos 71 anos bem vividos, o britânico John Gray
é um dos mais proeminentes pensadores do século 21. Depois de lecionar
em Oxford, Harvard, Yale e na London School of Economics, pendurou as
chuteiras acadêmicas em 2008 e se aninhou nas encantadoras termas de
Bath, junto com sua esposa japonesa, Mieko. E continuou a escrever obras
topetudas e iconoclastas (de que precisamos avidamente, nessa época de
idólatras).
Gray
não é um camaleão nem um catavento, porém tem convicções e não certezas
marmóreas. Ao longo das décadas, remou da direita para a esquerda,
desembocando no atual ceticismo pessimista. Em 2002, o livro Straw Dogs
virou best-seller, para pasmo do próprio autor, acostumado com as
tiragens parcimoniosas dos tratados filosóficos. Gray assumiu uma
auréola profética, ao prever o colapso financeiro global de 2008 e a
areia movediça do Iraque pós-guerra.
A nêmesis de Gray é, se não o progresso, ao menos o mito do progresso.
Para ele, os modernos não são mais sábios que os antigos e, nesse
sentido, todo iluminista contemporâneo não passa de um palerma. Trocando
em miúdos: enquanto não admitirmos que nossa capacidade de produzir
conhecimento não implica a aptidão de aprender com isso, estamos fritos e
mal pagos.
É instrutivo contrastar Gray com Steven Pinker, autor de O Novo Iluminismo e
um otimista: “Vivemos na primeira sociedade da história em que os
pobres são gordos.” E um cruzado contra a “progressofobia”:
“Intelectuais odeiam o progresso. Intelectuais que se intitulam
‘progressistas’ odeiam muito o progresso. Não os frutos do progresso,
veja bem: a maioria dos doutos usa um computador em vez de pena e
tinteiro, e prefere submeter-se a uma cirurgia com anestesia em vez de
sem. É a ideia do progresso que exaspera a classe loquaz – a crença
iluminista de que, entendendo o mundo, podemos melhorar a condição
humana.”
Gray dá de barato que em muitos aspectos vivemos melhor
hoje do que há 200 anos. Porém, já em 1989, espinafrou a badalada tese
de Francis Fukuyama,
segundo o qual depois da queda do comunismo a História acabara, e com
um final feliz (a democracia liberal, o Logos universal). Como se viu,
os fantasmas fedidos do comunismo e do nazismo continuam assombrando a
Europa e o mundo inteiro. E, nota Gray, a reabilitação da tortura como
técnica de interrogatório atesta que avanços são reversíveis.
O Silêncio dos Animais, que acaba de sair no Brasil, é uma continuação de Straw Dogs.
A obra têm três seções. Na primeira, o autor espia os sistemas
políticos, filosóficos e religiosos que tentam conferir significado ao
caos da existência. Na segunda, fuça as mitologias da psicanálise e a
redenção pela linguagem. Na terceira, xereta os ardis dos escritores
para urdirem uma conexão com a alma humana. Pelo caminho, interpreta um
rol de autores, alguns manjados e outros com a notoriedade do Soldado
Desconhecido. A dicção de Gray sugere um Montaigne sem a simpatia e o
humor – o filósofo britânico contempla as burradas dos semelhantes com
uma mistura de amargura e compaixão.
O título do livro deriva do
teólogo suíço Max Picard, que distinguia o silêncio dos animais e o dos
homens. Gray vai mais longe, numa extrapolação metafísica: “Destituídos
de autoimagem como a que é tão valorizada pelos seres humanos, os
outros animais limitam-se a ser o que são.”
Se a felicidade é
uma quimera perigosa, as utopias não ficam atrás: “Elas se apresentam em
muitas variedades: o jacobino, o bolchevique e o maoista, aterrorizando
a humanidade para refazê-la segundo um novo modelo; o neoconservador,
sempre em guerra para alcançar a democracia universal; os cruzados dos
direitos humanos, convencidos de que o mundo inteiro quer se tornar como
eles próprios imaginam que são...”
Nos últimos anos, com as
lacrações da neurociência, muita gente boa considerou que, de modo
irreversível, a Psicanálise estava para a Psiquiatria como a Astrologia
para a Astronomia e a Alquimia para a Química (e olhe lá). Mas Gray
admira Freud: não o cientista, mas o pensador. “O que diferencia a
terapia freudiana das anteriores e posteriores é que ele não se
candidata a curar a alma. Ao longo do último século, os conflitos da
mente passaram a ser vistos como males que podem ser remediados. Para
Freud, é a expectativa de uma vida sem conflitos que nos faz mal. Ele
aceitava que os seres humanos são animais doentios. Sua originalidade
estava em também aceitar que a doença humana não tem cura.”
Para
mim, enquanto ficcionista, é um relativo alento verificar que Gray
destaca a utilidade até epistemológica da ficção literária. Primeiro,
ele alerta: “Mesmo as teorias mais rigorosamente testadas contém erros.
As teorias que usamos são as que consideramos mais próximas da verdade,
mas não sabemos quais partes suas são verdadeiras e quais não são.”
Depois, coando Wallace Stevens e Borges, postula que, ficção por ficção,
o produto genuíno é o mais recomendável. A literatura, se não é real,
pode ser visceralmente verdadeira, coisa que a realidade é cada vez
menos.
Entre Pinker e Gray, eu fico com ambos – é que na
complexidade não há oximoros: as contradições são lógicas. E mil vezes
dois pensadores que buscam a verdade em labirintos, do que a capitulação
interesseira dos pós-modernistas (a verdade não existe, a não ser que
sejam eles a falar). Pinker escreveu: “Experimentos mostraram que um
crítico que desanca um livro é visto como mais competente do que um
crítico que elogia a obra.” Perdão, caro leitor. Como Gray recorda,
errar é humano, e continuar errando, mais humano ainda.
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*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)FONTE: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,filosofo-john-gray-exibe-pessimismo-em-o-silencio-dos-animais,70002859386
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