quarta-feira, 31 de julho de 2019

'O Reformatório Nickel', seu sétimo romance, parte de história real de internato para jovens na Flórida com histórico de abusos, torturas e espancamentos, e faz reflexão sobre o estado atual da sociedade

Colson Whitehead
 Colson Whitehead. Aos 49 anos, escritor já conquistou sucesso de público e crítica  Foto: Sunny Shokrae/The New York Times

Colson Whitehead conta história de reformatório inspirado em fatos reais 

Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo
30 de julho de 2019

Colson Whitehead está aliviado – esta terça-feira, 30, foi o último dia de uma jornada de três meses de entrevistas, eventos de lançamento e palestras sobre O Reformatório Nickel, seu sétimo romance, lançado em julho, simultaneamente por aqui, pela HarperCollins Brasil. 

O livro é o primeiro desde The Underground Railroad, história marcante de escravos no século 19 – o livro venceu dois dos principais prêmios literários americanos (National Book Award e Pulitzer), vendeu mais de um milhão de exemplares e vai virar série com a direção de Barry Jenkins (Moonlight). A expectativa, portanto, era alta, mas Whitehead conseguiu de novo. Elogiado, O Reformatório Nickel fez o autor parar na capa da revista Time, o primeiro escritor ali desde 2010, entre outros reconhecimentos.

O novo livro acompanha a história de Elwood e Turner, dois garotos negros que por motivos diversos vão parar em um reformatório, segregado, na Flórida em 1963 – o local foi inspirado na Florida School For Boys, que existiu de fato até 2011, e onde pesquisadores descobriram restos mortais clandestinos de pelo menos 100 crianças, além de um histórico enorme de abusos, torturas e espancamentos. O que Whitehead faz aqui, porém, é ficção, e sobre isso ele conversou com o Estado por telefone. 

Você diz que os dois personagens são como partes da sua própria personalidade, é isso?
Todos nós temos um lado otimista e esperançoso, e o outro um pouco mais ciente de como as coisas podem ser ruins. Na primavera de 2017, três meses depois de Donald Trump assumir a presidência, eu estava refletindo para onde o país estava indo, e para onde poderia ir, e me pareceu que o livro seria um bom jeito de abordar partes diferentes da minha personalidade. Uma que tem esperança por um mundo melhor, para meus filhos, e outra que não tem tanta certeza ou que ao menos entende que o progresso é muito lento.  

Ainda jovem, Elwood se apaixona pelos direitos civis, mas em seguida eles são retirados dele. Como você diria que essa quebra de expectativa tem a ver com o movimento dos anos 1960 e a sociedade americana?
A geração do meus pais cresceu num ambiente com discriminação racial muito severa, mas houve ganhos no período da vida deles. Mas aí você acorda um dia e entende que as coisas não mudaram. Ainda há supressão de votos, ainda há segregação em cidades diferentes, ainda há barreiras de oportunidades para pessoas negras. Nos termos do livro, na vida de Elwood e na sua adolescência, é possível ver boicotes e protestos funcionando, e pessoas se colocando por mudanças sociais efetivas. Quando ele vai para o Nickel, todas suas crenças em progresso social são testadas e frustradas. 

O livro se passa em 1963, antes de muitos desenvolvimentos importantes nessa história.
Sim, antes de Martin Luther King ser assassinado. John F. Kennedy é morto enquanto o personagem está no reformatório. Mas é um ano antes do Voting Rights Act e do Civil Rights Act (leis americanas que colocaram fim aos sistemas de segregação racial), então já houvera alguns movimentos em direção à igualdade, mas os fatos mais importantes ainda estavam no horizonte. 

No primeiro capítulo, Elwood ganha uma aposta cujo prêmio seria um conjunto de enciclopédias. Mas ele logo descobre que as enciclopédias estão vazias. Como você acha que isso se relaciona com essa discussão?
É o primeiro grande desapontamento de Elwood depois que seus pais saem de casa. É uma lição. Porque o que está nas enciclopédias é o conhecimento, e isso está sendo mantido longe dele. Assim como oportunidades e igualdade. Então é um momento em que ele tem contato com a realidade. 

Há um motivo para você ter mantido o julgamento do garoto de fora do livro (Elwood é mandado para o reformatório após uma coincidência injusta e infeliz)?
Ele não teria um julgamento real, porque ele era um garoto negro na Flórida de 1963. Então não havia sentido. 

Umas das resenhas elogiosas do livro diz que ele fala sobre a “consciência coletiva nacional de negação”. Qual a força dessa consciência na sua opinião?
Em termos da escola do livro e de locais assim, as autoridades olham para o lado e fingem que nada acontece. Em termos da realidade política, seja na fronteira com o México, seja nas eleições e na corrupção do governo, as autoridades são cúmplices no que acontece, e não há muito o que possamos fazer até a próxima eleição. Não é um fenômeno novo. 

Como a eleição de 2016 nos Estados Unidos foi importante para você escrever esse livro?
Eu tinha duas ideias para romances depois de The Underground Railroad, e na primavera de 2016 já parecia que tínhamos ido para um lugar mais terrível em termos de divisão e ódio. Eu estava questionado para onde o país estava indo, e não estava sozinho. Resolvi que com esse livro poderia examinar as forças da esperança e as forças do desespero.  

Os dois últimos romances se destacam dos seus outros livros na questão temática. Eles são uma resposta, partindo de um escritor de ficção tentando dizer algo para o mundo?
Eu escrevo para tentar entender alguma coisa sobre mim mesmo, às vezes para entender algo sobre o mundo. Às vezes, os livros são reações, às vezes não. The Underground Railroad não tinha nada a ver com onde estávamos em 2015. Mas esse livro sou eu tentando descobrir onde estamos.  

O novo livro foi muito aguardado, por conta de todos os prêmios, e então veio toda a repercussão positiva, com a capa da Time e tudo o mais. Isso muda o seu raciocínio como escritor?
Não, eu ainda tenho uma depressão leve (risos). Ainda é uma luta para colocar palavras na página. Obviamente, o sucesso é bom, mas não torna o trabalho nem um pouco mais fácil. 
Florida School For Boys
A Casa Branca. Espaço real na Flórida era local de abusos e torturas por parte do staff da escola  Foto: Meggan Haller/The New York Times

PARA LEMBRAR - Reformatório na Flórida existiu até 2011

A Florida School For Boys, conhecida como Dozier School for Boys, funcionou na cidade de Marianna (Flórida) entre 1900 e 2011, mas muitos dos seus abusos, incluindo tortura e estupros, eram conhecidos por décadas. O estado abriu uma investigação em 2009 e, em 2012, uma apuração da University of South Florida descobriu dezenas de túmulos clandestinos no local. A estimativa é que mais de 100 crianças foram mortas ali. As investigações continuam até hoje.

Trecho de 'O Reformatório Nickel':

“Aquele último verão em Tallahassee passou rápido. No último dia de aula, o sr. Hill deu a ele um exemplar de Notas de um Filho Nativo, de James Baldwin, e a cabeça do garoto entrou em ebulição. Os negros são americanos, e o destino deles é o destino do país. Ele não tinha participado do protesto em frente ao Cine Flórida para defender os seus direitos nem os direitos dos negros, grupo do qual ele fazia parte; Elwood protestara pelos direitos de todos, até mesmo daqueles que gritavam contra o protesto. A minha luta é a sua luta, o seu fardo é o meu fardo. Mas como dizer isso às pessoas? Ele ficou acordado até tarde escrevendo cartas sobre a questão racial para o Tallahassee Register, que não publicou nenhum, e para o Chicago Defender, que publicou uma. ‘Nós perguntamos para a geração mais velha: ‘Vocês aceitam o nosso desafio?’’ Tímido, não contou a ninguém e assinou sob um pseudônimo: Archer Montgomery. Soava ranzinza e inteligente, e ele só percebeu que tinha usado o nome do avô quando o viu impresso no jornal.”

O REFORMATÓRIO NICKEL

Autor: Colson Whitehead
Tradutor: Rogerio W. Galindo
Editora: HarperCollins Brasil (240 p., R$ 54,90)
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Fonte:  https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,colson-whitehead-conta-historia-de-reformatorio-inspirado-em-fatos-reais,70002947781?utm_source=estadao:ibope&utm_medium=newsletter&utm_campaign=saiba-agora::e&utm_content=link:20190731::mat7&utm_term=::::ce

segunda-feira, 29 de julho de 2019

A melancolia das baratas

Luiz Felipe Pondé* 

ilustração

A experiência de sentido na vida brota da relação com as coisas concretas

Fazer a gestão de pessoas por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas é uma boa? Sim, pensa o pequeno líder que veste ternos baratos.

O mundo corporativo é a distopia perfeita. Observando-o, você pode vê-lo com os olhos de Gregor Samsa, famoso personagem que vira um inseto em “A Metamorfose”, escrito por Franz Kafka (1883-1924), que, aliás, saiu em nova e belíssima edição pela editora Antofágica. A fortuna crítica vê nessa história de horror um libelo contra a animalização do ser humano na modernidade e sua obsessão pela produtividade e eficácia. Famosa é a passagem em que, num dos seus primeiros pensamentos, Gregor se angustia por perder o bonde e faltar no emprego. A pergunta é: tendo acabado de virar uma barata (não é dito que seja uma barata, mas é mais legal pensar que seja), você pensaria logo que perdera o emprego?

A resposta é “sim”, principalmente, se você for objeto de um gestor que dirija seu corpo de “colaboradores” (acho fofa essa expressão) por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas. 

Mas, o mais radical é pensar que, apesar de jurar que se está animalizando as pessoas em nome do aperfeiçoamento da gestão (portanto, em nome da “causa da modernidade”), esteja-se, na verdade, animalizando as pessoas, apenas, pelo simples gosto de vê-las correndo de uma lado para o outro como baratas. Sempre suspeito, como todo niilista, que o gozo estético vem antes da justificativa ética, racional ou política. 

Este é o olhar de Gregor, ver no mundo a melancolia das baratas. O “último Gregor” na novela “A Metamorfose”, o melancólico, é o Gregor mais contemporâneo de todos nós.

A filosofia do utilitarista John Stuart Mill (1806-1873), entre outros, já suspeitava que dimensões a ver com o bem-estar impactasse a vida social, moral e política —e, portanto, o trabalho. E lembremos que, sem dúvida, os utilitaristas ingleses eram filósofos radicalmente implicados com a “causa da modernidade”.

Há em John Stuart Mill quatro chaves muito interessantes que podem nos ajudar a entender o processo moral através do qual um “fazedor de humanos-baratas” realize seu objetivo. Vejamos. A ordem de apresentação não implica nenhuma hierarquia de valor entre elas.

A primeira é o terreno da racionalidade ou coerência. Tratar as pessoas com coerência ou racionalidade, fazendo elas sentirem que o ambiente em que respiram é um ambiente em que ser racional vale a pena, evita a produção de baratas. A ideia de reconhecimento dos méritos num local de trabalho passa por aqui. Reconheço o quão utópico é essa ideia de meritocracia. A esquerda não deixa de ter razão quanto aponta para este fato. É muito raro se chegar a identificação do que é, de fato, mérito, ou mesmo chegando a ele, chegar a justa aplicação do reconhecimento pelo mérito. Mas, ainda assim, Mill acerta quando diz que somos seres racionais e, portanto, a pura e simples irracionalidade e incoerência na gestão de pessoas destrói o tecido moral onde elas vivem e trabalham.

A segunda é a liberdade. Sentir-se autônomo em alguma medida e não uma barata perseguida é essencial para a vida ética numa corporação, e não apenas nesta, mas estou pensando especificamente no mundo corporativo hoje. Negar a liberdade de pensamento, ação e resposta, é valorizar a metamorfose de Gregor. Punir quem age livremente causando medo no tecido corporativo é trabalhar pela “causa das baratas”.

A terceira é a imaginação. Seres humanos que têm sua capacidade imaginativa destruída, rapidamente degeneram em baratas. O medo, a instabilidade, a irracionalidade nas decisões por conta da sua impenetrabilidade destrói a capacidade imaginativa das pessoas, negando a elas a percepção de futuro próximo. E pessoas sem essa percepção degeneram em baratas. A experiência de sentido na vida, que é uma experiência que brota da nossa relação concreta com as coisas a nossa volta, depende profundamente da nossa capacidade imaginativa. Tente você ai pensar no seu futuro, sem a possibilidade de imaginá-lo melhor do que hoje é o seu presente. Como se sentirá e qual o impacto que essa sensação negativa terá na sua participação na “causa da modernidade”, isto é, no progresso calculado da vida?

Por último, o afeto moral. Sem afeto, finalmente, nossa barata chega a melancolia. Os idiotas da gestão adoram um mundo do trabalho sem afetos.
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*Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP. 
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2019/07/a-melancolia-das-baratas.shtml 29/07/2019

‘O Papa tem uma fundação dirigida por uma pessoa que foi expulsa sete vezes do colégio’


José Cabrita Saraiva – 3 de junho 2019

Hoje – apesar do seu passado de indisciplina – José María del Corral dirige a fundação Scholas Ocurrentes, que abarca escolas de todo o tipo em 70 países e que pretende ouvir os jovens para os ajudar a resolver os seus problemas. O pedagogo e amigo do Papa foi um dos oradores das Estoril Conferences.

Nascido em Buenos Aires em 1959, José María del Corral tem um longo historial de indisciplina. Com apenas cinco anos foi expulso da creche -uma situação tanto mais vergonhosa quanto o seu pai era um prestigiado médico e veterinário, professor na Universidade de Buenos Aires, e o seu irmão um aluno brilhante. Ele, o filho mais novo, foi sempre «a ovelha negra da família».

Até que, aos 20 anos, uma experiência a cuidar de doentes num hospital da capital argentina o levou a trocar a faculdade de Ciências Económicas, onde estudava, pelo seminário. Fez-se teólogo, mas não padre, pois recusou assumir o celibato. Findos os oito anos de formação, começou a dedicar-se à pedagogia, lidando com jovens problemáticos, e construiu uma reputação nessa área. No final da década de 90, em plena crise argentina, o então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, convidou-o para ser o responsável pelo setor da educação do arcebispado.

Tornaram-se amigos. Em 2013, quando Bergoglio foi eleito Papa, José María disse à mulher para fazer as malas porque iam apanhar um avião para Roma para assistirem à entronização do amigo. A falta de dinheiro não foi obstáculo – pediram um empréstimo e pagaram a viagem às prestações. 

Hoje – apesar do seu passado de indisciplina – José María del Corral dirige a fundação Scholas Ocurrentes, que abarca escolas de todo o tipo em 70 países e que pretende ouvir os jovens para os ajudar a resolver os seus problemas. O pedagogo e amigo do Papa foi um dos oradores das Estoril Conferences.

A ENTREVISTA

Ouço dizer muitas vezes que a educação é a solução para todos os nossos problemas. Mas fala-se como se educar fosse muito fácil, quando na verdade qualquer pessoa que tenha filhos sabe que é dificílimo…
Há um tipo de educação que é difícil, se não impossível, que é tentar mudar o outro para que ele se torne diferente do que é, como às vezes pretende o sistema educativo. Ou aplicar uma receita que compramos já feita lá fora. Quando o nosso projeto nasceu há vinte anos, com Jorge Bergoglio, no meio da crise do nosso país, ele dizia:

‘Nunca vamos resolver os problemas económicos e políticos se não começarmos pela educação’. 

A questão é que para cada pessoa temos de ter uma proposta diferente. O que é adequado para uma criança de dez anos não serve para uma de cinco. Por isso, para nós, a educação é uma arte – a arte de educar. Só um artista pode educar. A segunda coisa é que a nossa proposta educativa não diz às crianças o que devem aprender.

Então como fazem?
A educação começa por escutar. O principal programa educativo é este: o ouvido. Somente aquele que tem ouvido pode educar. Temos dois ouvidos, e no entanto o sistema educativo não os usa, só usa a boca para falar. Isto [aponta para a boca] não é educação. Essa é a segunda diferença entre o sistema educativo do Papa Francisco e a educação do sistema atual.

Por isso estes sete dias em que consiste a primeira experiência do Scholas Ocurrentes, que se chama escolas da cidadania e que está presente aqui em Cascais, arrancou com jovens de escolas muito diversas – colégios privados, escolas públicas, escolas profissionais, confessionais, laicas, de diferentes estratos económicos.

Durante uma semana, em vez de cada um ir para a sua sala de aulas, vão todos juntos para o mesmo lugar, para uma aula sem paredes. E a experiência começa escutando-se os problemas. Como participam 300 jovens, são 300 problemas. Dos 300 problemas, os próprios jovens escolhem dois. Eles são tão generosos – ao contrário de nós – que são capazes de renunciar ao seu problema a favor do problema do outro.

E esse programa de sete dias é o suficiente para mudar alguma coisa?
Os sete dias são apenas o batismo. Depois eles têm a vida toda pela frente.

Que problemas emergiram em Cascais?
Em Cascais
  • designaram como principal problema a autoagressão até ao suicídio, um tema de que não se falava.
  • E o segundo problema levantado foi que a educação que lhes davam não tinha que ver com as suas vidas. A vida deles estava de um lado e a educação do outro. Isso foram dois problemas que os jovens de cá diagnosticaram – não os académicos, não os professores, mas os jovens de 15, 16 anos.
  • A terceira etapa do Scholas, depois de escutar os problemas, é ensinar a estes jovens que não têm de ficar desanimados por não se conseguir mudar nada.
Se eles são suficientemente crescidos para sair à noite e voltar para casa muito tarde, também são crescidos para propor soluções. Por isso o terceiro momento das Scholas é que, depois de terem identificado os problemas, eles mesmos encontrem as soluções. E damos como exemplo uma povoação na província de Salta [uma região montanhosa no noroeste da Argentina] que tinha uma altíssima taxa de suicídio adolescente. Hoje essa taxa é zero. 

Inventaram uma sala de cinema onde falavam sobre o que os preocupava e, com arte, pintaram uma ponte de morte [de onde saltavam muitos dos suicidas] e transformaram-na em vida. A educação na escola começa pelo ouvido, por escutarmos os problemas. É como um médico, que sabe ouvir e diagnosticar a origem da dor do paciente e a partir daí faz-se um tratamento personalizado.
  • Não tem nada a ver com a educação em massa, de exames, de notas, de médias, de avaliações. Não.
  • É como recuperar o lado artesanal da educação.
  • E apercebemo-nos de que estas soluções pontuais e locais têm um impacto global.
Dou outro exemplo. Quando fomos a Jerusalém, recebemos um convite do Instituto de Tecnologia da Universidade Hebraica, uma universidade com grande prestígio. Quando chegou a Scholas, e propôs lidar com os problemas através de pinturas, etc., a diretora disse:

‘Isto é um fracasso. Está bom para África, para a América Latina. Mas aqui, com o nível intelectual e de debate que temos não funciona’.
 
A nossa abordagem pareceu-lhe muito ingénua. Mas no final do programa escreveu uma carta que termina dizendo:

‘Desculpe, Papa Francisco, subestimámos a sua proposta. Através das artes conseguiram o que nós não conseguimos com todos os nossos debates’.

Além das artes, que outras atividades desenvolvem?
Temos três vertentes:
  • o desporto,
  • as artes
  • e a tecnologia.
Cada um escolhe o seu caminho. Porque o Scholas não pretende que um miúdo deixe a sua personalidade à porta do colégio. É o contrário: leva o colégio à rua, ao encontro dos miúdos.
Como disse o Papa,

* através do desporto o miúdo descobre que o êxito não passa só pela individualidade, como Messi na Argentina, o êxito depende de toda a equipa. Só uma equipa unida consegue ganhar, por isso o desporto é uma escola de vida.

E temos um programa de surf, um programa de futebol, um programa de boxe, e através de cada um destes desportos definimos uma estratégia educativa.

* A segunda área é a arte, porque pela arte a criança pode conectar-se com o que sente. O Papa disse que um jovem que pode exprimir o que sente através da arte, da música, da poesia, deixa de ser adicto – porque [etimologicamente] adicto é ‘aquele a quem falta a palavra’ ou a maneira de se exprimir.

* E terceiro, a tecnologia. Como disse também o Papa na [encíclica] ‘Laudato Sí’: ‘As coisas são para as pessoas, não são as pessoas que vivem para as coisas’. O telemóvel não é um deus ao qual eu presto culto, é algo que está ao meu serviço. Eu manipulo as redes [sociais], não deixo que as redes me manipulem a mim. Por isso é que vamos inaugurar agora o primeiro observatório mundial de ciberbullying.

Então não recusam a tecnologia, o progresso…
Não só não a recusamos como a promovemos. Encorajamos o uso do telemóvel nas aulas. Dizemos aos alunos: ‘Usem o telemóvel’.

E eles não o usam para jogar ou como distração?
Não podem estar sozinhos. Têm de ser coisas com conteúdo. Aos professores de línguas, pedi-lhes para criarem poemas usando também as palavras dos jovens, com os seus códigos, e fazer disso uma forma de encontro entre os mais velhos e os mais novos, através dos telemóveis.

Porque se dou o telemóvel a um dos meus filhos, ele fica a jogar indefinidamente…
Nesse caso, joga com ele.

Imagine que regressa aos seus tempos de estudante. Que problema levantaria?
Acho que nasci na época errada, porque me expulsaram sete vezes da escola quando era aluno.

Porque o expulsaram?
Por me portar mal. O Papa tem hoje uma fundação dirigida por uma pessoa que foi expulsa sete vezes do colégio. Não aguentava as aulas na minha época.
  • Quando tinha cinco anos expulsaram-me do jardim de infância.
  • Quando tinha sete, expulsaram-me da escola primária.
  • Quando tinha nove, expulsaram-me do colégio.
  • Quando tinha 12, do colégio de padres.
  • Quando tinha 15 do colégio de monjas…
Mas porquê? Batia nos seus colegas, faltava ao respeito aos professores?
Porque nunca pensei que ser um bom aluno é estar sentado, quieto e sem falar. A minha avó dizia: ‘Um miúdo quieto é um miúdo que está doente’.O nosso sistema premeia os doentes. É por isso que temos tantos miúdos doentes nas escolas de todo o mundo.

Há pouco dizia-me que os jovens daqui de Cascais se queixaram de que a educação que lhes davam não tinha que ver com as suas vidas. As crianças hoje aprendem muita matemática, muita gramática. Faz sentido?
Tenho trinta anos de experiência como docente. As crianças, quando estão a aprender, perguntam muitas vezes: ‘Para que serve isto?’. E nós, adultos, dizemos-lhes:

Não importa, um dia vais acabar por perceber’.

E uma menina, a quem disseram isso, respondeu à professora:

‘Quando esse dia vier, logo aprendo. Agora deixe-me continuar a brincar’.
  • Está muito bem aprender muita matemática. Mas só enquanto a matemática tiver sentido.
  • Está muito bem aprender História. Mas só enquanto a História fizer sentido.
  • É excelente aprender biologia ou física ou química. Mas só enquanto tiver sentido.
O que os jovens de hoje procuram é um sentido. Algo que desejem no coração.
  • E estar nas redes sociais não nos preenche.
  • Mudar de telemóvel todos os anos não nos preenche.
  • Consumir bens materiais não nos preenche.
Hoje o que os jovens nos pedem é para regressar ao fundamental, às origens, a onde havia sentido, aos mitos, aos ritos. Hoje o mais antigo é a maior inovação.

Qual é a ligação do Scholas Ocurrentes à Igreja?
O Scholas Ocurrentes não está aberto só à Igreja Católica. Tal como o próprio Papa Francisco propõe, convida toda a gente a participar. Fazem parte da rede
  • escolas judaicas,
  • escolas islâmicas,
  • ortodoxas,
  • há escolas públicas de 70 países, incluindo Dubai, Emirados Árabes, Israel, o Scholas está aberto a todos.
No primeiro ano de vida do Scholas veio um bispo católico que perguntou:

‘Por que é que o Papa gasta tanta energia no Scholas se não é só para católicos?’.
E o Papa respondeu-lhe:

‘Se um jovem estivesse a morrer no mar e tu estivesses a poucos metros, na praia, não lhe perguntavas de que religião ele era para decidires se ias salvá-lo. Atiravas-te à água, mesmo que corresses perigo de vida. É isso que o Scholas faz no mundo’.

Em Portugal há violência nas escolas, tanto de alunos contra professores como de alunos contra alunos. Com a sua experiência e o seu conhecimento, que conselho daria a um professor que se confrontasse com esse problema?
Diria que a violência é uma forma de falar. Que começasse a escutar.

Só isso?
Sim. O problema principal dos jovens no mundo é que não se sentem escutados. Não se sentem escutados
  • nem em casa,
  • nem na escola,
  • nem na política.
Por isso matam-se, agridem-se, põem bombas. Há grito maior do que esse?
É um sintoma, tal e qual como a febre, de que têm um coração vazio de sentido. É desse sentido que eles estão à procura. Por isso uma educação que não dá um sentido, como a atual, é uma educação que gera violência. Um docente que não lhes dá sentido, que só dá aulas, vai gerar violência.

Li que é amigo íntimo de Francisco. Isso significa que conhece os defeitos dele?
E que ele também conhece os meus… [risos] Sim.

Tratam-se por tu ou por você?
Por vós [o equivalente ao ‘você’ brasileiro]. Somos ambos porteños [naturais de Buenos Aires].

Como se conheceram?
Conhecemo-nos quando ele era arcebispo de Buenos Aires e eu era teólogo e pedagogo e dedicava-me aos jovens com mais problemas de disciplina. Ele conhecia a minha história, chamou-me e pediu-me que fosse responsável da educação no arcebispado. Na Argentina somos todos amigos. Eu costumo dizer que sou empregado dele há mais de vinte anos.

Portanto continuaram amigos depois de ele ser eleito.
Claro. E até mais próximos. A Scholas é uma fundação criada diretamente por decreto do Papa. Isso mostra a importância que ele dá à educação. Muitos dizem que
  • assim como João XIII ficou para a posteridade como o Papa da paz,
  • Francisco vai ficar na história como o Papa que fez a revolução educativa no mundo.
Muitos vaticanistas dizem isso.

Não é por acaso que criou o Scholas, uma fundação pontifícia para trabalhar no terreno. As outras fundações pontifícias que existem há mais tempo são para coisas académicas, para documentos. Não para lidar com miúdos, com professores e com quem anda na rua. O Papa quis meter-se nisso para dizer que o importante é o concreto, que o importante é a educação. Nenhum país vai andar para a frente se não mudar a educação. Se querem mudar o mundo, mudem a educação. Não é fazer mais do mesmo, é fazer algo realmente diferente.

E acha que essa revolução pode começar escutando simplesmente os estudantes?
Sim. E o passo seguinte é muito fácil, é ajudá-los a realizar essa mudança. Eles têm força para isso.

Sabe quem é Frédéric Martel, o jornalista francês que escreveu o livro No Armário do Vaticano?
Sim.

Ele diz que existe uma fação conservadora na Igreja que pretende afastar o Papa. Tem acompanhado essa guerra entre o Papa e os conservadores?
Temos de ver a que é que chamamos conservador. Julgo que o Papa é muito conservador, ultraconservador. Ele costuma dar como exemplo a parábola da boa samaritana. Jesus sentou-se à beira do poço para descansar e pede água à mulher. E ela pergunta-lhe:

‘Como é que tu, um judeu, me pedes de beber a mim, uma samaritana, uma mulher da rua?’.

E ele responde:

‘Se soubesses a água que eu te posso dar, tu é que me pedirias de beber, porque nunca mais precisavas de tirar água do poço’.

Essa água é o que falta aos jovens, uma água que dá sentido. É isso que o Papa propõe através do Scholas: uma educação que dá sentido, e isso é do mais conservador que há.

Martel fala de gays não assumidos, no Vaticano, que montaram um cerco ao Papa...
Mas não são conservadores! Fazem isso por outros motivos. Este Papa mexeu com muitos interesses, porque
  • reformou o Banco do Vaticano,
  • abriu a caixa-forte,
  • rompeu com muitos interesses económicos,
  • varreu a corrupção e as máfias.
Repito: é um Papa muito conservador.

Mas Martel comparou-o a Gorbachov, que tentou abrir a União Soviética e promoveu a transparência.
Eu compararia mais ao vicariato de Cristo na Terra.

Costumam falar sobre estas coisas?
Sim. Todos os meses estamos juntos e conversamos sobre tudo.

Ele alguma vez se queixou?
Ele não perde tempo com isso, nem cinco minutos. Essa é a diferença entre o Papa e os políticos. Os políticos vivem para os problemas internos, vivem de fantasmas. O Papa vive para as pessoas.
José Cabrita Saraiva
jose.c.saraiva@sol.pt

Trocando sinais

Lya Luft*

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Tenho falado e escrito sobre dramas ou alegrias no convívio humano, amigos, amores, família (que significa amor e amizade também).

A dificuldade de comunicação é uma realidade, por vezes pungente, outras até cômica, ou ainda dramática. O filho ou amigo que de repente se queixa: “Aquela vez você me disse isso, e me doeu tanto, que ainda não consegui esquecer”. Mas quando foi isso? Uns 10 anos. Cinco. Mais ainda. E a gente se espanta: “Mas que loucura! Eu jamais te diria isso! Aliás, nem uso essas palavras!”.

Um dos dois tem razão, jamais saberemos qual, pois memórias são muitas vezes fantasias, não só em crianças, em adultos também. Tudo se confunde um pouco nas névoas do tempo, análise e terapia podem mostrar isso. Quanto sofrimento por engano, quanta chateação vã.

E mesmo que a gente tenha dito aquilo, ou feito aquele gesto, ou virado as costas e ido embora, hoje já não somos aquela pessoa de anos atrás: podemos estar piores, mas muitas vezes mais mansos, mais amorosos, mais generosos, porque mais sofridos.

Mais experientes, o que em geral nos torna mais tolerantes, menos críticos. (Ou não.) Enfim, o que pretendo aqui é comentar, mais uma vez porque é sempre real e frequente, essa troca de sinais confusos, esse desencontro entre a intenção de quem dá ou faz, ou diz, e o que recebe, sente, sofre – com ou sem razão. Muito conflito assim se desenrola injustamente, tolamente, porque mal-entendidos, enganos, nos atropelam a cada hora neste labirinto numa floresta que é o dia a dia.

Além de tudo, há tantas visões do mundo, tantas interpretações dos fatos mais corriqueiros, quantos seres pensantes existem: cada um com sua disposição: cética, otimista, trágica ou indiferente. Feliz ou tristonha. No fundo, a vida é um teatro, e um cenário com muitas portas, que estavam ali – ou que nós desenhamos. Mas, aqui e ali, abrem-se para encontros que nos transformam, nos tranquilizam, ou nos servem e servirão de apoio, porto, acolhida e força. Além daqueles que nos destroem, nos fazem adoecer, nos rasgam ao meio, ou por alguns momentos nos sombreiam com surpresa e decepção.

Somos em parte vítimas, em parte autores, desse teatro simples e terno, ou louco e trágico, ou maravilhoso. Nos vestimos nos camarins, rimos ou choramos atrás das cortinas. Também vendemos entradas; às vezes, vendemos a alma.

Atropelos, tolices, dramas ou mal-entendidos, embora criados por nós, dificultam essa tarefa existencial, que precisa de resistência, calma, audácia e fervor – e de alegria, quando aprendemos a contornar as armadilhas e nos construímos, do jeito que dá, do jeito de cada um, muitas vezes com alguém.

Da mesma forma que entre amigos, família, amantes, ou meros conhecidos, todos trocamos sinais – também eu e meus amigos imaginários de agora: meus leitores. Por isso, escrevo.
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* Escritora 
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=f10d3a7ea324342072a005173557ccd8 Acesso 29/07/2019
l.letras@terra.com.br
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sexta-feira, 26 de julho de 2019

Por que temos de falar sobre terra natal

Pátria é natureza e cultura, apego e relacionamento.

O que significa "pátria" em tempos de globalização? Uma abordagem filosófica.
Ainda podemos falar em "pátria" hoje em dia? Ou o termo é ocupado por populistas que demonizam tudo o que é estrangeiro como ameaça? Talvez precisamente porque a política, as páginas de cultura e a ciência permaneceram em silêncio sobre este assunto durante muito tempo? Então precisamos urgentemente falar sobre "pátria", sem a glorificações patéticas e sem difamá-la como prêmio de consolação para os perdedores da globalização.

Os nossos antepassados escreveram histórias sobre paisagens e lugares. Derivamos destas histórias e continuamos a escrevê-las. Pátria é, portanto, natureza e cultura, origem e futuro, perseverança e mudança.
Carnaval e indústria – também isso caracteriza uma pátria. Foto da série „Heimat // Bilder“ de Matthias Burchardt
Carnaval e indústria – também isso caracteriza uma pátria. Foto da série „Heimat // Bilder“ de Matthias Burchardt

Pátria é também vínculo e relação: com tipos de pessoas, hábitos, tradições, costumes, festas, rituais, atitudes, dialeto, nomes de lugares, histórias, comidas, cheiros, sons, clima e paisagem me são familiares, formam um momento de minha identidade pessoal, na melhor das hipóteses, uma fonte de energia. As pessoas precisam desta intimidade para uma vida próspera. Pessoas desenraizadas são vulneráveis..
Banir pessoas de sua terra natal é um crime contra a humanidade. Filósofo da educação Matthias Burchardt
Algumas pessoas deixam sua terra natal e - possivelmente - encontram um novo lar em outro lugar. No entanto, isto só é possível depois de muitos anos de adaptação.  Expulsar pessoas da sua terra natal é um crime contra a humanidade, pois elas não só são privadas dos seus bens e das suas casas, também uma parte da sua identidade é roubada. A solidariedade com os sem-pátria deriva da compreensão compadecida desta perda profunda.

Mesmo quem não muda de lugar pode ser sem pátria

A pátria está em constante perigo. Guerras, perseguições políticas, crises econômicas e ecológicas expulsam as pessoas da sua terra natal. A modernização, a digitalização, a globalização, a ideologização, a mercantilização e a migração estão afastando as pessoas dos seus países de origem.
Até mesmo quem não deixa sua terra natal pode ser afetado, quando as sociedades se transformam e as tradições se fragilizam, quando a coesão social se desintegra.

Não o aconchego da terra natal, mas sim sua destruição causa radicalismo, extremismo e violência.
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Matthias Burchardt
*Dr. Matthias Burchardt é assessor acadêmico do Instituto de Filosofia da Educação, Antropologia e Educação para a Vida na Universidade de Colônia.
Foto:  Pátria é natureza e cultura, apego e relacionamento. Adobe Stock/Syda Productions 
Fonte:  https://www.deutschland.de/pt-br/topic/vida/o-que-significa-patria-e-o-que-a-ameaca 19/07/2019

“Coxinhas” de ontem, “mortadelas” de amanhã.

José de Souza Martins*
 
 "Nossa carência de consciência crítica nos faz supor que fazemos política porque somos contra os rótulos 
que colamos nos adversários".

As simplificações na definição das desigualdades sociais da população expõem a confusa pobreza do nosso entendimento das diferenças sociais que nos afligem. Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro. Sem compreender que identidade têm e o que nela personificam socialmente, isto é, como manifestam e expressam sua diversidade e diferenças.

Os nomes classificatórios que damos, sem nenhum cuidado, tanto aos ricos quanto aos pobres, não expressam senão o viés ideológico que amortece nossa consciência social. Somos bons para inventar nomes para os outros e péssimos para reconhecer e compreender a condição social que expressa os interesses que demarcam seu agir e seu horizonte, seu ser propriamente social.

Em 2018, nos embates de rua, o vocabulário pobre de nossa política expôs nossa consciência: o Brasil está socialmente dividido entre "coxinhas" e "mortadelas". Os "mortadelas" não se deram conta de que muitos "coxinhas" daquele ontem eram "mortadelas" de anteontem. Do mesmo modo que os "coxinhas" de ontem já estão a caminho de se tornar os "mortadelas" de amanhã.

Nossa carência de consciência crítica nos faz supor que fazemos política porque somos contra os rótulos que colamos nos adversários. O que não nos faz a favor de uma sociedade nova e democrática, baseada no direito à diferença e no reconhecimento da legitimidade da pluralidade social.

As eleições de 2018 mostraram que nossos critérios de reconhecimento das identidades diferenciais da sociedade brasileira não correspondem às subjetividades respectivas. Nem correspondem ao que são as pessoas distribuídas por diferentes categorias sociais. Não temos clareza quanto a quem é o eleitor-protagonista, nem esse eleitor tem clareza quanto a quem elege.

Os técnicos do classificacionismo social têm uma concepção rentista da pobreza, baseada em bens e dinheiro. Há numerosas pessoas, sobretudo no Brasil rural, cuja condição social não é definida pelo ganho monetário, mas pelo modo de vida, até pela produção direta dos meios de vida. Falar em fome é necessário e urgente, mas a fome não decorre sempre nem apenas da insuficiência de dinheiro para sobreviver. Há os que não têm dinheiro, mas têm o que comer. E há quem tem dinheiro, mas passa fome.

Nem todo trabalhador é pobre. Nem todo rico não trabalha. Aliás, em nossas classificações estatísticas, nem todo rico é propriamente rico. A classe média entra de cambulhada tanto na categoria dos ricos quanto na dos pobres. Depende das conveniências de quem fala. Muitas vezes depende de quem quer lesá-la politicamente.

A polarização pobre e rico nunca deu conta da diferenciação da sociedade brasileira. Do mesmo modo, que nunca foi verdadeiro que os pobres votam na esquerda e os ricos votam na direita. O Partido dos Trabalhadores cresceu e chegou ao poder com o apoio decisivo dos ricos. Perdeu o poder porque seus adversários tiveram o apoio decisivo dos trabalhadores. Isso ficou claro nos resultados eleitorais da região do ABC, suposto reduto do PT. A sociedade muda e a política roda.

Somos uma sociedade caracterizada por uma diversidade de padrões de classificação social. O que os economistas dizem que são classes sociais não o são. São apenas estratos de rendimentos. O que muitos sociólogos dizem que são classes sociais nem sempre são. São agrupamentos de coincidências sociais.

Classe social envolve cultura de classe e destino. O que os diferentes grupos da população dizem o que eles próprios são é completamente desencontrado com a classificação que se lhes pode atribuir com base em critérios objetivos. Não levamos em conta, no esforço de entender a nossa diversidade social, que as pessoas nunca sabem exatamente o que são quanto à estrutura de classes sociais. Acham que são uma coisa quando na verdade são outra.

É impossível compreender esta sociedade de desigualdades tão peculiares sem compreender que elas são o rótulo das diferenças sociais e que uma sociedade como esta não pode existir senão pela mediação da falsa consciência que a desfigura e a viabiliza ao mesmo tempo. As categorias sociais vivem desnorteadas pelo desencontro entre o falso e o verdadeiro.

O PT jactou-se, em seus últimos anos de poder, de ter transformado o Brasil pobre num país de classe média. Muita gente acreditou nisso. É claro que, quando se assume essas rotulações sociais, supõe-se orientações no modo de falar, de vestir, de comer, de viver e de votar. Mas, em 2018, a população votou como classe média. Em 2002, votara como classe trabalhadora, o que de modo algum quer dizer classe operária.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial).