Vinicius Siqueira*
O século XX é considerado como o
receptáculo de uma mudança de perspectiva sobre o mundo do trabalho e da
produção de mercadorias: a sociedade de produtores foi trocado
por uma
sociedade de consumidores,
dizem Zygmunt Bauman e
Gilles Lipovetsky.
Isso significa que a sociedade que
dispersa seus indivíduos em através da distinção na área da produção,
portanto, da posição ocupada pelo indivíduo em relação ao modo de
produção, mas dentro desta primeira divisão, uma segunda feita a partir
da posição em relação ao processo produtivo, é então modificada pela
posição em relação às possibilidades de consumo.
Há um jeito específico de interpretar essa análise sobre a sociedade do consumo: as divisões objetivamente identificadas pelo marxismo através do corte entre detentores dos meios de produção e vendedores da força de trabalho não é anulada objetivamente.
A sociedade dos consumidores trouxe um modelo de organização dos
indivíduos e, acima de tudo, de formação da subjetividade individualista
pós-moderna.
A organização, portanto, dispersão dos
indivíduos através de suas possibilidades de consumo culmina na mistura
entre o panóptico de Michel Foucault e o sinóptico de Thomas Mathiesen.
Os indivíduos são, de fato, individualizados através da construção de
uma subjetividade de desagregação (panóptico) e, ao mesmo
tempo, seduzido a entregar suas informações e planos mais secretos
através do consumo, ou seja, através da entrega gratuita e, para o
consumidor, satisfatória de seus desejos, de sua conta bancária, de sua
renda, de seu padrão de consumo, de seu padrão de práticas sociais em
geral (sinóptico).
Zygmunt Bauman descreve a nova subjetividade nascente em seu Modernidade Líquida:
Cabe ao indivíduo
descobrir o que é capaz de fazer, esticar essa capacidade ao máximo e
escolher os fins a que essa capacidade poderia melhor servir – isto é,
com a máxima satisfação concebível. Compete ao indivíduo “amansar o
inesperado para que se torne um entretenimento”
Um consumidor é, de certa forma, um
indivíduo portador de todas as escolhas que seu poder aquisitivo possa
dar. Em resumo: escolhe quem consome, consome quem tem dinheiro, logo,
escolhe quem tem dinheiro. Para além: se escolhe sozinho.
Até agora, é possível entender que a
sociedade de consumidores ainda é cindida por classes sociais definidas
através da posição ocupada pelo indivíduo em relação ao modo de
produção, mas é organizada, dispersada e, claro, hierarquizada
microscopicamente através do consumo.
Dito isso, é possível utilizar como
gancho a ingênua aposta de Lipovestky sobre a sociedade do hiperconsumo.
Para o autor, o desencaixe da sociedade pós-moderna e o foco no consumo
poderiam render liberdade para destinos não sonhados até então.
Junto a isso, o segundo gancho é o artigo de Edson Mendes ao Lavra Palavra, em que o autor explica a posição do capital financeiro a respeito das lutas LGBT:
Wall Street não perde
tempo. E se a maré vira, eles viram junto. Apesar de não importar para
quem lucra se quem é motorista da Uber superexplorado, por exemplo, é
gay, lésbica, bissexual ou trans, o capital financeiro não vê problemas
em patrocinar movimentos conservadores e reacionários nos países
periféricos, reafirmando de vez a divisão internacional do trabalho.
O motorista superexplorado do Uber não é
um trabalhador do setor produtivo. É um trabalhador do setor de
serviços. É um consumidor com emprego fora da produção. É um indivíduo
já desligado da perspectiva da produção e inserido completamente na
organização da sociedade do consumo. Sua função é ser trampolim para
consumidores do aplicativo.
Na medida em que a libertação dos
trabalhadores através do consumo não é propagandeada como possibilidade
na dita pós-modernidade, é necessário agarrar o exemplo mais utilizado
(e seus correlatos), foco do artigo de Mendes: a libertação LBGT
acontece através do consumo?
A resposta óbvia através da leitura deste
artigo é: o consumo não é libertador. Mas é necessário enriquecer esta
afirmação com um incremento mórbido. O consumo não só não é libertador,
como também é aprisionador.
Mas este incremento não pode ser lido com
viés moral. O aprisionamento não se encontra em um tipo específico de
anestesia psicológica. O aprisionamento está na posição ocupada por
aqueles que fazem o consumo ser realizado.
Ninguém liga se o motorista do Uber é
gay. Pior, acreditam que a superexploração do motorista do Uber é
positiva e, de certa forma, política. Talvez o melhor exemplo seja o
Lady Driver, app de corridas com motoristas mulheres para clientes
mulheres. Parte de sua descrição é: “Somos irmãs, mães, filhas, esposas e
trabalhadoras. Somos mulheres! Acreditamos no empoderamento feminino e
na nossa capacidade de ganhar o mundo“.
Pode-se dizer, embora seja arriscado, mas
vale como hipótese, que o consumo como libertação só é possível na dita
pós-modernidade na medida em que o ato do consumo individual é o
horizonte mais próximo de uma ação coletiva. De certa forma, na lógica
do consumo como liberdade, a ação de libertação acontece na frágil
ligação entre consumidor e mercadoria.
Se o Uber não liga se o motorista superexplorado é gay, o consumidor não liga se o motorista gay é superexplorado.
*Vinicius Siqueira é editor do portal Colunas Tortas.
Fonte: https://lavrapalavra.com/2019/07/25/consumo-como-libertacao/
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