Vista com desconfiança inicialmente, pela incômoda ênfase que dava à
libido, a doutrina freudiana foi sendo
digerida pelo establishment
Os
arraiais psicanalíticos assanham-se com a perspectiva de relembrar os 80 anos
da morte do mestre-escola, ocorrida em setembro de 1939, apenas duas semanas
após a eclosão da guerra da qual ele tentou se precaver. O doutor Sigmund Freud
chegara a Londres em 1938, esquivando-se, via Paris, do tormento de viver em
Viena à sombra dos invasores nazistas. Instalou seu divã – aquele original, do
consultório da 19, Bergasse – num casarão imponente do bairro de Hampstead e
continuou atendendo pacientes e escrevendo livros em recusa às sequelas da
doença que o debilitava.
Freud morreu vítima de um câncer na garganta que deu o que falar. Se
tivesse sido enterrado no cemitério de Hampstead, ficaria na eterna e
silenciosa vizinhança de outro expatriado nascido no século 19 e que, assim
como ele, revolucionou o século 20: Karl Marx. Mas não, a família preferiu que
Freud fosse cremado em Golders Green e que as cinzas fossem guardadas numa urna
antiquíssima, preciosa peça da Grécia clássica que Freud ganhara da mais
aristocrata de suas discípulas, a princesa Marie Bonaparte. As graciosas
figuras retratadas na urna – Dionísio e uma ménade, sua parceira no
vinho e na embriaguez – sugerem a celebração da vida.
A administração do crematório instalou as cinzas do ilustre hóspede,
logo acasaladas com as de sua mulher, Martha Bernays, morta em 1951, sobre um
totem à vista do público. Uma frustrada tentativa de furto da urna obrigou o
crematório a escondê-la, embora sem saber se o alvo era a valiosa antiguidade
ou os restos mortais do professor, o que configuraria um requinte de fetichismo
macabro e certamente faria de algum argentino o suspeito número 1.
Há argentinos aos montes, assim como há brasileiros, e franceses,
alemães, britânicos, é claro, e até chineses na romaria que acabou se
transferindo toda do crematório de Golders Green para a mansão de 20,
Maresfield Garden, que Anna, filha de Freud, destinou em testamento a um Freud
Museum em Londres – com direito ao mitológico divã, a boa parte da biblioteca e
muitas das antiguidades colecionadas desde a Áustria. De todo modo, a
casa-consultório de Viena continua igualmente aberta à visitação dos fiéis. A
impressão que dá é de que a língua espanhola é a que mais ecoa nas salas, com o
nítido sotaque portenho.
Se a psicanálise não tivesse nascido na Áustria, com o doutor Freud, os
argentinos a teriam, com certeza, inventado. Parece que todo argentino e toda
argentina em algum momento deitou no divã para chafurdar nos abismos de seu
inconsciente. Não é por acaso que a Argentina é uma nação com tal voltagem
emocional.
A esperada e compreensível exceção surpreendeu tempos atrás ao anunciar
que também ela se submeteu aos cuidados de um doutor da alma. Isso mesmo: o
papa Francisco. Ele contou que frequentou por seis meses um consultório de
psicanálise. A imprensa de Buenos Aires descobriu quem teve a responsabilidade
de assistir o cardeal Bergoglio: foi uma mulher e judia. O papa explicou que
esteve lá para “esclarecer algumas coisas”. Oitenta anos após a morte do
criador da psicanálise, até o Sumo Pontífice do catolicismo abençoa a heresia
de Freud.
Francisco, pelo visto, nunca teve constrangimento algum em quebrar os
paradigmas e os cânones. A psicanálise é uma doutrina fundada por um ateu e
profundamente calcada na análise da sexualidade dos pacientes. O establishment
religioso sempre a encarou com repugnância.
(O papa argentino é uma caixinha de surpresas. Qual será a próxima?
Anunciar que não acredita em Deus, como sugerem os adversários dele na Cúria
Romana?)
Vista com desconfiança nos seus primórdios, pela incômoda ênfase que
dava à libido nos substratos da psique, a doutrina freudiana foi sendo digerida
pelo establishment, ao preço do que Wilhelm Reich, discípulo radical,
considerava ser uma traição de Freud a si mesmo – e ao que a psicanálise
trouxera de mais original, destemido e revolucionário. A consequência, dizia
Reich, fora a própria doença que acabou por matar o mestre.
Reich, austríaco como Freud, exilado assim como ele, mas nos Estados
Unidos, rompeu com o mestre ao acusá-lo de ter amaciado sua teoria da
sexualidade em troca da condescendência do status quo burguês. Chegou a
dizer que o câncer na garganta que matou Freud surgiu por culpa de sua
propensão a, no fim da vida, engolir – metaforicamente – tantos sapos em troca
dessa aceitação gelatinosa.
É uma teoria, a de Reich. Mas, na realidade, Freud não pode ser eximido
do risco que assumiu como fumante suicida. É rara uma foto dele em que não
envergue o acessório de sua obsessão: um charuto. Fumou a vida toda, desde
jovem, e nos tempos de noviciado contentava-se com os nefandos mata-ratos da
Baviera. Só depois de virar uma celebridade é que os alunos se ocuparam de
abastecê-lo de puros cubanos. Eram 21 charutos em média, dia após dia.
Descontadas as horas em que dormia, fica claro que Herr Professor
enfumaçava os pacientes durante as sessões terapêuticas e não descansava os lanceros
e torpedos sequer à frente de um Wiener Schnitzel.
Charutos, numa interpretação chancelada pelo próprio Freud, poderiam
sugerir uma óbvia fixação fálica, uma anormalidade doentia, expressão simbólica
dos sexualmente ambivalentes. Prudentemente, o fumante impenitente que
coabitava no teórico do desejo previu-se de toda e qualquer ilação metafórica
mais melindrosa ao argumentar o tempo todo: “Às vezes, um charuto é só um
charuto”. Como ele era o guardião da doutrina, os discípulos não ousavam
contestá-lo. Até que apareceu aquele futriqueiro do Wilhelm Reich para dizer:
“Aí tem coisa”.
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Texto Por: Nirlando Beirão 3 de julho de 2019
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