quarta-feira, 3 de julho de 2019

Freud, 80 anos da morte: câncer fatal às teorias contestadas




Vista com desconfiança inicialmente, pela incômoda ênfase que dava à libido, a doutrina freudiana foi sendo 
digerida pelo establishment

Os arraiais psicanalíticos assanham-se com a perspectiva de relembrar os 80 anos da morte do mestre-escola, ocorrida em setembro de 1939, apenas duas semanas após a eclosão da guerra da qual ele tentou se precaver. O doutor Sigmund Freud chegara a Londres em 1938, esquivando-se, via Paris, do tormento de viver em Viena à sombra dos invasores nazistas. Instalou seu divã – aquele original, do consultório da 19, Bergasse – num casarão imponente do bairro de Hampstead e continuou atendendo pacientes e escrevendo livros em recusa às sequelas da doença que o debilitava.
Freud morreu vítima de um câncer na garganta que deu o que falar. Se tivesse sido enterrado no cemitério de Hampstead, ficaria na eterna e silenciosa vizinhança de outro expatriado nascido no século 19 e que, assim como ele, revolucionou o século 20: Karl Marx. Mas não, a família preferiu que Freud fosse cremado em Golders Green e que as cinzas fossem guardadas numa urna antiquíssima, preciosa peça da Grécia clássica que Freud ganhara da mais aristocrata de suas discípulas, a princesa Marie Bonaparte. As graciosas figuras retratadas na urna – Dionísio e uma ménade, sua parceira no vinho e na embriaguez – sugerem a celebração da vida.

A administração do crematório instalou as cinzas do ilustre hóspede, logo acasaladas com as de sua mulher, Martha Bernays, morta em 1951, sobre um totem à vista do público. Uma frustrada tentativa de furto da urna obrigou o crematório a escondê-la, embora sem saber se o alvo era a valiosa antiguidade ou os restos mortais do professor, o que configuraria um requinte de fetichismo macabro e certamente faria de algum argentino o suspeito número 1.

Há argentinos aos montes, assim como há brasileiros, e franceses, alemães, britânicos, é claro, e até chineses na romaria que acabou se transferindo toda do crematório de Golders Green para a mansão de 20, Maresfield Garden, que Anna, filha de Freud, destinou em testamento a um Freud Museum em Londres – com direito ao mitológico divã, a boa parte da biblioteca e muitas das antiguidades colecionadas desde a Áustria. De todo modo, a casa-consultório de Viena continua igualmente aberta à visitação dos fiéis. A impressão que dá é de que a língua espanhola é a que mais ecoa nas salas, com o nítido sotaque portenho.

Se a psicanálise não tivesse nascido na Áustria, com o doutor Freud, os argentinos a teriam, com certeza, inventado. Parece que todo argentino e toda argentina em algum momento deitou no divã para chafurdar nos abismos de seu inconsciente. Não é por acaso que a Argentina é uma nação com tal voltagem emocional.

A esperada e compreensível exceção surpreendeu tempos atrás ao anunciar que também ela se submeteu aos cuidados de um doutor da alma. Isso mesmo: o papa Francisco. Ele contou que frequentou por seis meses um consultório de psicanálise. A imprensa de Buenos Aires descobriu quem teve a responsabilidade de assistir o cardeal Bergoglio: foi uma mulher e judia. O papa explicou que esteve lá para “esclarecer algumas coisas”. Oitenta anos após a morte do criador da psicanálise, até o Sumo Pontífice do catolicismo abençoa a heresia de Freud. 

Francisco, pelo visto, nunca teve constrangimento algum em quebrar os paradigmas e os cânones. A psicanálise é uma doutrina fundada por um ateu e profundamente calcada na análise da sexualidade dos pacientes. O establishment religioso sempre a encarou com repugnância.

(O papa argentino é uma caixinha de surpresas. Qual será a próxima? Anunciar que não acredita em Deus, como sugerem os adversários dele na Cúria Romana?)

Vista com desconfiança nos seus primórdios, pela incômoda ênfase que dava à libido nos substratos da psique, a doutrina freudiana foi sendo digerida pelo establishment, ao preço do que Wilhelm Reich, discípulo radical, considerava ser uma traição de Freud a si mesmo – e ao que a psicanálise trouxera de mais original, destemido e revolucionário. A consequência, dizia Reich, fora a própria doença que acabou por matar o mestre.

Reich, austríaco como Freud, exilado assim como ele, mas nos Estados Unidos, rompeu com o mestre ao acusá-lo de ter amaciado sua teoria da sexualidade em troca da condescendência do status quo burguês. Chegou a dizer que o câncer na garganta que matou Freud surgiu por culpa de sua propensão a, no fim da vida, engolir – metaforicamente – tantos sapos em troca dessa aceitação gelatinosa.
É uma teoria, a de Reich. Mas, na realidade, Freud não pode ser eximido do risco que assumiu como fumante suicida. É rara uma foto dele em que não envergue o acessório de sua obsessão: um charuto. Fumou a vida toda, desde jovem, e nos tempos de noviciado contentava-se com os nefandos mata-ratos da Baviera. Só depois de virar uma celebridade é que os alunos se ocuparam de abastecê-lo de puros cubanos. Eram 21 charutos em média, dia após dia. Descontadas as horas em que dormia, fica claro que Herr Professor enfumaçava os pacientes durante as sessões terapêuticas e não descansava os lanceros e torpedos sequer à frente de um Wiener Schnitzel.   

Charutos, numa interpretação chancelada pelo próprio Freud, poderiam sugerir uma óbvia fixação fálica, uma anormalidade doentia, expressão simbólica dos sexualmente ambivalentes. Prudentemente, o fumante impenitente que coabitava no teórico do desejo previu-se de toda e qualquer ilação metafórica mais melindrosa ao argumentar o tempo todo: “Às vezes, um charuto é só um charuto”. Como ele era o guardião da doutrina, os discípulos não ousavam contestá-lo. Até que apareceu aquele futriqueiro do Wilhelm Reich para dizer: “Aí tem coisa”. 
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