terça-feira, 23 de julho de 2019

Como os pobres sustentam os ricos

Frei Betto*

Em menos de 24 horas a França ar­re­cadou 2 bi­lhões de euros para re­cons­trução da Ca­te­dral de Notre Dame, na qual fiéis, sa­cer­dotes, bispos e car­deais ma­ni­festam a fé de que todos os seres hu­manos são fi­lhos de Deus e me­recem viver com dig­ni­dade. A mesma França que desde 1957, ou seja, após 62 anos de in­de­pen­dência de suas colô­nias na África, cobra delas 85% de suas re­servas na­ci­o­nais.

São 15 países que pagam um salvo-con­duto à França todo ano. Al­guns são mar­cados por des­truição, guerras e fome, como Benin, Bur­kina Faso, Costa do Marfim, Mali, Níger, Se­negal, Togo, Ca­ma­rões, Re­pú­blica Centro Afri­cana, Chade, Congo, Re­pú­blica da Guiné e Gabão. Destes, seis fi­guram entre os mais mi­se­rá­veis do mundo.

Seus go­vernos são obri­gados a co­locar 60% das suas re­servas no Banco da França, e só podem usar 15% ao ano. Caso re­tirem mais do que isso, devem pagar um ágio de 65% do valor. Ou seja, são pe­na­li­zados por uti­li­zarem o pró­prio di­nheiro.

Nas ex-colô­nias afri­canas, toda des­co­berta mi­neral per­tence à França. Todo equi­pa­mento e trei­na­mento mi­li­tares têm de ser fran­ceses, o que mostra quem lucra com as guerras lo­cais. Já mor­reram mais de 350 mi­lhões de ino­centes por causas de guerras cau­sadas pela po­breza na­queles países.

Até 2004, o Haiti também tinha de pagar essa mesma taxa à França. Em 1825, quando a in­de­pen­dência do Haiti foi re­co­nhe­cida, o então pre­si­dente hai­tiano, Jean-Pi­erre Boyer, as­sinou um acordo com o rei francês Carlos X, pelo qual a im­por­tação de pro­dutos da nação ca­ri­benha te­riam re­dução de 50% nas ta­rifas al­fan­de­gá­rias, e o Haiti pa­garia à França, em cinco par­celas, uma in­de­ni­zação no valor de 150 mi­lhões de francos, equi­va­lentes hoje a US$ 21 mi­lhões.

Essa quantia seria para com­pensar os fran­ceses por ha­verem per­dido imó­veis, terras e es­cravos. Caso o go­verno hai­tiano não as­si­nasse o tra­tado, o país con­ti­nu­aria iso­lado di­plo­ma­ti­ca­mente e fi­caria cer­cado por uma frota de na­vios de guerra.

Aquele valor equi­valia às re­ceitas anuais do go­verno hai­tiano mul­ti­pli­cadas por dez. Por­tanto, o Haiti teve que re­correr a um em­prés­timo para pagar a pri­meira par­cela. To­mado de um banco francês... Assim co­meçou for­mal­mente o que se co­nhece como a “dí­vida da in­de­pen­dência”. O banco francês em­prestou 30 mi­lhões de francos, valor da pri­meira par­cela, da qual de­duziu 6 mi­lhões de francos em co­mis­sões ban­cá­rias.

Com o res­tante 24 mi­lhões de francos, o Haiti co­meçou a pagar as in­de­ni­za­ções. Ou seja, o di­nheiro passou di­reto dos co­fres de um banco francês para os co­fres do go­verno francês. E o Haiti ficou de­vendo 30 mi­lhões de francos ao banco francês, e mais 6 mi­lhões de francos ao go­verno da França re­fe­rentes ao valor que faltou da pri­meira par­cela.

Es­ta­be­leceu-se uma es­piral ab­surda de dí­vidas para pagar uma in­de­ni­zação que con­ti­nuou alta de­mais para os co­fres do país ca­ri­benho, mesmo quando foi re­du­zida à me­tade, em 1830. Mais tarde, em 1844, o lado leste da ilha se de­cla­raria de­fi­ni­ti­va­mente in­de­pen­dente do oeste, for­mando a Re­pú­blica Do­mi­ni­cana.

Desde então, o Haiti teve que pedir grandes em­prés­timos a bancos es­ta­du­ni­denses, fran­ceses e ale­mães, com taxas de juros exor­bi­tantes que com­pro­me­tiam a maior parte das re­ceitas na­ci­o­nais.

Fi­nal­mente, em 1947, o Haiti ter­minou de com­pensar os fran­ceses. Foram 122 anos pa­gando dí­vidas desde a in­de­pen­dência. E restou ao país a triste re­a­li­dade de também fi­gurar entre os 20 países mais mi­se­rá­veis do mundo.

Notre Dame será re­er­guida, sem dú­vida. E ali a glória de Deus será exal­tada. Mas, e aqueles que foram cri­ados à Sua imagem e se­me­lhança, a po­pu­lação das ex-colô­nias? 
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* Frade dominicano. Escritor.
Fonte:  http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13828-como-os-pobres-sustentam-os-ricos - Acesso 23/07/2019
*Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

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