Uma longa entrevista com
O baiano João Gilberto tinha aversão por entrevistas. Ao longo de
sua carreira, poucos jornalistas conseguiram se sentar com o pai da
bossa nova para ouvi-lo responder a perguntas. A conversa que o Blog do
Acervo reproduz, abaixo, é um desses momentos raros em que o cantor e
compositor, morto no último sábado, aos 88 anos, aceitou dar uma
entrevista, publicada na edição do GLOBO de 31 de outubro de 1979. Na
ocasião, João Gilberto estava de volta ao Brasil depois de longos anos
morando em Nova York. Ele não fazia um show no Rio desde 1962 e tinha
uma série de apresentações marcadas no Canecão, tradicional casa de
shows carioca, fechada desde 2010 (os shows foram posteriormente
cancelados devido a "problemas técnicos" que só João encontrava). Quando
o cantor se encontrou com o repórter Carlos Alberto Silva, após um
ensaio no próprio Canecão, o músico estava disposto a falar. Explicou a
razão de passar tanto tempo nos Estados Unidos, desabafou sobre a fama
de seu temperamento difícil e discorreu apaixonadamente sobre uma
partida de pingue-pongue com o pianista americano Chick Coreaeia a entrevista, abaixo, precedida pela introdução publicada na época.
"Eu vi, sim. Da Janela do meu quarto. Um soldado de guarda, mosquetão
e tudo, ali, no Forte de Copacabana. De repente, à luz daquela tarde
ensolarada de quinta-feira, o soldado começou a dançar, gingando o corpo
e sapateando. Juro que era samba. Então acreditei de vez; eu estava no
Rio de Janeiro. No Brasil, afinal.
João Gilberto está, pois, no Rio, para uma série de apresentações no
Canecão, sem datas definidas, ainda numa temporada que poderá ser
prorrogada, dependendo da resposta do público e/ou da vontade do
artista, e quanto a este último item é difícil fazer previsões. Quando
ele chega — paletó preto surrado, as calças de bainhas puídas, segurando
um violão encaixotado — é difícil crer tratar-se do mito João Gilberto.
Mais parece um funcionário público de meia-idade (ele tem 48 anos), um
tanto calvo, muito tímido e educado.
Sentado num caixote, João Gilberto ensaia no Canecão. O jeitão, assim
introvertido, é uma nota destoante no concerto de luzes que compõe o
palco. Vê-se que ele não está à vontade, que está fora do seu elemento
natural: os ambientes intimistas, à meia-luz. Assusta-o até o agrado das
pessoas ao redor, uns a enxugarem-lhe o suor, outros a oferecerem-lhe
um novo assento etc. O que ele quer é tocar e cantar. É o faz, afinal,
quase murmurando as sílabas, a voz e o violão harmonizados.
Mas algo não andava bem:
— Quero retorno, Carlos. Aqui, nó palco.
— João, é apenas um ensaio... No dia do show você terá retorno.
— Pra mim não é apenas um ensaio. E quero o meu retorno aqui e agora. Isso. Assim. Agora tudo bem.
E então ele canta fagueiro: “Triste é viver na solidão...”; “”Canta,
Brasil”; ”Rosa morena”. E para de novo - algo com o som do violão
(metálico demais). Ele insiste, tenta uma, dez vezes mais, versos e
acordes. E levanta-se, diz:
— Ah, Carlos... Nunca mais aquele som...
Encosta o violão, adia o ensaio — está pronto para a entrevista. Assim é João Gilberto.
Por que você ficou tanto tempo fora do Brasil?
Trabalhando, procurando fazer o melhor. Talvez preparando este
momento, voltar. Talvez para não desperdiçar os outros momentos de
então. Tudo tem seu tempo certo, e não há nisso nada de místico. É uma
coisa prática. Eu estava lá, nos Estados Unidos, mas sempre estive aqui,
no Brasil, em coração e pensamento. No momento em que senti que estava
tudo bem por lá, que a música brasileira era um fato real, definitivo,
então achei que podia voltar. E aqui estou. Porque agora é a hora;
antes, voltar era um luxo a que eu não tinha direito. Eles, os
americanos, sempre apoiaram meu trabalho. Acreditaram, reconheceram.
Investiram nele. Divulgar a música brasileira foi o grande motivo.
Então, o aqui era lá. Por isso fiquei.
Como você vê o Brasil, hoje?
Claro que me interesso por tudo, a abertura, os novos partidos, isso
tudo. Quero que a liberdade seja um estado de fato e de direito. Sinto o
ar um pouquinho mais leve, agora. Sei que estamos no final de um
processo político e social e no começo de algo ainda a ser definido e
construído. O quê, não sei. Mas confio. Principalmente na música
brasileira, a autêntica, que vejo ressurgir em nossa terra, embora - e
isto é uma triste verdade - esteja acontecendo um tanto o quanto
tardiamente, quando lá fora, nos Estados Unidos, na Europa, no Japão,
ela é uma realidade, tocada e cantada por todos, com amor e respeito.
Influência estrangeira, aqui? Isso passa, nossa música é imortal,
inconfundível, inimitável, insubstituível. Mesmo que se compre horários
nas rádios (como se faz). No final, o Brasil vence.
Você, então, voltou para ficar?
Eu sou daqui. Jamais ”fui embora”. A responsabilidade de ficar ou não
fica por conta do coração. Os planos são de realizar esta temporada
aqui, voltar aos Estados Unidos para terminar o disco que estou fazendo
lá e que só tem duas músicas prontas, e então voltar para aqui de novo,
pensando em ficar de vez. Mas vamos ver como fica. De repente... Por
ora, quero ouvir muito, conhecer e amar gente como Cartola e Nelson
Cavaquinho, gente com quem jamais cantei ou toquei. E não porque não
quisesse, mas porque fazia o meu trabalho, sem essa de me esconder do
sucesso e do Brasil, mas por querer construir o meu próprio caminho.
Voltar e ficar de vez no Brasil é um sonho meu, antigo, eu confesso.
Aquela saudade, aquela ideia fixa... sei lá. Ficar só um pouco ou para
toda a vida não importa. Só sei que estou aqui, amando tudo que vejo, me
emocionando com tudo e com todos.
Até com os jornalistas?
- Eu?! Ora, eu amo vocês! Respeito por demais o seu trabalho. Tanto
que gostaria de ser assim como vocês, desembaraçados e fluentes. O mito
João Gilberto me assusta, me deixa com medo de falar das coisas e
pessoas que amo. Com medo de feri-las e assustá-las. Queria ser assim
como vocês, da imprensa: igual ao trabalho que produzem. Isso, aliás, é
um grande trauma meu: não ser como é a minha música. Eu tento, mas não
consigo.
E o folclore a seu respeito, sobre ser você uma pessoa
difícil? É verdade aquela história de que, um dia, você se negou a falar
com as pessoas, a não ser pelo telefone e, assim mesmo, pelo código
Morse?
Não foi nada disso. É que tive um sério problema com a voz. Pensei,
até, que ficaria mudo para sempre. E então tive que fazer um tratamento
delicadíssimo. Por isso, durante algum tempo, tive de poupar a minha voz
e, assim, falava ao telefone com os amigos usando o Morse - e somente
para as palavras que normalmente mais se repetem numa conversação: sim,
não etc. Aliás, fico muito triste quando inventam histórias assim a meu
respeito. Como aquela de que sou uma pessoa impossível de se trabalhar,
um temperamental perfeccionista — um “chato”. A verdade é que gosto
multo do meu trabalho. É a minha opção de vida, minha aproximação
pessoal da felicidade. Interessa-me fazer sempre o melhor trabalho,
dividir o melhor possível os acordes, a emissão conjunta e uníssona da
voz e do violão. Essa preocupação, que uns chamam de exagero e
preciosismo pedante, nada mais é do que amor pelo que faço. A certeza de
que não sou perfeito ou um gênio, de não ter essa voz privilegiada que
outros dizem — e de que é necessário trabalhar a sério e duro pelo
produto final, este sim, perfeito: a música brasileira. Toco e canto “de
“ouvido”’ e só trabalho com grandes músicos e arranjadores. Tudo sempre
deu muito certo. O amor sempre aconteceu em meu trabalho. O mais é
folclore, mesmo.
Esse tempo todo lá fora: quais foram seus grandes momentos?
Meu trabalho foi sempre com a música brasileira. Com o samba, nossa
música infinita. Aquilo que as pessoas chamam de Bossa Nova e que eu
chamo de samba, de música brasileira — ampla, rica, infinita, sobre a
qual o artista pode criar o seu fraseado pessoal. Fazer essa música lá
fora é fácil: eles nos respeitam. Vêm e vão gerações, e o amor e a
admiração aumentam pela nossa música. Muito mais do que aqui, no Brasil.
Esta é a verdade: o respeito maior é deles e não nosso. O Brasil ainda
não se apercebeu da importância que lhe é dada lá fora, em termos de
música. E por isso que eu não penso em Bossa Nova. Penso em samba.
Música brasileira. E é por isso que fiquei por lá, para onde fui, eu me
lembro, quase contra a minha vontade. Estava na Argentina, quando me
convidaram. Eu não queria ir. Achava que não era a hora, ainda: 1962.
Veio então o Jorge Amado e me disse: ”Vá, João, sem medo, que a hora é
esta, sim senhor". Eu fui, e foi aquela coisa toda: muita vontade de
mostrar o meu trabalho, de qualquer jeito, nem sempre bem apresentado.
Mas o pessoal de lá entendeu, reconheceu o esforço - e fui ficando, eu e
os demais brasileiros que lá estavam, como eu, mostrando a nossa
música. E todo mundo de lá - músicos, cantores, produtores, o povo
americano - reconheceu o valor da música brasileira. Meu dia a dia por
lá? Todo dedicado â música, tocando para mim e para os outros; no
estúdio gravando. Saindo muito pouco de casa, raras vezes, sempre ao
encontro de amigos. Vivendo a minha música. Mas tive grandes momentos,
por certo.
Quais?
Uma apresentação na Alemanha, inaugurando uma TV a cores. Na ocasião,
ainda estava com aquele problema na voz. Contrato assinado, pus mãos à
obra, exercitando-me todos os dias, soprando velas à distância,
repetindo o som do “L”, essas coisas. E deu tudo certo, fui lá e dei o
meu recado. Foi uma grande lição para mim: até hoje, pela manhã e sempre
que posso, estou sempre treinando, voz e violão. Quero estar sempre
afiado e pronto. Nos Estados Unidos, posso citar, além do concerto no
Carneggie Hall, em 1962, um outro que fiz, em 1977, no Bottom Line —um
lugar dito sofisticado mas que, na verdade, pareceu-me um reduto de
amantes da música brasileira. Foi ali que Jacqueline, a viúva Onassis,
abandonou seu ”staff” e veio a mim, cumprimentar-me e à música
brasileira, da qual se disse admiradora atenta e antiga.
E seus discos, nos Estados Unidos?
Gravo muito pouco, e, embora as companhias exijam dois discos por
ano, quase nunca faço mais que um. Mas, quando gravo, o faço rápido, com
tudo já montado na cabeça, ensaiado e decorado. E só ir ao estúdio.
Pode parecer um comportamento estranho, esse, mas é assim que sou, um
baiano que está no estrangeiro há quase 20 anos e ainda não perdeu o
sotaque, nem é capaz de manter uma longa conversa em inglês.
Que nomes você destacaria na música brasileira e na americana?
Do Brasil prefiro não citar nomes, um que seja, sob pena de cometer
injustiça. Ainda mais que não sou muito a ligar nomes à música. Não raro
eu gravo músicas sem nem lembrar o nome e o compositor, como esta
“Canta, Brasil”, que um dia, ouvindo-a, gostei e gravei. Só depois é que
vim a saber que era do David Nasser e que tem mais de 30 anos. Mas dos
Estados Unidos posso citar alguns, embora, por certo, esteja esquecendo
vários grandes artistas. Herbie Hancock, Bill Evans, Quincy Jones - eis
ai bons nomes. E Chick Corea, entre os chamados "novos". Mas sobre ele
eu gostaria de falar um pouco mais.
Algum motivo especial?
Algum motivo especial?
É claro: uma partida de pingue-pongue. Eu e ele. Cara a cara. Dei-lhe uma tremenda surra!
(Então, João Gilberto se transforma, levanta-se da cadeira e
começa a narrar, cheio de gestos, a "grande façanha” no pingue-pongue,
sua paixão de homem comum. É um menino contando sobre suas aventuras).
Foi na casa de Stan Getz. Flora Purim e Airto Moreira são testemunhas. Eu estava para o que desse e viesse. Tinha uma cisma pessoal com aquele garoto, um dia, achara “chato” e pretensioso, desde que certa vez ele, todo fleumático, não afastou a cadeira para que eu passasse... Aquela discriminação que certos Jovens têm para com os “coroas caretas”. Jurei dar-lhe o troco. Fui ao Airto e perguntei-lhe se o Chick jogava pingue-pongue. E o Airto: “É uma fera. O verdadeiro rei da calma”. E eu: "Deixa comigo". E um dia peguei-o. No começo ele “chiou” com o meu saque, o qual, não é para me gabar, é muito bom: forte, violento e cheio de efeito. Só que um pouco fora da lei, multo afastado da mesa e da regra, também. Mas o Chick, a autoconfiança em pessoa, deixou como estava. E se deu mal; lhe dei uma -tremenda surra e me senti vingado. Hoje, somos bons amigos.
Foi na casa de Stan Getz. Flora Purim e Airto Moreira são testemunhas. Eu estava para o que desse e viesse. Tinha uma cisma pessoal com aquele garoto, um dia, achara “chato” e pretensioso, desde que certa vez ele, todo fleumático, não afastou a cadeira para que eu passasse... Aquela discriminação que certos Jovens têm para com os “coroas caretas”. Jurei dar-lhe o troco. Fui ao Airto e perguntei-lhe se o Chick jogava pingue-pongue. E o Airto: “É uma fera. O verdadeiro rei da calma”. E eu: "Deixa comigo". E um dia peguei-o. No começo ele “chiou” com o meu saque, o qual, não é para me gabar, é muito bom: forte, violento e cheio de efeito. Só que um pouco fora da lei, multo afastado da mesa e da regra, também. Mas o Chick, a autoconfiança em pessoa, deixou como estava. E se deu mal; lhe dei uma -tremenda surra e me senti vingado. Hoje, somos bons amigos.
E futebol, você gosta? Qual o seu time? E a seleção brasileira?
Gosto muito, desde garoto. E sou Vasco da Gama, doente. A seleção é
que não me agrada. Não gosto do Coutinho. Não o queria dirigindo a
seleção. Lembram, na Argentina? O Brasil não é aquilo, jogando preso,
sem alegria. Sei lá, mas sinto que há alguma coisa de proibido na
seleção, com o Coutinho a dirigindo. Talvez a alegria, a criatividade.
Muita fórmula, muita estatística. E estatística "furada", tentando
imitar os modelos estrangeiros. Só que lá fora estatísticas são de
aproveitamento real e não de hipóteses. Lá, quando o atacante está de
frente para o gol ele bate sempre para dentro - o goleiro que pegue ou
largue. Aqui, agora, os atacantes vêm e "buff!" (e ele se levanta,
novamente), chutam longe e o locutor ainda grita que "passa rente à
trave". Está errado. Sou a favor de que chamem grandes jogadores para
treinar a nossa seleção. Pelé, Gerson, Tostão - estes, sim, devolveriam a
alegria ao nosso futebol. Coutinho nunca jogou futebol, usa o time como
um aficcionado de xadrez, movendo as peças... Uma brincadeira de
adultos, exclusivamente para elites. Ora, não é nada disso! A vocês, da
imprensa, peço um favor: não permitam que Coutinho permaneça na seleção!
Sinatra no Brasil, cantando no Maracanã, O que você acha?
Sinatra no Brasil, cantando no Maracanã, O que você acha?
Não sei... O som... Sei lá. Eu é que não iria. Quem sou eu? Não tenho tanto público no Brasil...
Ao despedir-se, ele falou...
Ao despedir-se, ele falou...
Por favor, não me abracem tanto, Não que eu não goste, mas é que fica
parecendo aeroporto, as pessoas despedindo-se de mim e me deixando
sozinho. Não, fiquem por aqui, mesmo. O ensaio continua. Não me deixem,
amigos, voltem sempre. E me deem notícias do Jobim, que ainda não vi
desde que voltei. E falem muito bem do João Donato. Vou gravar um disco
ao lado dele, tornando realidade um sonho antigo. E vou fazê-lo o quanto
antes, enquanto estamos os dois vivos e lúcidos.
Qual é a receita do sucesso para o artista brasileiro no exterior?
- Ser brasileiro, sempre. Basta isso.Qual é a receita do sucesso para o artista brasileiro no exterior?
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Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/nao-sou-um-genio-e-nem-tenho-voz-privilegiada-e-necessario-trabalhar-duro-pelo-produto-final-uma-longa-entrevista-com-joao-gilberto.html?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo
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