Lya Luft*
Muito do que lembramos ou vivenciamos
hoje é real, aconteceu. Muito, porém, se desenrola num nevoeiro de
lembranças e invenções, sem serem inverdades. Fantasias.
Possivelmente sim, pois vivemos muito mais próximos delas do que
em geral imaginamos. Mas nossos sonhos, desejos, vivências e fantasias
também nos definem, fazem parte de nós, somos essa parte mental
e psíquica também.
Temos muitas fantasias e ilusões, como de que o amor é
sempre belo e bom, e construtivo, que amizades são sempre leais e
positivas, e inquestionáveis, que família é um conjunto de pessoas
ligadas por sangue ou laços formais, sempre unidos, sempre alegres ou
tristes em conjunto: alguém nasceu, alegria, alguém partiu, dor. Ou
frases convencionais como trabalho enobrece, se sabemos que o que nos
dignifica é trabalho honrado, compensador, pelo menos não
humilhante. Vamos ficar no individual, pessoal.
Bom que a fantasia continue a ser amiga nossa, para não
sermos daqueles seres duros, e frios, totalmente sem graça, incapazes
de rir, de chorar, de se emocionar mesmo com a mais bela arte.
Era nisso que eu queria chegar: na arte, que seja um
texto simples, um drama shakespeariano, um romance de Lygia Fagundes,
uma página mágica de Guimarães Rosa, poemas de Rilke ou de Drummond. Uma
estátua tão perfeita, que os deixa aturdidos, um filme que nos
transporta para outra dimensão, uma música que possa ser designada de
sublime.
Com ajuda da fantasia, desse véu da imaginação,
sutil, palidamente colorido ou eufórico em pinceladas, vivemos um pouco
além do nosso próprio cotidiano, geralmente banal – graças aos deuses,
ou enlouqueceríamos. Ninguém merece ou deve viver constantemente
uma tragédia grega ou uma ópera fantástica: o dia a dia, o feijão com
arroz, o colégio das crianças, a oficina do carro, as contas a pagar, a
dor de cabeça, a perna quebrada, o medo do desemprego, ou aluguel alto
demais, enfim, essas cotidianas coisas miúdas, que aparentemente nos
dispersam e cansam, nos salvam.
Merecemos a rotina das pequenas coisas, ainda que
tantas vezes nos pareçam chatas, tediosas, de uma triste
monotonia. Elas, essas horas, esses dias e noites, nos preparam
para receber o golpe cintilante de uma experiência incomum: o amor
esplêndido, a ternura pungente, a tela cheia de surpresas, o texto
mágico, as nuvens inacreditáveis, ou simplesmente a sensação, vaga, de
que alguma coisa – muito além de nós – nos tocou, agora mesmo, com seu
dedo celestial.
Nem tudo é para entender: muita coisa, apenas para
sentir e saborear. E isso, também, é para alguns eleitos. Por
serem melhores que os demais, não. Por serem capazes de abrir olhos,
ouvidos e alma, e perceberem o que há além, atrás e acima do feijão, do
pão, do pneu furado, da mulher malhumorada ou do marido distante, até do
trabalho enfadonho de montar as mesmas peças ou bater os mesmos
pregos. Basta não ter medo do que parece excessivo, extraordinário.
Todos o merecemos.
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* Escritora
Fonte:https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=16a0ef479cb13a18cde81831264fa266 13/07/2019
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