Lya Luft*
(Hoje me permito uma segunda brincadeira
afetuosa com os que me dizem que
não entendem nem
apreciam poesia...)
A vida, como a ficção, é um teatro de desatino.
Meus personagens: amantes, suicidas, sonhadores, seres
rastejantes, criaturas aladas, simples humanos - crianças e seus
segredos. O bem, o mal, o riso, o esgar, a procurada morte, a sorte, a
sombra. Na beira do palco, como estrelas, penduro palavras: esse talvez
seja o meu destino.
A vida precisa de uma porta para espiar o que há
dentro: um corredor, o espelho e suas criaturas, a sala da família e um
claro quarto de criança; um porão de aflições que soluçam à noite (mas
dizemos: é o vento); o pátio, simples, e o pequeno jardim com três
árvores esguias que afinal são um bosque.
Num resto de muro, a escada de madeira parece não levar
a nada. Pousado no último degrau, um pássaro de sombra nos observa: seu
bico é curvo e afiado.
**
Embaixo de toda casa, essa que pensamos conhecer, vive a
Medusa com olhos de uma nostalgia mortal. Embaixo de toda casa
serpenteiam labirintos que temos de achar, e dominar - ou nos sugam, nos
absorvem, nos vomitam - quando sonhamos.
Além deles, ali existe um poço e temos de mergulhar:
primeiro as mãos em ponta cheias de encontro e de adeus, depois o rosto
marcado, o corpo exausto que se adia.
E por fim, muito mais calma, isso que nos sobrou de alma.
**
A vida deve ter varandas para sonhar, cantos para
chorar, quartos para os segredos, mais a ambivalência, onde se respira -
e a portinha do porão, com sua velha chave.
A vida precisa espaço de voar, liberdade de partir ou
de ficar, alegria e algum desassossego contra o tédio. Não se esqueçam
os danos a cobrir, o medo de perder ou de partir, o dom de surpreender -
e um jardim de amores sem adeuses.
**
O tempo não existe: eu decreto assim. Esses vultos esquivos são rostos, são nomes, são as horas felizes (são o que foi embora?).
O tempo não existe: tudo continua aqui, como uma árvore
carregada de máscaras, palavras, promessas, bocas ferozes. O tempo não
existe: tudo se resume ao instante. O tempo é um rio que corre mas não
passa: é sempre agora.
Porque vida e morte, e o claro e o escuro, e a
realidade e a imaginação se entrelaçam, se fundem, se ocultam e se
desvendam. Porque o grão de loucura ilumina a noite e fertiliza a terra.
Porque somos melhores do que nos fazem crer que somos. Porque para nós,
amadores, indagar é melhor do que entender.
Porque o consolo está em que nada faz muito sentido.
Porque, se uma parte de viver são escolhas, a outra parte é o olhar
compassivo, divertido ou cruel dos deuses - para nossa glória ou
danação.
----------
* Escritora. Cronista da ZH.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=f7f9d1be24f42a0c98f83572733da426 - 06/07/2019
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário