A última entrevista de caráter testamentário concedida por Sartre ao seu secretário pessoal, Benny
Lévy, pouco antes da sua morte, ocorrida no dia 15 de abril de 1980,
provocou um profundo escândalo entre os seus amigos mais íntimos, a começar por
Simone de Beauvoir.
O comentário é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de
Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica,
09-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para o último Sartre, deve-se abandonar uma teleologia da totalidade em
nome de uma moral fundada em um novo desejo de comunidade. Não perseguir uma
totalização impossível, mas sim dar corpo ao princípio de esperança
- Massimo
Recalcati -
Como era possível que o filósofo que havia defendido que “o inferno são
os Outros”, que havia enfatizado a natureza necessariamente conflituosa das
relações humanas, que havia zombado da moral burguesa da solidariedade e do
Homem (basta lembrar o julgamento afiado sobre o romance de Camus, “A
peste”, culpada de difundir uma “moral da Cruz Vermelha”), naquela
entrevista reabilitasse sentimentos como a esperança, a reciprocidade,
a fraternidade, a partilha? Não era, talvez, o sinal inequívoco
da decadência da sua lucidez ou, pior ainda, da ação sutilmente manipuladora do
seu entrevistador que não escondia sua própria pertença à cultura judaica?
Hoje, essa entrevista está disponível ao leitor italiano pelas edições Mimesis,
com o título “La speranza oggi”, uma tradução eficaz e uma
exaustiva introdução de Maria Russo. A questão que essa conversa
levantou na época da sua primeira publicação permanece central: como é possível
que o filósofo da angústia e da “condenação à liberdade”, o filósofo que
havia atingido o coração da retórica humanista dos bons sentimentos e a
sua má-fé fundamental, defenda agora que “a relação de fraternidade é a
relação primária entre os seres humanos?”. De onde vem essa mudança de direção?
Trata-se de uma abjuração? Vem, talvez, do medo da morte iminente que domina o
filósofo já cego e idoso?
O que é necessário para uma moral é ampliar a ideia de fraternidade até
que ela se torne a relação
única e evidente entre todos os homens
- J. P.
Sartre -
O que mais chama a atenção nessa entrevista é a insistência de Sartre
na palavra “esperança”, que não
pertence propriamente ao seu léxico filosófico. Essa palavra – eis o escândalo!
–, pelo contrário, vem do logos bíblico. É esse o divisor de águas em relação
ao ateísmo convicto do filósofo? Trata-se de uma aproximação – no fim da
corrida – ao sentimento religioso?
Na realidade, nenhuma retórica religiosa acompanha o uso sartreano da
palavra “esperança”. Pelo contrário, essa palavra coincide com o ato, a
escolha, a ação, o projeto. Como que dizendo que não pode existir ação humana
que não traga consigo uma esperança, uma abertura, uma transcendência. Não se
trata de apagar o pessimismo ontológico da sua filosofia como a conhecemos
através de “O ser e o nada”, mas sim de mostrar que a incontornabilidade
do insucesso, da queda, que o caráter injustificado, “demasiadamente”, da
existência não pode apagar a esperança da transcendência, mas sim a transcendência
da esperança. Não se trata, de fato, de autorizar a esperança como uma
“ilusão lírica” ou “religiosa”, mas sim de pensá-la em conjunto, profundamente
unida ao desespero.
E é precisamente nessa conjuntura que reencontro totalmente Sartre.
Não a traição de Sartre, mas verdadeiramente o mais essencial de Sartre.
Se a realidade humana é um “fracasso necessário”, se é a impossibilidade de
alcançar um “fim absoluto”, não obstante, essa impossibilidade não pode apagar
a esperança da sua realização. É uma tensão que anima toda a filosofia de
Sartre.
Não se trata de pensar religiosamente a esperança como libertação da
necessidade do insucesso, mas sim de não deixar que o insucesso seja a última
palavra sobre a existência
- Massimo Recalcati -
Não se trata de pensar religiosamente a esperança como libertação da
necessidade do insucesso, mas sim de não deixar que o insucesso seja a última
palavra sobre a existência. Daí a distinção entre uma “moral da esperança” e
aquele “espírito de seriedade” com o qual o Sartre existencialista já
define a ilusão e a mentira burguesa da existência que acredita ter o “direito
de existir”. Essa “moral da esperança” continua sendo a última palavra que Sartre,
antes de se despedir da vida, nos deixa de herança: é possível que o desejo do
homem não seja apenas aspirado pelo desejo (impossível) de ser Deus, de ser “causa
sui”, mas esteja comprometido na construção de uma comunidade nova, de uma
comunidade inspirada na fraternidade.
Para o último Sartre, deve-se abandonar
uma teleologia da totalidade em nome de uma moral fundada em um novo
desejo de comunidade. Não perseguir uma totalização impossível, mas sim dar
corpo ao princípio de esperança em uma comunidade mais solidária e
justa. A tensão política se une aqui à moral: “É preciso imaginar um
corpo de pessoas que lutam juntas”.
Eu resisto e sei que morrerei na esperança
- J.P. Sartre -
O fim último da história que o marxismo herda do hegelismo
é superado não por uma perspectiva niilista, mas sim pela introdução de
um “outro fim”, uma espécie de “obrigação” que nos vincula à existência do
Outro. Trata-se de uma dependência que absolutamente não exclui a liberdade.
Em vez disso, é preciso repensar o caráter primário da fraternidade. É o passo
levinasiano do último Sartre. Onde, evidentemente, a fraternidade não
contém nenhuma homogeneidade, nenhuma igualdade. No entanto, o encontro com o
rosto do Outro já não suscita mais apenas a angústia medusante da alienação e
do conflito infernal, mas sim uma proximidade que me concerne e me compromete:
“O que é necessário para uma moral é ampliar a ideia de fraternidade até que
ela se torne a relação única e evidente entre todos os homens”.
É isso que leva Sartre rumo a Lévinas e rumo ao judaísmo
messiânico, ou seja, a utopia de um reino que exclui a violência e a
exploração. O velho filósofo não cede, até o seu último suspiro, à tentação da
destruição: “Eu resisto e sei que morrerei na esperança”.
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FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/590727-ha-esperanca-assim-sartre-mudou-de-ideia-artigo-de-massimo-recalcati
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