sexta-feira, 26 de julho de 2019

Primo Levi e o trauma da desumanização

Amir Labaki*
Primo Levi: testemunhar de viva voz foi,
até o fim, parte de sua missão de vida

"Sonhávamos nas noites ferozes
Sonhos densos e violentos
Sonhados com corpo e alma:
Voltar; comer; contar.
Até que soava breve e abafado
O comando da aurora: 'Wstawac';
E no peito o coração partia."
"Wstawac" significa "levantar" em polonês. Em italiano ("Alzarsi"), o mesmo verbo intitula o poema cuja primeira parte reproduzo acima, na tradução de Maurício Santana Dias, da recém-lançada coletânea bilíngue "Mil Sóis" (Todavia, 160 págs). É um dos primeiros escritos pelo judeu italiano Primo Levi (1919-1987), de regresso ao lar após mais de um ano no inferno nazista, passado no campo de concentração de Auschwitz na Polônia.

Voltar; comer; contar. Levi dedicou suas últimas quatro décadas a concretizar o programa ditado por aqueles sonhos. Voltou à Itália, mais precisamente à sua Turim natal, onde permaneceu até a queda final do topo da escadaria do prédio da residência familiar. Suicídio ou acidente, a questão permanece aberta, quando celebramos, na próxima quarta (31), seu centenário de nascimento.

Para comer, Levi dividiu seu espartano cotidiano entre o trabalho como químico e a vocação de escritor. Contar o ocupou noites adentro, encerrado o expediente profissional, nos legando uma extensa e complexa produção literária abarcando ficção e não ficção, narrativas autobiográficas, ensaios, poemas, contos e romances de ficção científica.

Levi já era um escritor diletante, sobretudo de poesia, ao ser preso como membro da resistência antifascista em dezembro de 1943. Depois de dois meses de confinamento no "calmo" campo de Fossoli, perto de Modena, ele foi enviado num dos trens da morte para Auschwitz. "Dos 650 que estavam nesse trem", lembraria ele numa de suas inúmeras e serenas entrevistas, "4/5 foram mortos na mesma noite (da chegada), levados diretamente à câmara de gás".

"Naquele tempo ninguém na Itália tinha ideia do que era Auschwitz", frisou ele em junho de 1982 para Daniel Toaff, no documentário de curta-metragem "Retorno a Auschwitz" (disponível no YouTube). Pela primeira vez lá de volta, acompanhava um grupo de fiorentinos, em sua maioria da comunidade judaica.

Como comprovam as três entrevistas a Giovanni Tesio em "Io Che Vi Parlo" (Eu Que Vos Falo, 2016, inéditas em português), realizadas poucos meses antes de sua morte, testemunhar de viva voz foi, até o fim, parte de sua missão. A ela começou a dar-lhe forma literária, inicialmente em poemas, logo ao completar sua longa volta para casa.

Os versos iniciais catalisaram a narração em prosa memorialística do trauma da desumanização vivenciada. Um dos poemas abre e batiza o pioneiro e cirúrgico "É Isto um Homem?" (1947, Rocco, 256 págs., tradução de Luigi del Re). A questão é colocada de saída: "(...) pensem bem se isto é um homem/ que trabalha no meio do barro/ que não conhece paz/ que luta por um pedaço de pão/ que morre por um sim ou por um não".

"É Isto um Homem?" inaugura no ápice as narrativas testemunhais sobre o processo de extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas ("Holocausto" sendo para Levi uma denominação "retórica e equivocada"). Trata-se a um só tempo de um testemunho literário e de um ensaio sobre o gênero, essencialmente memória mas também reflexão, num estilo seco e minucioso. Tudo está lá: a indústria da morte e as estratégias para dia a dia a ela sobreviver, a fome, a dor, o frio, o destino, o horror.

A harmonia entre ética e estética; forma e conteúdo; as palavras e o narrado é o que torna "É Isto um Homem?" uma experiência literária imorredoura e única. Nos 40 anos seguintes à sua publicação, entre o ficcionista imaginativo e o poeta bissexto, o escritor lhe daria sequência.

Focou-se na narração memorialista de sua acidentada volta para casa em "A Trégua" (1963, Companhia das Letras, 360 págs., tradução de Marco Lucchesi), desenvolvendo e radiografando a batalha cotidiana pela vida contra a morte em "Os Afogados e os Sobreviventes" (1986, Paz & Terra, 168 págs., tradução de Luiz Sérgio Henriquez), para ficar apenas em dois outros volumes obrigatórios.

A organicidade literária, em sua limpidez estilística, explica a rala transcriação cinematográfica da escrita testemunhal de Primo Levi, seja em documentário como em ficção. Com John Turturro no papel central, o grande Francesco Rosi (1922-2015) despediu-se das telas com uma versão desnatada de "A Trégua" (1997), mesmo sendo uma aposta menos arriscada devido à sua ênfase narrativa.

Em cinema, reconheço apenas em "Shoah" (1985), de Claude Lanzmann (1925-2018), o magma de "É Isto um Homem?". É uma das duas fontes de inspiração assumidas pelo cineasta, sendo a outra "A Destruição dos Judeus Europeus" (1961), do historiador Raul Hilberg (1926-2007).

De Hilberg, a cadeia de fatos. De Levi, a potência do testemunho. Em "Shoah" ecoam seus versos: "Meditai que isto aconteceu:/ Vos comando estas palavras./ Gravai-as em vossos corações". Honrai Primo Levi.
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* Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade, Festival Internacional de Documentários.
E-mail: labaki@etudoverdade.com.br
Site do festival: www.etudoverdade.com.br

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