quarta-feira, 3 de julho de 2019

Felipe Coutinho: “Com a Petrobras entregue ao mercado, só restará recorrer ao papa”

A desintegração da Petrobras, com privatização e desnacionalização da estrutura de refino, transporte e distribuição reduz sua eficiência, prejudica consumidores de derivados, acionistas e compromete o desenvolvimento do Brasil, alerta o presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Felipe Coutinho, em entrevista a CartaCapital. O desmonte eleva, por exemplo, os custos de produção de diesel e aumenta a chance de ocorrerem novas greves de caminhoneiros. Com a transferência de controle de refinarias, gasodutos e distribuidoras principalmente a empresas estrangeiras, “os caminhoneiros e consumidores que quiserem reclamar dos preços altos dos combustíveis terão que recorrer ao Papa, porque a Petrobras e o governo dirão que nada podem fazer diante do deus mercado”, dispara Coutinho que analisa a seguir a venda desastrosa das empresas de gasodutos TAG e NTS, o grande perigo de se privatizar as refinarias e as consequências da decisão do STF de permitir que as estatais vendam suas subsidiárias sem autorização do Congresso, entre outros aspectos da situação atual do setor de óleo e gás.
CartaCapital: Quais são as principais tendências do setor petrolífero e das suas empresas nesses cerca de 40 anos estimados para esgotamento das reservas de petróleo?
Felipe Coutinho: É preciso entender precisamente o que significa o “esgotamento”. Não significa que o petróleo vai acabar, ou que vai ser substituído por fontes primárias de energia de melhor qualidade (facilidade de uso e densidade energética), ou em equivalente quantidade (escala). O petróleo barato de se produzir, este sim, já foi esgotado, mas não tem substituto, em termos qualitativos e quantitativos. Cada novo barril de petróleo encontrado é hoje, em termos médios e mundiais, mais caro de se produzir do que aquele barril que deixa de ser produzido pelo esgotamento das melhores e maiores reservas. Esclarecido o sentido do “esgotamento”, podemos avaliar as consequências para a indústria do petróleo, a economia, a sociedade e as relações geopolíticas internacionais. Não há substituto para o petróleo barato de se produzir, mas ele acabou e a humanidade vive as consequências econômicas e sociais deste fato. Estou levando em consideração as informações da indústria mundial, o investimento em exploração e produção e a produção agregada desde 1985 para evidenciar o aumento do custo médio de se encontrar e produzir cada barril adicional de petróleo e então avaliar as consequências para a indústria e a sociedade.

CC: O que o Brasil deveria fazer diante dessa perspectiva?
FC: O Brasil precisa se preparar e planejar sua segurança energética, alimentar e financeira diante do cenário de crise iminente do suprimento energético global e da crise financeira que irá eclodir na sequência da longa depressão iniciada em 2007. O gatilho da próxima crise pode ser o endividamento das corporações ou dos Estados nacionais do centro do capitalismo, EUA ou Europa. Não se pode sustentar dívidas crescentes, nacionais e corporativas, sem o crescimento proporcional das economias nacionais e da geração de caixa das empresas. Ocorre que sem energia barata, de se produzir e consumir, não há crescimento sustentado, aumento da produtividade do trabalho ou desenvolvimento de padrões de bem-estar em economias de mercado cujas principais decisões visam o lucro e a acumulação privada do produto social do trabalho. Garantir a propriedade estatal do petróleo brasileiro, produzi-lo na velocidade requerida para atender a nossa economia, preservar a integridade corporativa da Petrobras, reverter o atual ciclo de privatizações, controlar os fluxos especulativos de capital, realizar a auditoria da dívida pública brasileira, reduzir a taxa de juros da dívida federal para níveis compatíveis com os internacionais, são medidas necessárias para fortalecer a economia brasileira diante das crises financeira e energética que se formam e ameaçam a economia mundial.
Privatizar as refinarias, terminais, bases logísticas e a distribuidora da Petrobras é condenar a companhia a ter resultados empresariais débeis
CC: Por que as maiores empresas petrolíferas do mundo são verticalizadas ou integradas, ou seja, além da parte de exploração possuem também refinarias, terminais, dutos e distribuidora próprias ?
FC: A empresa integrada de petróleo e energia assegura a resiliência empresarial necessária para esta indústria que é submetida à volatilidade do preço do petróleo, fixado em mercados financeiros internacionais e, em especial no caso brasileiro, à volatilidade do valor relativo da moeda nacional. Quanto menor o grau de integração, maior a exposição de uma petrolífera a choques de oferta que derrubam o preço e destroem a lucratividade da atividade de exploração e produção, conforme observado nos anos de 2015, 2016 e no primeiro semestre de 2017. Durante esses 30 meses de preços moderados do petróleo, os balanços trimestrais da indústria internacional apresentaram prejuízos bilionários do segmento de exploração e produção, enquanto os lucros extraordinários do refino, transporte e comercialização garantiram a resiliência das petroleiras integradas.

CC: Mas a Petrobras defende a venda de tudo que não for ligado à atividade de exploração porque, segundo a empresa, isso resultaria em seu benefício financeiro.
FC: A privatização de refinarias, terminais, dutos e distribuidora traz prejuízos muito mais graves à resiliência e sobrevivência da Petrobras, na conjuntura de preços relativamente moderados de petróleo, do que presumíveis benefícios pela redução dos gastos com juros decorrentes da antecipação da redução da sua dívida. Vender refinarias, por exemplo, ao setor privado irá enfraquecer a Petrobras, em um movimento na contramão da indústria, num contexto onde as empresas internacionais de petróleo retomaram os investimentos no parque de refino mundial e, notadamente, as empresas nacionais de petróleo, que estão se fortalecendo em todo o mundo, inclusive através da expansão e integração da capacidade de refino com a petroquímica, a exemplo dos países da Ásia (China, Índia, Indonésia, Malásia), da Rússia (Rosneft e Gazprom) e do Oriente Médio (SaudiAramco).


CC: Há petroleiras que planejam ou tenham reduzido a verticalização? Por quê?
FC: A tendência das maiores companhias de petróleo é aumentar sua integração. Entre as cinco maiores companhias do mundo, quatro são estatais. Das 20 maiores, são 13 estatais. As maiores petrolíferas internacionais, tanto as estatais, quanto as controladas por capital privado, têm elevado seu nível de integração. A lucratividade da exploração e produção das maiores petrolíferas internacionais privadas está quase que diretamente correlacionada ao preço do petróleo, enquanto a lucratividade do refino aumentou quando os preços do petróleo caíram para níveis moderados, em torno de 50 dólares por barril, nos anos de 2015, 2016 e no primeiro semestre de 2017. A capacidade de refino foi o elo da cadeia que respondeu pelo maior incremento de capacidade, de cinco milhões de barris por dia, indicando que a integração vertical continua sendo uma estratégia de agregação de valor para as maiores petroleiras estatais que possuem livre acesso às reservas de petróleo em seus países.

CC: Quais as consequências da anunciada venda de refinarias da Petrobras?
FC: A integração vertical e os ativos do refino, logística, transporte e distribuição são fundamentais para garantir os resultados corporativos da Petrobras. São esses ativos que garantem a geração de caixa nos períodos de desvalorização do real e do petróleo no mercado internacional. A geração de caixa permite que a companhia disponha de recursos para seus investimentos para repor a exaustão das reservas de petróleo e para agregar valor ao petróleo cru, além dos investimentos para produção das energias potencialmente renováveis. A capacidade de gerar caixa, mesmo diante da queda do preço do petróleo e da desvalorização do Real, é fundamental para a administração da dívida da companhia.

Privatizar as refinarias, terminais, bases logísticas e a distribuidora da Petrobras é condenar a companhia a ter resultados empresariais débeis diante das inevitáveis variações cambiais e do preço internacional do petróleo e colocar o Brasil sem autonomia para o transporte de seus habitantes e mercadorias, em prejuízo à produtividade da nossa força de trabalho e à economia nacional. A privatização dos ativos de abastecimento e distribuição que pode auferir recursos no curto prazo compromete definitivamente os resultados futuros do País e da Petrobras e expõe os brasileiros a riscos desnecessários, na contramão da integração vertical adotada pelas maiores companhias privadas e estatais internacionais. A privatização de refinarias, terminais, dutos e distribuidora traz prejuízos muito mais graves à resiliência e sobrevivência da Petrobrás, com preços relativamente baixos de petróleo, do que possíveis benefícios pela redução dos gastos com juros decorrentes da possível antecipação da redução da dívida.
Por que querem constituir no Brasil um modelo colonial exportador de matérias-primas, no caso o petróleo cru, e importador de gasolina, diesel, gás de cozinha e fertilizantes?
CC: Quais são as consequências da privatização e desnacionalização da empresa de gasodutos Nova Transportadora do Sudeste (NTS)?
FC: Uma das consequências é o enorme peso dos gastos com aluguel da malha da NTS nas contas da Petrobras, revelado no relatório do segundo trimestre de 2017 da empresa ao mercado financeiro. Entre as receitas operacionais lançadas no relatório a empresa contabiliza ganhos apurados na venda da participação na NTS, no montante de 6.279 milhões de reais, e na remensuração ao valor justo dos ativos remanescentes (698 milhões). Por outro lado, houve um aumento de 63% das despesas de vendas em relação ao trimestre anterior, chegando a um valor de 3.889 milhões de reais, contra 2.390 milhões no primeiro trimestre de 2017. O relatório verifica que esse aumento é decorrente do crescimento dos gastos logísticos em função do pagamento de tarifas a terceiros pela utilização dos gasodutos, a partir da venda da NTS (1.010 milhões de reais).

CC: Ou seja…
FC: Ou seja, um valor de aproximadamente um sexto do efetivamente recebido pela venda da NTS foi gasto com o aluguel dos próprios gasodutos em apenas um trimestre. Isso significa que, mesmo não levando em consideração nenhuma taxa de desconto ou correção monetária, todo o valor recebido pela venda da NTS terá sido pago em aluguéis em apenas 18 meses. No balanço do segundo trimestre de 2017 a nova dona da NTS, Brookfield Infrastructure Partners, detentora de 28% das ações da transportadora de gás, comunicou aos seus acionistas a “boa nova” de que a geração operacional de caixa (EBITDA ajustado) do setor de utilidades cresceu 60%, passando de 128 milhões de dólares para 205 milhões.  A margem de lucro líquido foi calculada em 81,9%. O mercado acompanhou os ganhos do negócio. Desde o primeiro anúncio da Petrobras sobre a colocação da NTS à venda, no dia 26 de fevereiro de 2016, as ações da Brookfield valorizaram-se em 76%.

CC: Qual o efeito da venda no planejamento estratégico da Petrobras?
FC: A alienação da logística de transporte é contraditória com o planejamento estratégico de uma empresa integrada de energia que deseja maximizar o valor extraído das suas reservas de gás natural. Contudo, a visão financista pode induzir a pensar que seria mais vantajoso vender e embolsar o dinheiro agora para depois pagar aluguel dos gasodutos em “cômodas” prestações pelo restante da sua vida útil.
Em dez anos, o pré-sal atingiu o mesmo patamar alcançado em 50 anos no Mar do Norte e já responde por quase 60% da produção nacional
CC: Como comparar financeiramente a opção de vender e pagar aluguel com a alternativa de manter os gasodutos?
FC: Em termos financeiros é possível perguntar: qual seria a máxima taxa de juros para captação de empréstimos, seja para rolagem de dívidas mais caras ou para outros investimentos, que a Petrobras aceitaria pagar para evitar a venda da NTS? Esta taxa de juros é compatível com as últimas emissões de dívida? Essa taxa de juros é aquela que iguala o valor presente das despesas líquidas incorridas no pagamento de aluguel da malha à NTS em dois cenários. No primeiro cenário, utiliza-se uma taxa mínima de atratividade igual à taxa de captação conseguida em janeiro de 2017 pela Petrobras (6,125% ao ano). Nestas condições, a Petrobras teria uma despesa a valor presente de 17,5 bilhões de reais caso conservasse a propriedade dos gasodutos. Ao contrário, entregando a malha para a Brookfield as despesas líquidas a valor presente são de 25,4 bilhões.

O prejuízo total é estimado em 7,9 bilhões no período. No segundo cenário, poderia ser calculada a taxa de juros que equalizasse o valor presente das despesas líquidas incorridas de ambas as alternativas. O valor estimado é de 18,3% ao ano, três vezes o custo de captação da Petrobras no mercado. Estes resultados esclarecem que, sob a desculpa de arrecadar recursos hoje para reduzir o endividamento, compromete-se o fluxo de caixa futuro e não há atratividade do ponto de vista financeiro. No mesmo dia de fechamento da operação o FIP (Nova Infraestrutura Fundo de Investimentos Participações, fundo gerido pela Brookfield), transferiu 7,65% das ações da NTS para a Itaúsa por 292,3 milhões de dólares nas mesmas condições comerciais da transação entre Petrobras e o Brookfield.

Esta afirmação é confusa, pois uma simples aritmética precificaria essa parcela em 432 milhões de dólares (5,08 bilhões de dólares multiplicados por 7,65 sobre 90). Com o cancelamento das debêntures em mãos da Petrobras Global Trading, a nova NTS nasce sem dívidas. No entanto, a Itaúsa recebeu debêntures conversíveis em ações da NTS a dez anos por mais de 442,1 milhões de reais, com o qual poderá aumentar sua participação acionária no futuro diluindo a da Brookfield e ainda o residual da Petrobras. Qual seria o interesse comercial da Brookfield “doar” 140 milhões de dólares ao Banco Itaú, além de renunciar a 8,5% do lucro que receberia nos anos vindouros? Em troca de que “serviços” o Banco Itaú ganhou este presente? Por que a nova NTS nasce endividada, se toda a sua dívida foi liquidada no ato da venda e mantém um fluxo de caixa robusto?

CC: Qual a conclusão?
FC: Em novembro de 2016 a AEPET antecipou os prejuízos decorrentes desta operação. Apesar disso, o Tribunal de Contas da União autorizou a continuidade da venda NTS e nenhuma análise foi requerida à Petrobras sobre a conveniência da alienação deste patrimônio público. Em termos financeiros, conforme afirmado em resposta à pergunta anterior, podemos perguntar qual seria a máxima taxa de juros para captação de empréstimos, seja para rolagem de dívidas mais caras ou para outros investimentos, que a Petrobras aceitaria pagar para evitar a venda da NTS e ainda se esta taxa de juros é compatível com as últimas emissões de dívida. O prejuízo total é estimado em 7,9 bilhões de reais no período. Alternativamente, poderia ser calculada a taxa de juros que equalizasse o valor presente líquido de ambas as alternativas. O valor estimado é de 18,3% ao ano, três vezes o custo de captação da Petrobras no mercado. Como se vê, os resultados são desastrosos para a Petrobras e seus acionistas.

CC: Como vê a privatização e desnacionalização mais recente, da empresa de gasodutos Transportadora Associada de Gás?
FC: O sistema de gasodutos da TAG, de 4,5 mil quilômetros de extensão, garante o transporte do gás natural da região de Urucu para várias cidades da Região Norte, com destaque para Manaus; das bacias de Campos e Santos para a Região Nordeste e entre os Estados da Região Nordeste. Trata-se portanto de uma subsidiária integral da Petrobras estratégica para o País e para a própria estatal. Estima-se que o valor presente líquido das despesas da Petrobrás decorrentes da venda de 90% do controle acionário da TAG poderá ser de 12,44 bilhões de dólares, em razão dos pagamentos relativos a contratos de transporte de gás natural. A Petrobras comunicou a conclusão dessa venda para o grupo formado pela Engie e pelo fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec (CDPQ).
O fechamento da transação ocorreu em 13 de junho deste ano, com o pagamento total de 33,5 bilhões de reais para a Petrobras, sendo aproximadamente 2 bilhões destinados à liquidação da dívida da TAG com o BNDES. O valor de 33,5 bilhões equivale a 8,61 bilhões de dólares à taxa de câmbio de 3,89 reais por dólar. Subsidiárias como a TAG apresentam lucratividade praticamente garantida, pois suas receitas são asseguradas por contratos ship or pay nos quais a carregadora, que será principalmente a própria Petrobras, obriga-se a pagar pela capacidade de transporte contratada, independentemente do volume transportado. As receitas da TAG estão asseguradas pelos contratos de serviços de transporte, regulados pela ANP, relativos à Malha Nordeste, ao Sistema Gasene, ao Sistema Urucu-Coari-Manaus, ao Sistema Pilar-Ipojuca e ao Sistema Atalaia-Laranjeiras. Em 2016 e 2017, os lucros brutos da TAG foram muito altos, de 5,08 bilhões de reais e de 3,66 bilhões de reais, respectivamente. As receitas de serviços são muito maiores que os custos dos serviços prestados. Em 2016, a receita foi de 6,28 bilhões de reais e o custo de apenas 1,2 bilhão.

As receitas e os lucros garantidos da TAG passarão a ser da Engie. A Petrobras ficará com as despesas de transporte do gás natural e a dependência de uma terceira empresa para transportar sua produção proveniente das bacias do Urucu, do Nordeste e de Campos e Santos, onde está localizada a província do pré-sal. O foco da Petrobras quase exclusivo na área de exploração e produção, ainda que na província do pré-sal, representa um risco para a estatal, pois a lucratividade dessa área é fortemente afetada pela variação dos preços do petróleo, ao contrário do que ocorre com a TAG, onde os patamares de lucro estão praticamente garantidos. Atualmente, a palavra de ordem na indústria do petróleo é diversificação. Na Petrobras, ao contrário do que ocorre no cenário internacional, é concentração de atividades.
Com a privatização de 50% da sua capacidade de refino, os custos médios dos produtores irão aumentar e serão repassados aos consumidores
CC: Como analisa a recente decisão do STF de condicionar a possível privatização da Petrobras e demais estatais à autorização do Congresso mas liberar a venda de subsidiárias?
FC: Essa decisão liminar do Supremo Tribunal Federal causa estranheza, já que ignora o disposto no texto constitucional e libera a venda de subsidiárias sem lei que autorize e sem licitação. A União detém indiretamente o controle acionário de subsidiárias e controladas. Essas empresas, assim com as sociedades de economia mista e empresas públicas somente existem, nos termos do artigo 173 da Constituição Federal, por imperativos da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo. Por isso, essas empresas são estatais. Assim, elas somente podem deixar de existir por uma decisão política de que essas condições não mais existem ou pela incorporação dos seus ativos ao patrimônio da sociedade de economia mista ou empresa pública que as criou. Somente no caso dessa incorporação a administração da controladora pode decidir pela extinção da subsidiária.

A venda do controle acionário de subsidiárias para particulares sem lei que a autorize expressamente, ou seja, desestatização sem decisão política, é um atentado à legitimidade popular. No cenário federal, apenas o proprietário das empresas estatais, o povo, representado pelo controle direto ou indireto do União, pode opinar, por meio de seus representantes eleitos para o Congresso Nacional, sobre a alienação ou não do seu patrimônio. A autorização para privatizar, ou desestatizar, subsidiárias sem licitação, exigindo-se apenas “algum meio competitivo”, permite a realização de negociações fora do controle da sociedade, o que pode beneficiar determinados grupos econômicos privados por não haver transparência e publicidade de todos os atos do processo nos termos da lei. São incalculáveis os prejuízos para a segurança energética da Nação, o suprimento da população e o funcionamento da economia nacional, que passaria a estar sob controle de particulares e estrangeiros, cujo único móvel é o lucro máximo e mais rápido. Não vemos justificativa para isso, em especial na área energética, motor da civilização industrial.

CC: Quais deveriam ser os requisitos para privatizar subsidiárias da Petrobras?
FC: Deve existir a necessária legitimidade, que somente pode ser assegurada pela decisão de seus verdadeiros acionistas, que são o povo brasileiro simbolizado pela União, ou por seus representantes do Congresso Nacional. Também é importante destacar que a exigência de lei apenas para a privatização da empresa mãe, a matriz, não para as subsidiárias, não passa de uma medida inócua decidida pelo STF. Ao liberarem a venda sem lei e sem licitação das subsidiárias e ativos, os ministros do STF permitem que as controladoras, como a Petrobras e a Eletrobrás, sejam esvaziadas até que sobrem apenas dívidas, ou as atividades que não interessem ao mercado.

Ou seja, vende-se o conteúdo produtivo e o Estado fica com uma casca vazia. Finalmente, por que está se querendo constituir no Brasil um modelo colonial exportador de matérias-primas, no caso o petróleo cru, e importador de derivados: gasolina, diesel, querosene de aviação, gás de cozinha, fertilizantes e toda enorme quantidade e tipo de petroquímicos, da mangueira do jardim ao prato da mesa, passando pelos usos industriais? Toda grande empresa de petróleo é integrada. Busca petróleo para abastecer suas refinarias, constrói dutos para transportá-lo e seus derivados, e estende suas atividades por toda cadeia dos produtos que tem origem no óleo bruto.

É esta integração que garante sua sustentação financeira na conjuntura de preços relativamente baixos do petróleo e a obtenção de recursos para pesquisas, desenvolvimento e investimentos, que tantos benefícios trazem para a população brasileira, inclusive geração de emprego. A Aepet se coloca contra as vendas das subsidiárias e ativos da Petrobras por considerá-las lesivas ao patrimônio nacional, à economia brasileira e à paz social. Estamos mobilizados para que essas privatizações não ocorram e, caso não sejamos capazes de evitá-las, que elas sejam o mais brevemente possível revertidas, com os ativos recuperados e reestatizados.

CC: Como ficará a configuração nos próximos anos da cadeia produtiva nacional de óleo e gás destituída de fornecedoras nacionais de equipamentos de prospecção e extração, da maior indústria petroquímica caso a venda da Braskem se efetive, das redes próprias de transporte de gás, de ao menos metade das refinarias e quais as consequências para o País?
FC: As consequências serão mais desindustrialização, primarização da economia, dependência da importação de combustíveis, fertilizantes e petroquímicos, deterioração da capacidade empresarial da Petrobras com maior risco para a administração da sua dívida. Em resumo, o Brasil entra em novo ciclo do tipo colonial, de exportação de produtos primários por multinacionais estrangeiras. Mantido este rumo, o petróleo será esgotado, em benefício do sistema financeiro internacional e de suas empresas controladas.

CC: Como fica o País com a venda, na maior parte para empresas estrangeiras, de cerca de 70% do pré-sal segundo estimativas de alguns geólogos?
FC: Qual a velocidade ideal para a produção do petróleo brasileiro? Nenhum país se desenvolveu exportando petróleo cru por meio de multinacionais estrangeiras. Nenhum país, continental e populoso como o Brasil se desenvolveu exportando matérias primas de baixo valor agregado. Existe forte correlação entre o crescimento econômico e o consumo de energia, Também existe correlação entre o desenvolvimento humano (IDH) e o consumo de energia primária per capita. Para alcançar alto desenvolvimento humano o Brasil precisa aumentar, e muito, o consumo de energia. Estimo a necessidade de um aumento de cinco vezes no consumo de energia primária para que nossa população atinja padrões de vida noruegueses. O cálculo não considera o crescimento da população. Seriam necessários quase 10 milhões de barris de petróleo por dia.

No governo Dilma Rousseff, com o primeiro leilão da partilha e a cessão onerosa, a Petrobras detinha 60% das reservas recuperáveis sob estes dois regimes. As multinacionais privadas Shell e Total alcançavam 26,7% e as empresas estatais chinesas, 13,3% de um total estimado em 15 bilhões de barris de petróleo equivalente (boe). Nos quatro leilões de partilha durante o governo Temer, as multinacionais privadas aumentaram significativamente suas reservas no pré-sal. Neste período, a Petrobras garantiu acesso à apenas 17,4% do volume leiloado. As empresas estrangeiras privadas Shell, BP, Total, ExxonMobil, Chevron e Petrogal alcançaram 54,7%, a estatal norueguesa Equinor (ex-Statoil) ficou com 10,9%, as estatais chinesas com 9,8%, a estatal colombiana com 4,1% e a estatal do Catar com 3% do volume total estimado como recuperável de 12,21 bilhões de barris de petróleo equivalente. Considerando os cinco leilões e a cessão onerosa a Petrobras tem 41%, enquanto as empresas estrangeiras, privadas e estatais, têm acesso a 59% do total volume estimado de 27,21 bilhões de de barris de petróleo equivalente.

O Brasil se torna exportador líquido de cerca de um milhão barris de petróleo equivalente em 2019. Situação preocupante, considerando-se o baixo consumo de energia per capita do país e sua correlação com o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. O pré-sal já responde por quase 60% da produção nacional. Em dez anos, alcançou mais de 1,5 milhões de barris equivalentes por dia, patamar alcançado em 50 anos de produção no Mar do Norte. É necessário limitar a exportação de petróleo cru e diminuir a velocidade dos leilões porque se está alienando recurso estratégico para exportação por multinacionais estrangeiras. Esta alternativa não viabiliza o desenvolvimento da economia nacional.

CC: Qual é a sua análise da política de preços da Petrobras?
FC: A Petrobras adota, desde outubro de 2016, o preço paritário de importação (PPI). Produzimos petróleo, refinamos e produzimos combustíveis no Brasil, mas a direção da Petrobras, desde 2016, decidiu adotar preços proporcionais aos da importação para os combustíveis produzidos nas suas refinarias. Com preços altos em relação ao custo de importação, o diesel da Petrobras fica encalhado nas suas refinarias e parte do mercado brasileiro é transferida para os importadores. A ociosidade das refinarias brasileiras aumenta, há redução do processamento de petróleo e da produção de combustíveis no Brasil. Aumenta a exportação de petróleo cru. Combustíveis produzidos nos EUA são trazidos ao Brasil por multinacionais estrangeiras da logística e distribuídos pelos concorrentes da Petrobras.

A Petrobras perde com a redução da sua participação no mercado. O consumidor paga mais caro, desnecessariamente, com o alinhamento aos preços internacionais do petróleo e à cotação do câmbio. Ganham as refinarias dos EUA, as multinacionais da logística e as distribuidoras privadas. Também são beneficiados os produtores e importadores de etanol, com a gasolina relativamente mais cara que perde mercado. Cabe registrar que apesar do preço do diesel nas refinarias representar cerca de 54% do preço final ao consumidor, impostos são proporcionais e quando o preço varia na refinaria também varia nos postos.

Quando se eleva o preço na refinaria, o reajuste ao consumidor é mais rápido do que quando se reduz. O atual presidente da Petrobras diz que a solução é a privatização de metade das refinarias da Petrobras. Roberto Castello Branco afirma que “vender refinarias não é só bom para a Petrobras. Nós vamos deixar de ser o endereço onde as pessoas batem na porta para reclamar de preço da gasolina, diesel” e acrescentou “eu não quero mais ouvir essa expressão, ‘Ah, a política de preços’”. Então estamos assim, com preços mais altos que os custos de importação, apesar de se produzir e refinar no Brasil. Pretendem privatizar e desnacionalizar metade do parque de refino brasileiro para assim não se falar mais de política de preços dos combustíveis. Se o brasileiro quiser reclamar do preço do diesel, ou da gasolina, vai ter que procurar o papa Francisco. Tudo resolvido? Claro que não.

CC: As políticas de fixação de preços dos combustíveis e a desverticalização ou desintegração em curso aumentam as probabilidades de novas greves de caminhoneiros? Por quê?
FC: A desintegração da Petrobras reduz sua eficiência e eleva os custos de produção. Com maiores custos médios de produção para os produtores de diesel, se espera a elevação dos preços aos consumidores. O principal motivo da greve dos caminhoneiros foram os preços do diesel. Neste sentido, sim aumenta a chance de nova mobilização.

CC: Como essa categoria reage a aumento dos preços de combustíveis em outros países?
FC: Ao longo dos anos, motoristas de caminhões fizeram grandes manifestações em vários países, em geral motivados por altos preços de combustíveis. Mas há também um caso patrocinado pela CIA, no golpe militar do Chile. Assim como no movimento dos caminhoneiros no Brasil, a elevação dos preços dos combustíveis esteve entre os principais motivos para greves históricas em países como Grécia e Colômbia. Houve também paralisações que levaram ao reconhecimento de sindicatos e ao estabelecimento de direitos trabalhistas, como nos EUA na época da Grande Depressão. São exemplos históricos: Estados Unidos (1934, 1974, 1979, 1983), Chile (1972), Grécia (2010), Colômbia (2016) e Irã (2018).

Somente a Petrobras consegue suprir o mercado doméstico de derivados com preços abaixo do custo de importação e, ainda assim, obter resultados compatíveis com a indústria internacional e sustentar elevados investimentos que contribuem para o desenvolvimento nacional. No entanto, a política de preços dos combustíveis e a privatização das refinarias pode impedir que a Petrobras exerça seu potencial competitivo para se fortalecer e impulsionar a economia nacional com seu abastecimento aos menores custos possíveis. É possível, e necessário, reduzir o preço dos combustíveis e, para isso, temos de evitar a privatização e a desnacionalização das refinarias da Petrobras.

A Aepet apresentou proposta para uma nova política de preços para o diesel da Petrobras. Essa política permite a redução do preço do diesel vendido nas refinarias da Petrobras entre 10 centavos e 76 centavos por litro, em função de uma variação do preço do petróleo Brent de 30 dólares a 120 dólares por barril. Foi considerada uma taxa de câmbio de 4 reais por dólar. Esta redução de preços nas refinarias tem reflexo estimado de diminuição dos preços ao consumidor final, nos postos de distribuição, de 15 centavos a 1,18 real por litro. Para o patamar dos preços do petróleo de 70 dólares por barril e câmbio de 4 reais por dólar, a redução do preço ao consumidor média seria de 53 centavos por litro. A política de preços proposta preserva a lucratividade e capacidade empresarial da Petrobras, compatível com seu desempenho histórico e consistente com seus pares da indústria internacional. A política proposta pode ser caracterizada como de Preço Justo e Competitivo.

CC: Quais as consequências da desverticalização em marcha sobre o grau de autonomia da Petrobras na fixação de preços de derivados?
FC: O sistema Petrobras, verticalizado e integrado nacionalmente, é altamente eficiente, permite custos extremamente baixos e por isso possibilita abastecer o mercado brasileiro aos menores custos possíveis. Para isso a Petrobras foi criada, neste sentido realizou seus investimentos e se consolidou. Com a privatização de 50% da sua capacidade de refino, os custos médios dos produtores irão aumentar e serão repassados aos consumidores. Neste caso, os caminhoneiros e consumidores que quiserem reclamar dos preços altos dos combustíveis terão, como eu disse antes, que ir ao Papa, porque a Petrobras e o Governo Federal dirão que nada podem fazer diante do deus mercado.

CC: Como vê a decisão de leiloar os excedentes da cessão onerosa e as regras para ele definidas?
FC: Em 2010, o Executivo Federal e o Congresso Nacional optaram por ceder com ônus para a Petrobras muitas áreas da União na província petrolífera do pré-sal localizadas na Bacia de Santos. O ônus seria utilizado pela União para subscrever ações, com vista à necessária capitalização da estatal. Essa subscrição de ações da Petrobras pela União daria direito aos sócios não controladores a também subscreverem ações na proporção de suas participações no capital social. Os recursos financeiros dos sócios não controladores entrariam no caixa da Petrobras, enquanto os recursos da União seriam utilizados para o pagamento do próprio ônus.

Nesse contexto, foi promulgada a Lei nº 12.276 de 2010 que autorizou a União a ceder onerosamente à Petrobras o exercício das atividades de pesquisa e lavra de cinco bilhões de barris equivalentes de petróleo. A estatal tem a titularidade dos volumes de petróleo e gás cedidos pela União, sendo o exercício das atividades de pesquisa e lavra realizado apenas pela Petrobrás, por sua exclusiva conta e risco, nos termos do Contrato de Cessão Onerosa. O governo pretende leiloar os volumes excedentes aos cinco bilhões de barris equivalentes de petróleo contratados. Em relação aos excedentes ao Contrato de Cessão Onerosa, estimativas efetuadas pela ANP, com base nos estudos realizados pela Petrobras indicam a existência de volumes adicionais recuperáveis de 6 a 15 bilhões de barris de petróleo equivalente.

Para o País, seria melhor a contratação direta da Petrobras, sob o regime de partilha de produção, com elevados excedentes em petróleo para a União. A produção dos excedentes da cessão onerosa por outras empresas petrolíferas, que não a Petrobras, pode reduzir muito a participação governamental na renda petrolífera, mesmo que haja o pagamento de bônus de assinatura de 100 bilhões de reais. Para cerca de 15 bilhões de barris de excedentes, o valor presente líquido da renda petroleira em disputa é muito superior ao que se pretende arrecadar com o bônus de assinatura.
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Fonte:  https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/com-a-petrobras-entregue-ao-mercado-so-restara-recorrer-ao-papa/

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