Mia Couto*
Bernardo acorda tarde, deprimido por ter acordado, angustiado por ser sempre tarde. Olha-se ao espelho, sem vontade de ser pessoa. Eis o que lhe resta: ser um escritor solitário no meio de uma pandemia. A imortal quarentena confirma todos os seus mortais desamparos: tem medo de não entender, tem pavor de não prever. Espreita, de viés, o relógio: afinal, ele sempre acordou tarde, deprimido e angustiado. Aliás, a angústia fica-lhe bem, é uma marca de distinção dos mais lúcidos, uma ruga na alma dos condenados a sentir a existência como uma doença.
Volta a sentar-se na cama, pesa nele uma sonolência que não resolve com o sono. Sempre ficou em casa, custa-lhe agora o confinamento. Deixa os cortinados fechados: se deixou de haver rua, porquê deixar a luz entrar? Sabe que o espera uma pilha de louça suja, um monte de roupa por lavar, um mundo de poeira para limpar. Custa-lhe desperdiçar a sua criatividade em tão rotineiras tarefas. O seu destino é outro, mais original, mais criativo.
As elevadas divagações ficaram para trás, Bernardo não para agora de pensar na empregada, Dona Esperança Maluane. Ainda ontem o patrão lhe ligou, em desespero, para pedir instruções sobre o uso do aspirador. Isso não é o aspirador, Doutor Bernardo, isso é desumidificador. E já está avariado há mais de um ano. Foi o que lhe disse Esperança, com infinita amabilidade. Consola-o pensar que a peste se fatiga a si mesma, como um inferno que se descuida e prostra ante a sua própria imortalidade. A pandemia faz-nos prisioneiros sem cárcere, cria uma nação feita de culpa e de medo.
Liga o computador, os dedos permanecem imóveis. Não lhe vem nada à cabeça. Limpa o teclado, desinfeta as mãos. No final desta tragédia, sobrarão os puros, os que lavaram as mãos e a alma, os que não se deixaram conspurcar pela idade. Confrontado com o vazio, desiste. Este vazio é diferente dos outros, que ele antes inventava na sua sempre fingida solidão. Não está inspirado. Aliás, ele sempre foi contra a inspiração. Quem precisa de musas inspiradoras são os escritores menores. Um bom texto deve ser impenetrável. O segredo, aprendeu ele dos críticos, é ser quase impercetível. O irmão, que é sincero, diz que a sua escrita não peca por excesso de densidade. Peca por falta de imaginação. Não se encontra uma única história em toda a tua obra: assim lhe dizia o irmão.
Tenta rabiscar umas linhas. Cita Hannah Arendt, Walter Benjamin, Ludwig Wittgenstein, Merleau-Ponty. Tudo em vão. O único nome que agora o fascina é o de Dona Esperança Maluane, a empregada doméstica. Sabe o número de telefone dela, mas não sabe onde ela mora, tem uma vaga ideia que seja nos subúrbios de lata. Mas ele nunca visitou um subúrbio. Não sabe quantas pessoas partilham a casa dela, não tem a certeza se têm ligação à energia e à água corrente. E imagina não serem adequadas as mensagens de WhatsApp que lhe pensou reenviar encorajando a leitura, as receitas de chocolate belga, a meditação transcendental. A empregada não tem um smartphone. Pensando melhor: não deve ter livros, nem chocolate belga, nem vagar para a meditação. O vírus é cego, mas a quarentena tem as suas hierarquias sociais.
Ele que tanto escreveu contra a exclusão social percebe agora que a sua vida foi um longo processo de exclusão. O atual distanciamento social sempre foi, afinal, uma constante na sua vida. Procura na lista telefónica um número de um amigo, de um colega, de um aluno. Mas desiste antes de começar. Sofre de um antecipado tédio do que será a conversa. A única pessoa com que lhe apetece falar é Dona Esperança. Talvez não seja a hora apropriada, mas Bernardo não se consegue conter.
– Diga-me, Doutor, o que se passa?
– Preciso muito que venha aqui a casa.
– Não me assusta, patrão, o que se passa?
– Não sei, Dona Esperança, acho que perdi a resiliência.
– Está a sentir o quê, Doutor?
– Acho que estou a passar por uma crise distópica.
– Mamanô!? Vou já para aí.
– Vem de chapa, Dona Esperança?
– Vou demorar porque só deixam entrar nove pessoas em cada viatura. Vou demorar, patrão. Agora fica-se duas horas à espera na fila.
– Não esqueça de pôr a máscara.
Dona Esperança encontra Bernardo estendido no chão junto ao desumidificador. Arrasta-o para a cama, serve-lhe um chá e, sentada na cabeceira, canta para que ele adormeça. O escritor fecha os olhos e pensa: que belos são os cantos ancestrais indígenas. Dona Esperança corrige: esta é uma canção do Roberto Carlos, eu canto mal senão o patrão já tinha reconhecido a canção. Bernardo confirma, contrafeito, o antigo preceito: a música explica melhor o universo que todos os tratados de filosofia.
A empregada ajusta o lençol sobre os ombros do patrão. É o que faz aos filhos. E é isso que diz em voz alta, não vá o homem pensar que ela se aproveita da situação. Retira da bolsa um livro e lê em voz ciciada, num tom de quem sabe amansar velhas angústias. Um sorriso nasce no rosto do Doutor Bernardo. Ele julga escutar Virginia Woolf. O que ela lê é um manual de autoajuda.
E assim acontece nos restantes dias. Dona Esperança vai lavando a louça, engomando a roupa e aspirando o pó. Enquanto trabalha, a empregada canta e conta. E até os silêncios dela falam de uma vida que o patrão desconhecia. Enlevado, Bernardo vai tirando notas num caderninho. Aquilo que antes lhe parecia a encenação do Juízo Final surge agora como a tardia – mas secretamente tão esperada – visita da musa inspiradora. Talvez não chegue nunca a publicar. Mas ele sente que começou a escrever uma história com alma, com gente, com história.
Pela primeira vez, depois do início da quarentena, Bernardo acorda, abre as cortinas, contempla a rua e recusa estar perante a derradeira versão da realidade.
(Crónica publicada na VISÃO 1419 de 14 de maio)
*Escritor português
Fonte: https://visao.sapo.pt/opiniao/a/mapeador-de-ilhas/2020-05-22-a-imortal-quarentena/
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