Países desenvolvidos, ao negligenciar o combate à covid-19 no resto do mundo, descumprem promessas e cometem um erro com repercussões de longo prazo, segundo Duflo — Foto: Nicolas Roses/AP
Livro “A economia dos pobres: uma nova visão da desigualdade” expõe as bases e limitações das abordagens econômicas da pobreza, incluindo os projetos de transferência de renda
Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo
17/09/2021 05h01 Atualizado há 2 dias
A distribuição desigual das vacinas entre países ricos e pobres poderá deixar um legado nefasto: tornar permanentes os retrocessos verificados desde o ano passado na redução dos números da pobreza global. Em muitos lugares, toda uma geração de jovens pode perder a oportunidade de estudar, gerando um efeito cascata sobre indicadores de bem-estar cruciais para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. O alerta é da economista francesa Esther Duflo, professora de alívio à pobreza e economia do desenvolvimento do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
O fracasso em vacinar o mundo em desenvolvimento é um erro incompreensível, lamenta Duflo. Segundo a economista, não só há estudos demonstrando que seria vantajoso investir em generalizar as vacinas, como as instituições necessárias para colocar essa estratégia em prática já existem. Ao negligenciar o combate à covid-19 no resto do mundo, os países desenvolvidos não só descumprem suas promessas, como cometem um erro com repercussões de longo prazo.
Duflo é codiretora do Laboratório de Ação contra a Pobreza Abdul Latif Jameel (J-Pal), que realiza desde 2003 pesquisas sobre pobreza e desenvolvimento em diversos países, incluindo o Brasil. Em 2019, a economista francesa recebeu do Banco Central da Suécia o Prêmio Nobel de Economia, junto com Abhijit Banerjee, seu marido e também codiretor do J-Pal, e o americano Michael Kremer. Os economistas foram premiados por seu desenvolvimento do método de experimentos aleatórios controlados (RCT, na sigla em inglês), em que buscam reproduzir para as disciplinas sociais, como a economia, as possibilidades de controle de outras ciências.
Os países ricos (...) se fecharam em si mesmos, supondo (...) que o melhor a fazer seria simplesmente vacinar suas próprias populações”
No livro “A economia dos pobres: uma nova visão da desigualdade” (Zahar, 344 págs., R$ 84,90), que chega ao mercado brasileiro neste mês, Duflo e Banerjee descrevem sua trajetória acadêmica e expõem as bases e limitações das abordagens econômicas da pobreza, incluindo as estratégias de cooperação internacional e os projetos de transferência de renda. No ano passado, também foi lançado no Brasil “Boa economia para tempos difíceis”, em que os dois economistas estendem suas análises para outros problemas contemporâneos, como a automatização e a mudança climática.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Duflo concedeu ao Valor.
Valor: Segundo a ONU, antes da pandemia o mundo avançava na redução da pobreza, da fome, do acesso à água potável e outros itens dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com a covid-19, muitos desses ganhos foram perdidos. É possível estimar a magnitude das perdas e o que vai ser necessário para voltar à trajetória anterior?
Esther Duflo: O tamanho dos retrocessos com a pandemia é patente quando olhamos os dados do Banco Mundial. O mero número de pessoas que caíram em situação de pobreza foi de mais de 97 milhões no ano passado. Esse número vinha diminuindo havia mais de 30 anos e aumentou pela primeira vez em 2020. É claro que esses dados não dizem tudo e precisam ser lidos como um grão de sal, mas dão uma ideia do tamanho do que foi perdido. A questão é se essa reversão é permanente ou temporária. Ainda não temos como responder a isso. No começo da pandemia, eu estava relativamente otimista com a possibilidade de que fosse um efeito temporário, e que, a partir do momento em que a pandemia estivesse sob controle, a situação voltaria ao normal, com as pessoas trabalhando novamente, tão rápido quanto possível. Uma coisa que observamos é que as pessoas recaem muito rapidamente na pobreza, porque vivem de maneira informal, mas isso também significa que elas conseguem retomar muito rapidamente esse mesmo tipo de trabalho informal, tão logo volte a haver oportunidades.
Valor: Então a sequência de ondas da pandemia pode ter inviabilizado esse cenário.
Duflo: É claro. Neste momento, tem dois fatores que me deixam bem mais pessimista. O primeiro é o quanto a pandemia continua durando, sobretudo por causa da falta de vacinação nos países pobres, o fato de que esses países foram completamente abandonados quando com começou a vacinação. A duração continuada da pandemia os impede de avançarem na retomada da economia. E, em seguida, ela também faz com que certos fenômenos se instalem e amplifiquem e se tornem cada vez mais irreversíveis. Desses, o que me deixa mais preocupada é a “desescolarização”, ou seja, o fato de que crianças deixem de frequentar a escola. Para piorar, os planos de reabertura são muito desiguais.
Valor: O impacto desses 18 meses permanece para o resto da vida desses jovens?
Duflo: Mais do que isso, a questão é que, para muitos adolescentes de países pobres, a oportunidade de estudar pode desaparecer como um todo. Com isso, podem estar sendo criados alguns efeitos permanentes, a partir de uma situação que, em princípio, era temporária. Se a pandemia tivesse durado só alguns meses, o retorno teria sido rápido e o problema não deixaria tantas marcas. Em seguida, é importante mencionar a falta de apoio econômico em vários países, sobretudo os mais pobres. Seus governos não puderam se dar ao luxo de oferecer algum tipo de auxílio à população, que ajudasse a atravessar os meses mais difíceis. A propósito, as escolas foram tratadas em muitos lugares como a última das prioridades.
“As políticas sociais se tornam, enfim, algo que diz respeito a todos nós, e com isso os programas se tornam mais aceitáveis”
Valor: A distribuição desigual de vacinas tem provocado muitas discussões, sobretudo porque houve inúmeras promessas de uma estratégia diferente. Esse caso revela ou nos ensina algo sobre as instituições multilaterais e suas limitações?
Duflo: Não sei dizer o que estamos aprendendo com a desigualdade da distribuição de vacinas e seu efeito sobre a persistência da pandemia. Mas o que me chama a atenção é que algo que não só deveria, como poderia ter sido feito, e que era importante, não foi. Insisto que não havia nenhum motivo para não fazer uma distribuição mais igualitária. Vemos que simplesmente esse não foi um objetivo colocado como prioridade. O ponto é que, caso as lideranças tivessem priorizado essa distribuição, o mundo tinha, sim, as instituições necessárias para conseguir resultados melhores. Vamos tomar o exemplo da Covax [iniciativa global para distribuição de vacinas], que é amplamente considerada como um fracasso. Mas a verdade é que a Covax nunca recebeu o financiamento necessário para ser bem-sucedida. Se tivesse recebido os meios para agir, sejam os meios financeiros, seja a capacidade de receber antecipadamente as doses, certamente seria uma instituição capaz de responder às exigências. Sabemos disso porque, por exemplo, a Gavi [Aliança Global de Vacinas e Imunização, que está à frente da Covax] é um evidente sucesso na vacinação das crianças. Muitas vezes ouço que as instituições são imperfeitas, então teria sido complicado fazer algo melhor do que foi feito, mesmo que houvesse vontade e esforço. Mas não creio, em absoluto, que seja o caso. Ao contrário, acho que os países ricos simplesmente se fecharam em si mesmos, supondo, talvez por razões de política interior, ou então por causa de prioridades específicas das pessoas que estão no poder, que o melhor a fazer seria simplesmente vacinar suas próprias populações e deixar o resto para depois.
Valor: Mas agora, com a dose de reforço, o ciclo recomeça.
Duflo: Exatamente. Praticamente não se passou à vacinação das populações de países pobres, por causa das terceiras doses, além da inclusão de crianças e adolescentes. Enquanto isso, a taxa de vacinação é absurdamente baixa em muitos países africanos e em grande parte do mundo mais pobre. Como consequência, o vírus continua circulando e produzindo variantes. É notável como houve uma desconexão entre o discurso e a prática, já que as instituições globais repetem sempre que estamos todos conectados, só há um mundo, usando conceitos como “saúde planetária”, “one health”, e que ninguém estaria a salvo enquanto não estiverem todos a salvo; o que, aliás, é bem o caso. Ouvimos muito esses discursos, mas nada de real, de prático, foi feito a partir deles. É desolador e incompreensível. Não sei nem como interpretar. Adoraria vir a entender, algum dia, o porquê.
Valor: Essa falha também bate de frente com a racionalidade econômica. Segundo cálculos do FMI e do Banco Mundial divulgados em junho, vacinar toda a população do mundo traria uma economia de centenas de bilhões de dólares.
Duflo: Bate de frente com a racionalidade econômica, mas na verdade bate de frente com todas as racionalidades. Também a da política internacional, a da saúde. O FMI, de maneira até improvável, se apresentou como um campeão da vacinação. Eles fizeram um relatório excelente, mostrando a que ponto seria uma economia enorme para o mundo se fossem gastos apenas US$ 50 bilhões para a vacinação do mundo inteiro. Esse relatório veio a público pouco antes da reunião de cúpula do G7 [em junho]. Pois bem, essa reunião aconteceu. E o que foi decidido? Absolutamente nada.
Valor: Durante a pandemia, seu laboratório se desdobrou em diversas pesquisas simultâneas, com eventos que se sucediam em tempo real ao redor do planeta. Pode-se dizer que foi um período fecundo para a pesquisa empírica sobre pobreza em economia?
Duflo: Certamente foi um período bastante agitado. Não sei se usaria o termo “fecundo”, porque houve ganhos e perdas. Por um lado, tivemos a necessidade de agir muito rápido. Foi necessário exercitar a capacidade de passar muito rapidamente de pequenos experimentos a outros com escala muito maior. De outro lado, no entanto, nós tivemos que parar com tudo que estávamos fazendo antes da pandemia. Não era mais possível ir ver as pessoas, por exemplo. Tivemos que manobrar o transatlântico às pressas, digamos assim. E acho que a rede, como um todo, esteve à altura da tarefa. Muitos dos nossos afiliados, professores que trabalham conosco ao redor do mundo, se puseram imediatamente a trabalhar em questões ligadas à covid-19, seja encorajando comportamentos preventivos, seja trabalhando na questão do impacto da proteção social, ou ainda simplesmente coletando dados descritivos sobre o que estava acontecendo com as pessoas, para ajudar os governos a tomar as melhores decisões.
“Na renda ultrabásica, a grande vantagem [em relação a programas como Bolsa Família] é que o custo administrativo é muito mais leve”
Valor: Tem sido atribuído à pandemia um certo poder de mudar o curso das políticas econômicas, na direção de mais participação do Estado e um certo retorno de políticas de bem-estar. Estamos entrando em uma nova fase econômica?
Duflo: A pandemia certamente teve seu papel, mas essa era uma evolução que já estava em curso antes, de qualquer maneira. Como sabemos, mais ou menos a partir da era de Ronald Reagan como presidente dos EUA [nos anos 1980], houve uma espécie de consenso contra a proteção social, que se generalizou bastante, guiado por uma compreensão da economia que era muito rudimentar. Fazemos a crítica a essas ideias em vários pontos do nosso livro. Por exemplo, a concepção de que se os impostos forem altos demais as pessoas vão deixar de trabalhar, ou vão ficar preguiçosas se houver programas sociais, com assistência elevada demais. Daí se conclui que qualquer programa social é maléfico e, por extensão, não se deve criar impostos para financiar auxílios. Em resumo, não se deve ajudar as pessoas, senão elas se tornam preguiçosas. A culminância dessas ideias, com aceitação generalizada na sociedade, aparece nos Estados Unidos com a reforma do sistema de bem-estar do governo de Bill Clinton, na década de 1990. Levou algumas décadas para que a pesquisa conseguisse mostrar que essa premissa não tem fundamento. Fomos fazendo essas pesquisas e pouco a pouco se estabeleceu o consenso de que o paradigma tinha que mudar. Primeiro entre os economistas profissionais, e agora, pouco a pouco, isto vai chegando aos responsáveis pelas políticas públicas. E agora as coisas começam a se movimentar, pelo menos do lado do Partido Democrata, que chegou ao poder neste ano.
Valor: Já no tempo do governo de Barack Obama havia vozes no Partido Democrata que clamavam por um Estado mais ativo, mas suas demandas não foram acolhidas.
Duflo: A gestão atual está mais disposta do que a de Obama a mudar o rumo, gastando mais, direcionando esses gastos para os mais pobres, para as famílias. Acho que, de maneira geral, essas políticas já estavam nos planos da equipe de Joe Biden, independentemente de haver uma pandemia. Acho que o papel da pandemia foi tornar esses projetos mais realizáveis, do ponto de vista político. Primeiro, porque, graças à pandemia, houve votações bipartidárias, permitindo aprovar os planos de investimento. Além disso, tivemos um experimento em tamanho natural do que é uma economia com uma participação bem maior do governo e nem por isso as pessoas se tornaram preguiçosas. Não pararam de trabalhar só porque estavam recebendo mais assistência social. Isto é o contrário do que acreditava a economia rudimentar que dominou o cenário durante décadas. A população também percebeu esse processo. Acredito que isso muda muito as possibilidades. Uma experiência generalizada como essa que ocorreu durante a covid-19, da qual tanta gente se beneficiou, remove um certo ar de vergonha que existe, por exemplo nos EUA, sobre quem recebe os benefícios. Deixa-se de repetir que esses beneficiários são preguiçosos. As políticas sociais se tornam, enfim, algo que diz respeito a todos nós, e com isso os programas se tornam mais aceitáveis. Se formos olhar esse lado, especificamente, das reformas de Biden, vemos que elas são bastante populares no país.
Valor: Podemos dizer, então, que a concepção de pobreza que vocês criticam era, na verdade, mais moral do que propriamente econômica?
Duflo: Essa concepção se apresentava como econômica. É claro que havia um lado moral que nunca estava muito longe da superfície. Mas a questão é que ela está no beabá da formação do economista: as pessoas reagem aos incentivos financeiros, e se esses incentivos para trabalhar são mais fracos, elas vão trabalhar menos.
Valor: Já que a senhora mencionou o governo Obama, como avalia sua experiência nessa gestão, em 2013?
Duflo: Minha participação era bem pequena. Eu fazia parte de uma comissão de especialistas cuja função era refletir sobre maneiras possíveis de transformar os auxílios e a cooperação internacional. Não posso dizer que tenha estado realmente no interior do Estado. O que posso dizer é que aprendi algo sobre o modo como um governo age, mas muito menos do que aprendo nas minhas colaborações com os governos de países em desenvolvimento, com cada gestão específica, em programas de grande escala. Nessas pesquisas, estamos em contato direto com os responsáveis, por exemplo, pelos recursos humanos de uma região da Índia, ou pelo controle da poluição de um pequeno país da África, ou ainda o Ministério da Fazenda de algum lugar com sérios problemas financeiros. Essas situações nos põem em confronto com o que costumo chamar de “encanamentos das políticas” no dia a dia, o que deixa extremamente claro como não adianta simplesmente ter ideias boas ou plausíveis para conseguir um efeito positivo. A questão é que os detalhes da operacionalização de cada política são de enorme importância e as pessoas os controlam muito mal.
Valor: Ao lado de programas de transferência de renda condicional, como o Bolsa Família no Brasil, e as propostas de uma renda básica universal, que têm recebido bastante atenção nos últimos anos, vocês também propõem a ideia de uma renda ultrabásica, acessível a quem precisar em determinados momentos. Quando é o caso de recorrer a ela?
Duflo: Programas condicionais, como o Bolsa Família, exigem das pessoas que tomem um determinado número de iniciativas. No caso brasileiro, há grande preocupação com a participação escolar das crianças. Esses programas buscam fazer duas coisas ao mesmo tempo: colocar dinheiro no bolso das pessoas que precisam dele e também orientar seu comportamento em uma determinada direção. Fazer com que se vacinem, tenham cuidados preventivos e assim por diante. A desvantagem é o alto custo administrativo. Para dar um dólar a uma pessoa, é preciso gastar mais de um dólar em taxas administrativas, esforços para definir e encontrar o público-alvo, monitoramento. Na renda ultrabásica, a grande vantagem é que o custo administrativo é muito mais leve. A ideia não é oferecer uma renda completamente universal, de modo que as pessoas recebam sempre, mesmo sem precisar, mas que quando efetivamente essa necessidade existir, uma pessoa possa receber o dinheiro sem complicações. A ideia das transferências de renda condicionais é que essa renda tenha um certo papel de chamariz, atraindo as pessoas para que façam outras coisas consideradas desejáveis. Já a ideia da renda ultrabásica é, em resumo, que as pessoas nunca morram de fome. São filosofias diferentes e, por isso, não são mutuamente excludentes. É possível manter os dois programas ao mesmo tempo. Ou ainda criar algo intermediário. Foi o que fizemos no Marrocos, onde funcionava muito bem: a transferência não era condicionada, mas era apresentada como um auxílio para a educação. Chamávamos esse programa de “transferência de renda com rubrica”. Era para a educação, mas não tinha controles.
Valor: Que tipo de critérios opera na escolha desses modelos? Por exemplo, quando vale a pena um programa condicional, em vez do universal, e vice-versa?
Duflo: São muitos critérios. Um deles é diferenciar os países extremamente pobres de outros que são menos pobres. Nos mais pobres, onde os sistemas de dados não são muito bons, faz sentido estabelecer uma renda ultrabásica universal, porque é a única maneira de garantir que vamos encontrar as pessoas que precisam dela. Vimos isso muito claramente com a covid-19. Por exemplo, o que se passou na Índia. Lá, o grande problema dos auxílios durante a pandemia é que as pessoas simplesmente não conseguiam acesso a eles. Foi extremamente complicado fazer valer o direito que elas tinham àquela renda. Por outro lado, um país como o Togo, muito menos sofisticado que a Índia, no sentido administrativo, foi capaz de colocar em prática um sistema universal. Com isso, teve sucesso em apoiar a sua população cada vez que houve a necessidade de fazer lockdown. Assim, nos países onde os dados são mais fracos e chegar ao público-alvo é mais difícil, a renda universal ultrabásica é uma boa solução. Mas, por outro lado, uma vez que tenhamos bons dados sobre a população, por que se privar de estabelecer os objetivos mais específicos e mirar nas pessoas com maior necessidade? Pode-se dar muito mais às pessoas do que propondo a todos.
Valor: Tem crescido também a abordagem da pobreza como multidimensional, indo além da medida tradicional, que toma por base a renda das pessoas. Essa abordagem afeta a capacidade de medir o problema e as pesquisas em torno dele?
Duflo: Sem dúvida, a pobreza não é só uma questão de renda, ou seja, o sentido monetário. É por isso que tratamos a pobreza por diversos ângulos diferentes, em cada um dos capítulos de “A economia dos pobres”. E esses aspectos estão todos interligados, é claro, o que torna o tema ainda mais complexo. Se formos pensar no caso de comunidades que vivem isoladas do sistema econômico e têm se mantido há milênios, de um certo lado essas pessoas podem ter uma boa qualidade de vida, que pode por sinal piorar se o contato com o resto do mundo é feito de maneira errada; mas de outro lado eles têm vidas extremamente difíceis, muitas vezes curtas, também. Se formos pensar em todas as dimensões de sua existência, podemos dizer que de um lado eles têm uma vida muito rica e, de outro, que têm uma vida miserável. Por exemplo, se a taxa de mortalidade infantil é muito elevada, se a expectativa de vida das pessoas é muito baixa, e assim por diante. Todos esses aspectos são importantes. E se as pessoas enriquecem financeiramente, mas empobrecem em termos de suas relações sociais, de sua saúde, de sua esperança de vida, não se pode dizer que sejam menos pobres.
Valor: Temas que vêm ganhando centralidade na pesquisa econômica nas últimas décadas, como a desigualdade e a pobreza, eram considerados secundários e tinham posição marginal na produção acadêmica do último século. Quando vocês fundaram o J-Pal, em 2003, ainda era o caso dos estudos empíricos da pobreza?
Duflo: Eu não diria que era um tema marginal, no sentido de que dizer isso daria a ideia de que as pessoas não percebiam como a pobreza sempre foi, evidentemente, um problema central em economia. Mas certamente, 20 anos atrás, a pobreza, o desenvolvimento, a desigualdade, não eram temas em torno dos quais gravitavam muitos pesquisadores. Comecei minha tese e passei a me dedicar à economia do desenvolvimento em meados dos anos 1990. Nesse período, a pobreza não era um tema que as pessoas costumavam tratar na universidade. Em 2003, já havia um pouco mais de movimento. Mas, antes disso, nos programas de pós-graduação, as pessoas se dirigiam com mais frequência aos temas da macroeconomia, às condições do mercado de trabalho doméstico, e nos Estados Unidos se fazia muita avaliação de políticas públicas. Acredito que havia, sim, uma valorização do assunto, um reconhecimento de que era importante, mas as pessoas pareciam crer que era um campo onde os dados eram muito difíceis de achar, então não havia condições de fazer boas pesquisas. Mas, nesse meio tempo, essa visão mudou completamente.
Valor: Iniciativas como a renda básica universal e outros auxílios diretos, monetários, são substitutos para sistemas de proteção tradicionais, baseados em provisão pública de educação e saúde, proteção ao emprego e mecanismos semelhantes?
Duflo: Não creio que essa seja uma oposição real. Talvez alguém pudesse estabelecer que deve ser buscada uma situação efetiva de igualdade de oportunidades, para que em seguida as pessoas se virem sozinhas. Isso, do ponto de vista de uma lógica econômica. Mas, se formos olhar para como as coisas acontecem, de fato, ou seja, para os alinhamentos políticos, eles se dão em outra ordem: as mesmas pessoas que defendem a expansão dos gastos públicos em educação e outros elementos de um Estado mais presente são aquelas que se mostram mais dispostas a implementar políticas de auxílio direto às pessoas. No plano da política, realmente, ainda estamos mais divididos na linha de governo grande versus governo pequeno.
Valor: Além de esquemas de microcrédito, como os discutidos no livro, vêm ganhando tração iniciativas com moedas complementares e locais, em clubes de troca e cooperativas de crédito, muitas vezes usando tecnologias como as criptomoedas. Como lhe parecem essas iniciativas?
Duflo: Sou bastante contrária aos esquemas de moeda complementar ou local. É muito importante que os governos mantenham o controle sobre a moeda em circulação. Esses projetos, e ainda mais os esquemas que envolvem criptomoedas, me inquietam bastante, por sinal. Não é isso que leva ao sucesso de iniciativas locais, como cooperativas de crédito e de trocas. Aí, o que é difícil é organizar a ação coletiva. Há alguns sucessos e muitos fracassos. É preciso encontrar as boas condições para a cooperação em cada localidade, com suas especificidades. Cada vilarejo, por exemplo, tem suas formas de ajuda mútua e a questão é encontrar os métodos de formalizar ou perenizar esses mecanismos. Mas isso não significa que se possa simplesmente deixar as pessoas se virarem sozinhas, como se esses mecanismos fossem substitutos para o auxílio econômico e a ação do Estado. Há limites para o que pode fazer uma comunidade, sobretudo nos momentos em que ocorre um choque que atinge a todos, seja um choque climático, que afeta uma região, ou a covid, que afeta o mundo inteiro. Nesses casos, é claramente necessário um aporte exterior. Não se pode confiar simplesmente nos mecanismos locais.
Valor: A senhora também tem manifestado preocupação com a possibilidade de que a retomada econômica após a pandemia seja baseada em mais automatização e robotização. Entre as propostas para reduzir o impacto da automatização sobre o trabalho, consta a taxação de robôs. A senhora é favorável a essa proposta?
Duflo: Há uma razão para taxar os robôs: hoje, os sistemas de impostos efetivamente existentes cobram impostos abaixo do que seria necessário sobre a automação. O trabalho é muito mais taxado do que os robôs, basta pensar no seguro-desemprego, nos convênios de saúde e outras cargas. Então, o que acontece é que atualmente se um trabalhador humano e um robô têm a mesma produtividade, é mais barato para a empresa investir em comprar robôs. Hoje, nos sistemas de impostos realmente existentes, podemos dizer que existem incentivos para automatizar a produção, substituindo os trabalhadores, mesmo nos casos em que os robôs não são particularmente produtivos ou superiores aos aos seres humanos. Uma taxa sobre os robôs permitiria corrigir essa distorção.
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