Benjamin M. Friedman, autor de "Religion and the Rise of Capitalism" (Ed. Knopf, 2021)
“A influência do neo-calvinismo sobre a visão de mundo de Smith ocorreu, argumenta Friedman, devido à integração do cotidiano de Smith a todos os laços da vida intelectual, que estão hoje mantidos separados em vários departamentos disciplinares das universidades modernas. Homens educados de todas as esferas da vida costumavam se encontrar semanalmente durante “jantares” no início da tarde em clubes sociais. Smith foi membro fundador de uma das mais prestigiosas de Edimburgo, a Select Society, que incluía Hume, mas também cinco ministros da Igreja da Escócia. As conversas nesses restaurantes eram amplas e, Friedman argumenta que, Smith, sem dúvida, teria participado das animadas discussões em andamento sobre as mudanças na teologia dominante. A confiança religiosa nos efeitos dos esforços humanos de autoaperfeiçoamento estava no ar. Como afirma Friedman, 'Smith e seus contemporâneos estavam secularizando a substância essencial dos princípios teológicos de seus amigos clericais'”, escreve Daniel K. Finn, professor de economia e ética cristã na St. John’s. University, Nova York, EUA, em resenha do livro “Religion and the Rise of Capitalism”, de Benjamin M. Friedman (Ed. Knopf, 2021), publicada por La Croix International, 11-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis o artigo.
Benjamin M. Friedman é um macroeconomista de Harvard que nutre um interesse de longa data em história intelectual.
Eu era pessoalmente impressionado por sua estatura dentro da disciplina, sete anos atrás.
Eu o convidei com 18 meses de antecedência para participar de uma conferência na qual cientistas sociais falariam sobre o bem comum. Ele concordou, desde que não houvesse conflito de agenda com outra palestra que ele daria.
Assim que foi agendada, ele aceitou. A outra palestra era para o Banco de Compensações Internacionais, sediado na Basileia, na Suíça.
Não tente abrir uma conta lá. Essa é a organização que chefia os bancos centrais de todo o mundo – e eles estavam pedindo conselho a Friedman.
Meu infortúnio era o ganho da Europa.
Ele relembrou os bancos centrais de como a Alemanha havia recebido várias rodadas de alívio da dívida depois da Segunda Guerra Mundial, apesar das críticas à irresponsabilidade fiscal alemã no período entre guerras.
Ele então ajudou o Banco Central da Alemanha a aliviar a severa dívida da Grécia, Espanha, e outros.
Friedman toma emprestado o título para este novo livro de uma famosa obra de 1922 de R. H. Tawney.
Religion and the Rise of Capitalism, de R.H. Tawney (1922, versão da capa, Ed. Verso, 2015)
Historiador e defensor da justiça social, Tawney lamentou a perda de critérios morais na corrida da humanidade para aumentar o PIB.
Friedman restringe seu livro à história das ideias, embora estas certamente tenham implicações para a vida em geral.
O livro faz uma afirmação maravilhosamente nova sobre a influência da religião no gênio não religioso de Adam Smith.
Hoje, quando tantos passaram a acreditar no erro histórico que a ciência se desenvolveu em oposição à religião, o argumento de Friedman é renovador.
Primeiro, considere o relato de Friedman sobre a realização de Smith. Ele fez pela vida econômica o que Isaac Newton fizera pela física.
Newton, que morreu quando Smith era um bebê, transformou a ciência por meio de uma teoria do mundo físico baseada em princípios fundamentais. Smith pretendia fazer o mesmo para nossa compreensão do mundo social.
Sua teoria dos sentimentos morais abordou as conexões inatas entre os humanos, enquanto seu livro mais famoso, “Riqueza das Nações”, apresentou uma teoria – fundada em princípios fundamentais sobre a vida humana – para explicar as relações econômicas diárias e o crescimento a longo prazo na prosperidade econômica.
O princípio mais básico em que ele se apoiava era “o esforço natural de cada indivíduo para melhorar sua própria condição”.
Esse esforço gera “uma propensão para o transporte, a venda e a troca”, que por sua vez leva à “divisão do trabalho” (especialização), na qual as pessoas produzem o que fazem de melhor e trocam pelo resto do que consomem.
E com a especialização, as pessoas não apenas se tornam ainda melhores no que fazem, mas frequentemente inventam máquinas que aumentam ainda mais sua eficiência, aumentando sua renda e baixando os preços para outras pessoas.
A riqueza de uma nação aumenta com a prosperidade de seus cidadãos.
Esse princípio fundamental está enraizado no autointeresse – “amor próprio” é o termo de Smith – tanto dos produtores quanto dos consumidores.
“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua consideração pelos próprios interesses”.
No entanto, os consumidores não precisam se preocupar com o poder dos produtores, desde que exista concorrência.
O padeiro não pode cobrar um preço muito alto, ou compraremos nosso pão de outro padeiro na mesma rua. Aqui, Friedman indica, estava uma teoria de caráter newtoniano, baseada em princípios básicos simples, que dava sentido descritivo a uma vida econômica muito complicada.
Como afirma Friedman, “Smith não invocou nenhuma influência externa, nenhuma mudança misteriosa na natureza ou no comportamento humano”.
Então, como a religião estava envolvida? Existem quatro etapas no argumento de Friedman.
O primeiro diz respeito à natureza dos insights científicos mais fundamentais.
Friedman conta com uma variedade de cientistas altamente respeitados que explicaram a importância de uma visão mais ampla do mundo nas descobertas científicas.
Ele cita Einstein sobre a importância de uma “visão de mundo”, mesmo para os físicos: “O pensamento científico é um desenvolvimento do pensamento pré-científico”.
O que é verdade para a física é verdade para o nascimento da economia moderna.
O segundo passo é reconhecer a convicção do século XVIII, que evolui lentamente, de que o interesse próprio pode gerar um bem maior.
A “Fábula das Abelhas”, de Bernard Mandeville (1705), apresentou essa visão em versos estridentes.
Outros, no século XVIII, observaram as consequências não intencionais de grande parte da ação humana.
Mas ninguém antes de Smith apresentou uma teoria para explicar por que isso acontece.
Essa teoria passou a ser conhecida pela imagem da “mão invisível”.
Nas palavras de Friedman, “a busca individual de autointeresse canalizado pela competição de mercado leva a consequências não intencionais de benefício mais geral”.
A influência do neo-calvinismo na visão de mundo de Smith
A terceira etapa do argumento de Friedman concentra-se na transformação do calvinismo escocês.
O protestantismo britânico gerou a Confissão de Westminster (1646), que afirmava os fundamentos da teologia calvinista clássica: a depravação total da natureza humana após a queda e a predestinação de Deus para cada indivíduo, de modo que uma vida de pecado não poderia causar a condenação de quem antes do nascimento foi escolhido para a salvação, nem poderia uma vida de virtude salvar outro que não o foi.
O teólogo holandês Jacob Arminius, do final do século XVII, começou uma mudança dentro do calvinismo ao propor que um ato da vontade humana estava envolvido em receber a graça imerecida de Deus: um dos eleitos poderia rejeitar o plano de Deus para sua salvação.
Friedman rastreia precisamente esses debates, entrelaçados com irrupções na história política britânica.
O resultado foi que os intelectuais calvinistas escoceses do século XVIII passaram a endossar três novas ideias: a bondade natural do homem, a eficácia da liberdade humana e a felicidade humana como meta da criação, junto com a glorificação de Deus.
A etapa final desse argumento é que Adam Smith foi influenciado por essa visão de mundo neo-calvinista, embora ele não a compartilhasse.
Smith não disse quase nada sobre suas próprias crenças religiosas.
A poucas referências fragmentadas a um ser superior em seus escritos indicam que ele era no máximo um deísta.
Seu melhor amigo, David Hume, era abertamente desdenhoso da fé religiosa, um fato que o manteve sempre à espera de uma nomeação à faculdade.
A influência do neo-calvinismo sobre a visão de mundo de Smith ocorreu, argumenta Friedman, devido à integração do cotidiano de Smith a todos os laços da vida intelectual, que estão hoje mantidos separados em vários departamentos disciplinares das universidades modernas.
Homens educados de todas as esferas da vida costumavam se encontrar semanalmente durante “jantares” no início da tarde em clubes sociais. Smith foi membro fundador de uma das mais prestigiosas de Edimburgo, a Select Society, que incluía Hume, mas também cinco ministros da Igreja da Escócia.
As conversas nesses restaurantes eram amplas e, Friedman argumenta que, Smith, sem dúvida, teria participado das animadas discussões em andamento sobre as mudanças na teologia dominante.
A confiança religiosa nos efeitos dos esforços humanos de autoaperfeiçoamento estava no ar.
Como afirma Friedman, “Smith e seus contemporâneos estavam secularizando a substância essencial dos princípios teológicos de seus amigos clericais”.
Habilidoso e preciso
O restante de “Religion and the Rise of Capitalism” (“Religião e a Ascensão do Capitalismo”, em tradução livre) foca em questões dos Estados Unidos, traçando tendências semelhantes no pensamento calvinista e a influência da religião na economia.
É bem conhecido dos historiadores, mas não de muitos outros (incluindo economistas) que a maioria dos fundadores da American Economic Association – AEA eram cristãos comprometidos com o objetivo de implementar o Evangelho Social na vida econômica.
Hoje, os 23 mil membros da AEA é totalmente secular.
Como Thomas Kuhn apontou, as ciências maduras têm paradigmas bem desenvolvidos e raramente são influenciadas substancialmente por forças intelectuais externas.
Friedman relata uma história fascinante do debate americano sobre as implicações econômicas da fé cristã que não tenho espaço para resumir aqui.
Friedman conclui com a mudança nos Estados Unidos de uma identificação do século XIX de grande parte do cristianismo com políticas econômicas progressistas para a aliança pós-Segunda Guerra Mundial entre o cristianismo conservador e políticas econômicas conservadoras.
Ele explica como, por exemplo, tantos cidadãos comuns hoje, sem esperança de deixar um legado para seus próprios filhos, se opõem aos impostos sobre herança dos ricos.
Este é um excelente livro, destinado a ser amplamente discutido.
A afirmação de Friedman sobre Adam Smith é que “o tempo estava maduro para um novo pensamento sobre o interesse próprio”, e os desenvolvimentos religiosos fizeram parte desse amadurecimento.
A evidência dessa influência da religião sobre o pai da economia moderna é, admitidamente, circunstancial.
Mas, é claro, é isso que torna a afirmação de Friedman tão impressionante.
Se houvesse evidência textual para isso, alguém teria argumentado há um século.
A síntese que Friedman atribui a Smith pode ser mais grandiosa do que o próprio Smith tinha consciência.
No capítulo em que Smith argumenta que o amor-próprio motiva os serviços econômicos diários oferecidos por açougueiros e padeiros, ele não afirma que a competição protegerá o consumidor de sua ganância.
Friedman faz essa afirmação para ele – como eu faço toda vez que ensino história da economia – e a afirmação é central para qualquer aprovação moral do sistema de mercado.
Mas precisamos perguntar por que Smith não se preocupa em dizer isso.
Trezentas páginas depois, Smith observa que “quanto mais livre e geral a competição”, maior será “a vantagem para o público”.
Mas isso ocorre como a frase final de um capítulo de quarenta páginas sobre dinheiro e bancos, que não é o lugar para chamar a atenção do leitor para a questão maior.
Podemos ter de admitir que, apesar de nosso interesse na legitimação moral do sistema de mercado e da importância da competição para esse propósito, simplesmente não era uma preocupação significativa para o próprio Smith.
O relato de Friedman do desenvolvimento na teologia protestante é hábil e preciso.
Os leitores católicos reconhecerão nele um afastamento de alguns dos fundamentos da Reforma Protestante de volta a uma visão católica da Criação, da personalidade e da graça.
Aqueles familiarizados com “A Era Secular”, de Charles Taylor, irão apreciar a análise de Friedman das mudanças no Calvinismo como parte da longa estrada para o individualismo secular de hoje que Taylor delineou do século XII em diante.
Este é um livro inovador.
Ele irá satisfazer aqueles interessados no papel da religião no mundo moderno, bem como aqueles que simplesmente desejam compreender melhor a história das ideias que nos trouxeram até onde estamos hoje. Friedman prestou um grande serviço à religião e à economia.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/612810-mao-invisivel-da-teologia 14/09/2021
Nenhum comentário:
Postar um comentário