Anselmo Borges*
O
Deus cristão não tem inveja da realização do ser humano. Pelo
contrário. Ele não nos criou para a sua maior honra e glória, mas para
que sejamos plenamente felizes.
1.
"Faço o elogio da alegria, porque o único bem do Homem é comer e beber e
alegrar-se; isto acompanhá-lo-á durante os dias da vida que Deus lhe
concede viver debaixo do Sol. Vai, come o teu pão com alegria e bebe
contente o teu vinho, porque, desde há muito tempo, Deus aprecia as tuas
obras. Em todo o tempo sejam brancas as tuas vestes, e não falte o
perfume na tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias
que dure a tua vida fugaz que Deus te concedeu debaixo do Sol, os anos
todos da tua vida efémera."
Confrontados
com este texto, quantos cristãos seriam capazes de identificá-lo como
um texto que vem na Bíblia? Realmente, vem na Bíblia e pertence a um
livro chamado Eclesiastes ou Qohélet.
Deus
foi visto frequentemente como inimigo da vida e invejoso da felicidade
dos homens e das mulheres. Já Platão e Aristóteles tiveram de
insurgir-se contra essa ideia terrível e nefasta de um Deus que tem
inveja da felicidade e alegria dos homens e mulheres neste mundo. E foi
precisamente contra um Deus rival do Homem que se insurgiram os chamados
filósofos da suspeita na modernidade. O Assim Falava Zaratustra, de
Nietzsche, concretamente, contra este mundo como vale de lágrimas,
pregou a fidelidade à Terra, à vida e às suas alegrias.
Mas
o Deus cristão não é inimigo do Homem nem seu rival. Pelo contrário, é
Força criadora, que faz ser tudo o que é e quer a plena realização de
todas as criaturas. Alegra-se com a felicidade das pessoas, e está ao
seu lado no combate contra tudo aquilo que as diminui.
Como
escreveu Santo Ireneu, Deus não é interesseiro nem cioso da sua glória;
pelo contrário, "a glória de Deus é o Homem vivo", isto é, a pessoa
humana na sua plenitude, plenamente realizada em todas as suas
dimensões.
A religião autêntica
não é de modo nenhum inimiga da alegria nem do prazer. O que se passa é
que também é necessário compreender que a felicidade não é, ao contrário
do que se julga, a soma de determinada quantidade de prazeres. Pelo
contrário, a felicidade verdadeiramente humana e a consequente alegria
expansiva podem até exigir que se renuncie ao prazer imediato. E não se
pode esquecer o que disse Jesus: "Dá mais alegria dar do que receber."
Dito
isto, podemos repetir o texto aparentemente pouco ortodoxo da Bíblia,
concretamente do Qohélet, um livro melancolicamente pessimista, pois o
tempo tudo devora: "Faço o elogio da alegria, porque o único bem do
Homem é comer e beber e alegrar-se." Aliás, exortações do género
encontram-se também entre os egípcios, como esta que figura no túmulo de
um sacerdote, na necrópole de Tebas: "Vive este dia em alegria,
Neferhotep, excelente sacerdote de mãos puras! Mistura o bálsamo e o
óleo fino, ornamenta a tua amada, sentada ao pé de ti, com uma coroa de
flores de lótus! Que a música e os cânticos ressoem aos teus ouvidos!
Afasta qualquer pensamento sombrio e pensa só na alegria até ao dia em
que fores levado para o país do silêncio."
2.
É preciso repetir constantemente: o Deus cristão não tem inveja da
realização do ser humano. Pelo contrário. Ele não nos criou para a sua
maior honra e glória, mas para que sejamos plenamente felizes. Ele é o
Deus vivo e dos vivos. Por isso, em Cristo, promete a vida plena,
eterna. Não seremos levados para "o país do silêncio".
Foi
pregado ao longo de demasiado tempo que Deus precisou do sangue do
próprio Filho para aplacar a sua ira divina. Pergunta-se: como é que foi
possível pregar e acreditar num Deus vingativo e sádico, um Deus pior
do que um pai humano decente? "Quem segue o pensamento da morte
expiatória de Jesus tem de responder à pergunta: quem é e como é o Deus
que exige a expiação e a aceitou. A resposta supõe que Deus Pai só com a
morte de Jesus na cruz se reconciliou com a Humanidade culpada. Só
através do sofrimento bárbaro e a morte aplacou a sua ira, um pensamento
que à luz da mensagem de Jesus sobre Deus parece a muitos absurdo",
escreveu, com razão, o teólogo H. Vorgrimler. Jesus não morreu para
aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima da maldade dos homens, dos
sacerdotes do Templo e dos senhores do Império. A cruz de Cristo é a
expressão suma do amor incondicional de Deus para com todos. Jesus, o
excluído, é aquele que, em nome do Deus bom, não exclui ninguém. Pelo
contrário, inclui a todos no amor sem condições. Jesus morreu para dar
testemunho até ao fim do Evangelho: Deus é bom.
Então
aprendemos a alegria verdadeira: o sacrifício pelo sacrifício é
detestável, mas, por outro lado, nada vale realmente sem sacrifício. Por
causa do império de uma banalidade mole hoje triunfante, é recusado a
muitos o sabor da alegria que resulta da superação de obstáculos. Nada
de grande, belo e valioso e digno se faz e constrói sem sacrifício. Os
valores merecem que nos batamos por eles, e é esse sacrifício enquanto
luta por aquilo que vale que nos engrandece como seres humanos.
Àqueles
que o criticavam por participar em banquetes oferecidos por pecadores
públicos Jesus respondeu: "Ide aprender o que significa: "O que eu quero
é misericórdia e não sacrifício"". Jesus também disse: "Quem quiser
seguir-me tome a sua cruz todos os dias". Referia-se àquela cruz que dá
testemunho da verdade e que acompanha o combate pela liberdade, pela
racionalidade, pela dignidade, pela justiça, pela criação, pelo amor,
pela alegria de todos.
Torna-se
então pleno de sentido o que Bernard Shaw escreveu: "É uma felicidade
enorme quando se tem a capacidade de poder alegrar-se."
* Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/o-elogio-da-alegria-verdadeira-14128568.html
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