Lilia Schwarcz*
Pintura encomendada pelo império português ganhou uma história própria impressionante: virou uma espécie de patrimônio biográfico e visual da independência brasileira
Passada uma semana do fatídico 7 de setembro de 2021, já é possível olhar para o que aconteceu com “alguma distância”. “Alguma”, pois, como a cada dia o presidente fabrica uma novidade, me parece que essa “distância” jamais será segura, tampouco definitiva.
A data do 7 de setembro nunca foi uma unanimidade, nem nos tempos de d. Pedro e, muito menos, agora. Na época em que o então príncipe se encontrava às margens do Ipiranga – em missão nada oficial, pois voltava de uma visita à Marquesa de Santos, e com suas funções intestinais avariadas, o que fazia com que tivesse que se “apear”, como mostram os documentos, nas proximidades do rio –, já não havia consenso sobre qual data homenagear.
Afinal, o evento foi presenciado por poucos e teve quase nada de exemplar. Na verdade, a data mais importante seria 14 de setembro de 1822, quando d. Pedro chega ao Rio de Janeiro, então capital do Brasil, ou 12 de outubro, quando foi coroado. Além do mais, em São Luís do Maranhão, que tinha ligações diretas com Portugal, foi só em 28 de julho de 1823 que a autonomia foi celebrada. O mesmo ocorreu com a Bahia, capital do país até 1763, que até hoje comemora a independência no dia 2 de julho de 1823. E diferente da lenda dourada de uma independência pacífica e sem grandes conflitos, em algumas províncias deram-se batalhas sangrentas, como a de Jenipapo, no Piauí, em que 200 pessoas morreram.
No entanto, aos poucos São Paulo foi sequestrando a independência e ganhando para si um lugar proeminente, que estava longe de ter no contexto original. É possível dizer que São Paulo virou o lugar central dos festejos por conta de uma única pintura. Sim, pois muitas vezes imagens ganham papel fundamental para a construção da memória coletiva e nacional. Estou me referindo à tela de Pedro Américo, que teve a infelicidade de ter sido entregue no fatídico ano de 1888. A obra era o resultado de uma encomenda do conselheiro do Império, Joaquim Inácio Ramalho, que atuava como presidente da Comissão do Monumento do Ipiranga, que visava elevar a memória da monarquia – que passava, aliás, por um momento difícil e delicado. Já Pedro Américo, contratado em 1886, se comprometeu a entregar a obra no máximo em três anos. Partiu, então, para a Europa e teve sua pintura exposta pela primeira vez em Florença, no dia 8 de abril de 1888. Três meses depois, a pintura chegava a São Paulo. No entanto, diante da situação periclitante da realeza, as autoridades paulistas acharam por bem adiar a inauguração – melhor que a tela ficasse guardada no Museu por alguns anos até que os ânimos arrefecessem. Afinal, o momento estava mais para enterro da monarquia do que para a sua exaltação.
A pintura era uma versão tropical da obra de Ernest Meissonier, realizada em homenagem a Napoleão, e claramente sacrificava a geografia (e a realidade), como até mesmo o artista concordou, em nome da pátria. Por exemplo, o lugar em que d. Pedro recebeu as cartas de seu conselheiro José Bonifácio e de sua esposa, d. Maria Leopoldina, avisando que o rompimento era iminente, não estava localizado numa colina elevada, como destaca a tela. Mas num terreno plano que não ajudava, porém, na elevação do herói. Por outro lado, o príncipe não se achava paramentado e muito menos montado num cavalo fogoso. No caso de viagens longas, o melhor era usar uma mula. E foi em cima de uma “besta baia gateada”, com uma “farda comum”, que a pequena comitiva especialmente enviada (inflacionada em seu número de pessoas pelo artista) encontrou d. Pedro. Dessa maneira, nem o primeiro imperador do Brasil, e muito menos a pintura encomendada em sua honra tiveram destino fácil.
Mas se tudo isso é correto, o certo é que a tela ganhou uma impressionante história própria: virou uma espécie de patrimônio biográfico e visual da independência. Um documento visual do evento às margens do Ipiranga. Foi, sobretudo, a partir dos anos da ditadura militar que o quadro de Américo foi virando um “retrato fiel” da independência, o que, conforme vimos, nunca foi e nem seu autor pretendeu que fosse. Os militares ampliaram muito o desfile do 7 de setembro em 1972, e associaram a imagem de d. Pedro à caserna. Foi assim que a pintura esquecida ganhou estrelato, figurando em selos, notas, cartões postais, moedas, calendários, folhinhas, leques e toda uma parafernália de produtos e valores capazes de transformá-la na última verdade sobre a independência. Também virou mote, durante os anos 1970, para exaltação dos “aliados” e para a construção dos “inimigos”: os “subversivos comunistas”, verdadeiros “algozes da nação”. Já no caso da pintura de Américo; os vis portugueses.
Além do mais, os militares golpistas exploraram o tope da “Ordem e Progresso” para designar a suposta modernização que estariam empreendendo – e é sempre bom lembrar que a ditadura entregou um Estado falido e com inflação de três dígitos – e a “ordem” que estariam promovendo. Ordem nesse caso era a ditadura, o sequestro de direitos, o uso da tortura para matar, coibir e fazer desaparecer. Foi nessa época que os diferentes governos militares moldaram também a ideia de que não ocorrera um “golpe”, a partir de 1964, mas uma “revolução democrática”, um “golpe democrático” – como se esses termos casados dessem conta da contradição que anunciam.
Eis assim como uma simples tela, nascida em um péssimo momento, virou ícone da nacionalidade. Se o filho de d. João cumpria o papel de “libertador”, o mesmo se daria com os militares, que teriam – na versão por eles elaborada e celebrada – restituído aos brasileiros a sua autonomia e liberdade. Também se buscou transformar o traje imaginado de d. Pedro, numa farda militar e assim associou-se o primeiro imperador com os golpistas militares.
Novos regimes, sobretudo os autoritários, costumam sequestrar símbolos pátrios – bandeiras, cores, eventos – e também conceitos e eventos. O golpe militar nada tinha de revolução, e tampouco trazia liberdade aos brasileiros e brasileiras. Na verdade, os tolheu de todos os direitos com a implantação sucessiva de 17 Atos Institucionais, e com a montagem de uma verdadeira “máquina de matar” sob a guarida do Estado.
Retomava-se uma tradição própria ao Exército brasileiro que até hoje se entende como salvador da pátria e fiel da democracia. Não é! Todas as vezes que os militares se imiscuíram na política, sempre assassinaram a democracia. De toda maneira, no Brasil, exaltação da pátria é um mote militar, que em 1964 tornou obrigatória a matéria de “Educação Moral e Cívica”, que incluía cantar o hino, jurar a bandeira e participar de desfile pátrio.
E não seria diferente a sina do feriado de 7 de setembro de 2021, em tempos de Jair Bolsonaro. Impedido de organizar desfile, por causa da pandemia do novo coronavírus, o presidente não só animou como convocou seus fiéis seguidores, que o chamam (não por obra do acaso) de mito, para que tomassem as ruas em manifestações que sob a capa de patrióticas eram genuinamente antidemocráticas.
Novos regimes, sobretudo os autoritários, costumam sequestrar símbolos pátrios – bandeiras, cores, obras – e também conceitos e eventos
Bolsonaro, que compareceu ao evento em Brasília e em São Paulo, parecia entender a si próprio como um misto de príncipe ultrajado por seus inimigos traidores – o STF (Supremo Tribunal Federal) e os comunistas –, um messias no nome e na realidade, mas também como um militar que convocava seu povo para o combate aos infames traidores da pátria.
Para se manterem no poder, governos populistas e autoritários recorrem sempre à construção de bodes expiatórios, e o presidente gosta de seguir essas lições à risca. Sempre começam pela destruição. Nada melhor do que desfazer a autoridade dos ministros do STF, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Nada como reanimar a batalha do bem contra o mal – as urnas auditáveis contra as “corruptas” urnas eletrônicas. Nada como adicionar um caráter militar ao evento, mostrando como, para o presidente, ditadura militar é sinônimo de democracia.
Bolsonaro estaria investido, pois, com as armas da “tradição” – uma tradição inventada – e posando como um d. Quixote; aquele que arrisca tudo pelo seu povo. Já os ministros do STF representariam os terríveis inimigos, os moinhos de vento do presidente.
No entanto, quem planta vento colhe furacão e Bolsonaro teve que lidar com aquilo que provoca e avaliza. Se para ele a manifestação do feriado já era suficiente para mostrar força, sobretudo diante do Exército; se era mais do que suficiente para inverter a percepção dos desavisados – que se iludem fácil com demonstrações como essas que não representam a maioria da população –; se marcava o início da contagem regressiva para o golpe, eis que o “day after” não ficou limitado às comemorações da cúpula presidencial. Ao contrário, caminhoneiros resolveram fazer justiça com as próprias mãos (e veículos) e expuseram aquilo que Bolsonaro gosta de fazer: viver em caos e do caos.
Sabemos que o presidente não é muito adepto ao trabalho duro. Basta notar que em seus 28 anos como deputado federal só soube plantar, cultivar e colher cizânia. Por isso mesmo, ele prefere o show ao dia a dia; o espetáculo e não a dura realidade. A manifestação do dia 7 de setembro, uma terça-feira, tinha tudo de arte do efêmero: muita projeção de catedral, mas pouco tijolo. Não parece coincidência o presidente ter deixado de mencionar a inflação, a crise hídrica e energética, bem como o desemprego galopante. Tampouco se referiu aos mortos pela covid-19 que se aproximam tristemente dos 600 mil. Preferiu fazer política de divisão e de ódio – e sem máscara.
Jair Bolsonaro só esqueceu de combinar com os fiéis aliados que nada deveria, de fato, ocorrer. Não estava no plano, portanto, que o 7 de setembro continuasse no 8 e no 9 de setembro. A festa tinha data para começar e para terminar também. Era um anúncio de golpe futuro, mas não o golpe imediato.
Sendo assim, coube ao presidente performar outro espetáculo de sua especialidade: o “bate e sopra”. Amparado pelo igualmente golpista, Michel Temer, que saiu da obscuridade para posar como chanceler de bandido, Jair Bolsonaro voltou atrás, disse que tudo não passava de ânimos exaltados no “calor da hora”. Todavia, no projeto do atual chefe do Executivo brasileiro, o “bate e sopra” se converte logo em “morde e sopra”. Não durou nada a frágil anistia selada apenas para garantir que deputados e senadores da bancada do governo se mantivessem leais.
O mais importante, porém, é entender que o bolsonarismo está vivo e que as forças retrógradas estão bastante organizadas. É passada a hora dos setores progressistas recuperarem o espaço público como seu. Na história do Brasil, tão marcada por golpes, contragolpes e quarteladas, tradicionalmente a direita fecha junta, enquanto a esquerda se divide. Erramos demais em 2018. Não há tempo para errar novamente em 2022. Um novo vacilo pode custar muito para o país, e para nossa combalida democracia.
P.S.: O título desse artigo – “O sequestro da independência” – é retirado do título do livro que publicarei em 2022 junto com Lucia Stumpf e Carlos Lima, e que trata, justamente, da incrível história da pintura de Pedro Américo.
*Lilia Schwarcz é professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2021/O-sequestro-da-independ%C3%AAncia-Pedro-Am%C3%A9rico-e-Bolsonaro?position-home-esquerda=1&utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo
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