domingo, 19 de setembro de 2021

'Vivemos a era do neocesarismo, marcada por arremedos de ditadores oportunistas, demagogos e egocêntricos', diz acadêmico Michael Lind

Apoiadores de Donald Trump acompanham passagem da comitiva do ex-presidente antes de evento no Colorado Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP 

Apoiadores de Donald Trump acompanham passagem da comitiva do ex-presidente antes de evento no Colorado Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP 

Autor do termo 'turboparalisia' há dez anos, o ensaísta afirma que a sensação de 'muito barulho por nada' não se restringe mais à política externa, e que populistas de direita, como Trump e Bolsonaro,'falam muito, mas fazem pouco' 
 

Há dez anos, o ensaísta Michael Lind cunhou o termo “turboparalisia”. Nas palavras do professor da Universidade do Texas, o neologismo se traduz assim: “é como se a roda das nações-Estado estivesse girando furiosamente, com todos os motores ligados, mas sem nenhum efeito”. Quando da desastrosa retirada dos EUA do Afeganistão, encerrando a mais longa guerra jamais travada por seu país, a colunista Dorrit Harazim escreveu que a palavra voltara a ter atualidade. O autor do recente “A nova guerra de classes: como salvar a democracia das elites burocratas” (em tradução livre)” vai além: afirma que a sensação de muito barulho por nada deixou os domínios da política externa e invadiu o núcleo das democracias ocidentais.

Vivemos hoje, ele diz, a era do “neocesarismo”, protagonizado por “arremedos de César” (uma referência ao ditador romano), como Donald Trump e Jair Bolsonaro, gerados na própria oligarquia que juram combater, “muito desorganizados para se tornarem ditadores, mas quase sempre oportunistas, demagogos e egocêntricos”.  Na conversa com O GLOBO, Lind diz que vê uma saída para evitá-los e fortalecer as democracias ocidentais: resgatar os núcleos de poder social de âmbito local, como igrejas, sindicatos e organizações da sociedade civil.

O desastre estratégico e humanitário da retirada americana do Afeganistão atesta o retorno à turboparalisia ou jamais saímos dela?

O retrato do planeta agora é uma vez mais a de um veículo desgovernado que saiu da pista, em que tudo segue funcionando, mas nada se move. No caso específico da política externa americana, talvez seja preciso agora olhar para trás para entender a turboparalisia. Os Estados Unidos só se tornaram uma potência global após a Segunda Guerra Mundial. Da geração de líderes eleitos, o último a ter se formado nestes EUA pré-dominância foi George Bush pai e, agora, não por acaso, Joe Biden. De Bill Clinton a Donald Trump, nenhum viveu o período formativo em que se pôde entender como tamanho poderio deveria ser usado. A elite política americana contemporânea teve seus anos formativos quando ele já era inquestionável. Não havia motivo para se aprofundar em suas nuances e objetivos. E pior, as instituições burocráticas que os EUA criaram para manter essa dominação — entre elas a CIA — são entes gigantescos com interesses próprios, o principal deles sendo o de manter seus recursos ou aumentar.

Acadêmico e ensaísta Michael Lund Foto: Divulgação
Acadêmico e ensaísta Michael Lund Foto: Divulgação

E é possível relacionar a ascensão do populismo de direita com este mundo em turboparalisia?

Sem dúvida. Nos EUA, há muito barulho e pouco resultado. Há muita energia jogada nas chamadas guerras culturais, com pouco resultado em reformas estruturais. Vou além: acho que o termo hoje é até mais aplicável à fragilidade das democracias ocidentais do que às suas respectivas políticas externas. O computador está ligado sem parar, mas nada muda. E os cidadãos querem mudança. A imagem agora é a de uma máquina daquelas de refrigerante, que você coloca a moeda, escolhe a bebida, mas nada sai. Aí você coloca outra moeda. Nada. O que você faz então? Começa a bater nela, a sacudir, para ver se algo acontece.

Ou seja, a sensação é de que as diferenças ficam restritas ao discurso...

Isso. Há um elemento óbvio de desconexão: você troca o comando, até radicalmente, e nada muda estruturalmente. É cada vez menos relevante se pensar em direita e esquerda ao se tratar dos populismos do século XXI. Claro, há diferenças, mas a similaridade é que é central. O aspecto “neo-oligárquico”. A briga dos nossos dias é a de insiders contra outsiders, interessa mesmo quem é melhor conectado com o poder. Briga-se nos debates de TV, mas todos vão às mesmas escolas e festas, casam-se entre si. O que vivemos é um novo tipo de oligarquia. E quem está completamente desconectado não só do poder político, mas do social, do econômico e do cultural, não está prestando atenção nos corredores do poder pois está muito ocupado (sobre)vivendo sua vida. A não ser em momentos de crise extrema, como recessão global, ataque terrorista, guerra perdida ou pandemia de Covid-19. Aí é quando se revoltam, a ação de fato acontece e aparecem, a norte e sul do Equador, os demagogos, os novos Césares.

Quem são os Césares contemporâneos?

Em geral, membros da mesmíssima elite oligárquica, como Trump, um bilionário da alta sociedade nova-iorquina. Os protagonistas da era do "neocesarismo" são aristocratas, como o original romano, dizendo que representam o povo, que personificam uma insurreição, que atacarão a corrupção e os privilégios de um grupo a que, ironicamente, sempre pertenceram. Em quase todos os casos, esses arremedos de César são oportunistas, demagogos e egocêntricos.

E como enfrentá-los?

Nos últimos 50 anos, instituições como igrejas, sindicatos e organizações da sociedade civil perderam importância. É preciso reconstruí-las, dar a elas algo como um poder de veto nas decisões tomadas pela oligarquia. Era a função que elas tinham, de certa forma, até o fim do século XX, nas democracias ocidentais pré-redes sociais. E não estou falando do Judiciário como poder moderador e protetor das minorias e da Constituição, fundamental neste momento de "neocesarismo", mas da política de âmbito local mesmo. 

O senhor trata da crise de estratos sociais e não de instituições...

Isso. Além de evitar o "neocesarismo", esse empoderamento de esferas locais de poder pode ser um antídoto à “mafiocracia”. Se pessoas comuns não se vêem representadas neste sistema neo-oligárquico, algum tipo de crime organizado, de milícia, de atravessadores da democracia, assume o posto, o discurso do “tomaremos conta de você, a gente resolve”. Tomar o Capitólio foi um símbolo desse “deixa que a gente vai lá e resolve”. Trump é o clássico arremedo de César. Ele não era um projeto de ditador fascista, como parte da academia o viu. Era muito desorganizado para isso, não controlava nem sua própria família, muito menos seu secretariado. Os Césares contemporâneos jamais conseguiriam comandar ditaduras. Quando tentou fazer com que (o então vice-presidente) Mike Pence emperrasse a confirmação da eleição para tentar impugnar votos dados a Biden, o fez atabalhoadamente, via redes sociais. Era puro teatro, culto à personalidade, não estratégia política. O que pode valer não só para o trumpismo, como também, creio, para o bolsonarismo.

E como Joe Biden conseguiu furar este padrão?

Ele viveu a era da política local, das organizações sociais fortes. Passou muitos anos no Senado e negociação está na pele dele, não havia outra maneira para que as coisas fossem adiante no Congresso. Ele é, neste sentido, o anti-César, embora seja mais oriundo da elite econômica do que goste de demonstrar. Ele foi capaz de encerrar a guerra no Afeganistão, ainda que de modo desastroso, o que afeta hoje sua popularidade, e de costurar um pacote de infraestrutura que saiu do papel. E deve conseguir levar adiante uma política industrial sofisticada para confrontar, na medida do possível, a China. Essas eram promessas de Trump que o populista de direita jamais conseguiu cumprir. O arremedo de César falou sobre elas, mobilizou a audiência, mas as propostas não saíram do papel. 

A singularidade de Biden pode ser um fator nas eleições de 2024?

Não apenas na de 2024, mas, de certa forma, para o futuro do Partido Democrata. Foi interessante acompanhar as primárias para a prefeitura de Nova York. O vitorioso, Eric Adams, negro, policial aposentado e prefeitinho do Brooklyn, seguiu a mesma cartilha de Biden. Ele também entendeu que a classe trabalhadora da cidade, em sua maioria negra e hispânica, ao mesmo tempo entende a importância do Estado em suas vidas e é mais conservadora em temas sociais do que a elite branca. Entender esse quebra-cabeças será fundamental para o resultado das próximas eleições, que pode sim ser um rematch Biden-Trump. Para os democratas, concorrer com Hillary Clinton ou John Kerry será um risco imenso, pois são vistos como elitistas e distantes do americano comum. A fraqueza que eles tinham quando foram candidatos anteriormente é ainda mais gritante hoje.

O senhor nasceu e vive no Texas, onde há uma reação conservadora no legislativo neste momento, com o aborto se tornando, na prática, ilegal. O futuro do Partido Republicano passa por aí?

Sim. Mas o que se vê aqui não é apenas uma reação conservadora, e sim o fortalecimento de uma nova aliança republicana. E por conta de dois fenômenos interessantes: estamos vivendo uma migração significativa de pessoas da Califórnia, descontentes com os rumos do estado mais liberal do país, especialmente no aumento de impostos, da pobreza e da criminalidade. Além destes ex-californianos, esta nova aliança, que pode ser repetida nacionalmente, como George W. Bush fez décadas atrás, com outros personagens, quando deixou o Texas rumo a Washington, tem como protagonistas centrais os tejanos, texanos de origem mexicana que, nas últimas três eleições, votaram mais do que nunca nos republicanos. Essa pode ser uma receita que tire os republicanos do "neocesarismo". A ver. 

Fonte: https://oglobo.globo.com/mundo/vivemos-era-do-neocesarismo-marcada-por-arremedos-de-ditadores-oportunistas-demagogos-egocentricos-diz-academico-michael-lind-1-25203583

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