O corpo mole com relação ao impeachment do presidente pode nos jogar em dinâmica da era Lula
Dá para entender o cansaço das pessoas com relação ao impeachment de Bolsonaro. Tudo empaca no presidente da Câmara dos Deputados, e as pressões sobre ele não são das mais consideráveis.
A sensação vem acompanhada de grande otimismo com a eleição de Lula em 2022. A terceira via tem se mostrado puramente imaginária até aqui, e as pesquisas apontam para uma lavada a favor do petista.
Contra Bolsonaro, qualquer um é excelente candidato, na minha opinião. Lula, Doria, Moro, Luciano Huck, quem você quiser. Mas é aí que as coisas se complicam. Misturam-se dois objetivos: tirar Bolsonaro e fazer um novo governo. O que serve para um caso não serve necessariamente para outro.
Imagino uma grande convergência em torno de Lula para ganhar as eleições. Quem seria o seu vice? Alguém do agronegócio ou do varejo? Renan, quem sabe? Qual seria a sua base no Congresso? Uma aliança ainda mais ampla do que a construída das outras vezes?
Toda a habilidade política do ex-presidente para contentar PMDB, PTB e o que seja me parece insuficiente, a esta altura, para conduzir um governo nos próximos anos. Os anos Lula se beneficiaram de uma boa situação econômica. Os avanços sociais cobriram, por um bom tempo, a corrupção e a ausência de reformas essenciais.
Achar possível uma volta àquela situação de conforto seria ignorar o que aconteceu a partir de 2013 e, mais ainda, as próprias razões do bolsonarismo. Derrotar Bolsonaro é possível com largas alianças à direita. Derrotar o bolsonarismo é uma tarefa bem mais difícil e exigiria um bocado de radicalidade. Dou alguns exemplos.
Não me parece possível nenhum avanço no plano dos direitos da mulher, do respeito à laicidade do Estado, do estímulo ao pensamento científico e da melhoria intelectual da população se um futuro governo mantiver as televisões dominadas por igrejas evangélicas.
Por que uma TV, concessão do Estado, pode alugar seu espaço a curandeiros histéricos e enganadores? Ai de quem tocar nesse assunto! “Atentado à liberdade religiosa! Preconceito!” Uma coisa é atentar contra a liberdade religiosa. Outra é facilitar a vida de trambiqueiros.
Outro exemplo. Como permitir que as Forças Armadas e as polícias militares vivam em completo desacordo com o legado da democratização, e com princípios de respeito aos direitos humanos estabelecidos há séculos?
Uma intervenção ideológica radical seria necessária —mas seu sucesso dependeria, também, de uma política de segurança pública de audácia jamais vista… Pois a convicção geral de que “bandido bom é bandido morto” nasce do real desespero de quem vive em áreas de risco.
A mudança no sistema eleitoral seria uma terceira frente: sem o voto distrital misto, ninguém tem controle sobre deputados e vereadores e mal lembra em quem votou.
Por fim, o blá-blá-blá dos economistas neoliberais, com a eterna e velada ameaça de que qualquer coisa de esquerda “afugenta o investidor”, teria de ser combatido. Como acreditar no futuro econômico de um país com infraestrutura em pandarecos, com sistema educacional ridículo, desigualdades sociais gritantes e tanta insegurança pública?
Falo, portanto, de quatro pilares do bolsonarismo: neoliberais, tele-evangélicos, milicianos e fisiológicos. Nem menciono o agronegócio e as mineradoras, cujas exportações seguraram a economia nestes anos.
É muita gente para ser conciliada. São muitas cabeças sobre as quais passar a mão. Unificar uma grande maioria para derrotar Bolsonaro nas urnas pode ser possível. O preço a pagar num governo futuro pode ser altíssimo.
São, como eu disse, duas tarefas distintas. O crescimento de uma mobilização popular, culminando num impeachment, abriria caminho para opções mais claras no momento posterior das eleições.
O corpo mole com relação ao impeachment pode resultar no mesmo que se viu durante a era Lula: um jogo de equilibrismo com a direita, que se torna mais difícil agora que seu ressentimento e radicalização vieram à tona.
Meu raciocínio pode ser acusado de total irrealismo —o impeachment parece distante. Mas o irrealismo de hoje pode se revelar bem realista daqui a alguns anos. Esquecer a experiência de 2013, e dos anos que se seguiram, é também fechar os olhos para o que acontece.
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