Luis Alexandre Ribeiro Branco, PhD.*
Resumo
Segundo alguns tentam explicar, a palavra saudade é uma palavra sem equivalente noutras línguas, e, por isso, é um “sentimento-ideia”, “emoção reflectida”, e ainda, “a promessa de uma nova civilização lusitana” – em suma, uma religião, uma filosofia, uma política tipicamente portuguesa. Quiçá seja a palavra da qual os falantes da língua portuguesa mais se orgulham. É uma palavra-sentimento, com significado profundo.
Neste artigo buscaremos apresentar a temática da saudade e do saudosismo como aparecem na religiosidade dos falantes da língua portuguesa. O artigo terá por apoio as seguintes questões: Qual o significado da saudade? Qual a origem ou origens da saudade numa perspectiva religiosa? Qual é a influência da saudade na teopoesia e poesia lusófona?
Palavras chaves: Saudade; Saudosismo; Portugal; Lusofonia; Cristianismo.
Introdução
A saudade é um sentimento marcante em todas as culturas. Todos os povos têm esta experiência da saudade, do «homesick», de uma certa nostalgia. No entanto, foi no pensamento galaico-português que a saudade tomou novas formas, virou poesia, reflexão filosófica e até mesmo uma religião ou no mínimo parte dela.
Os poetas, filósofos e teólogos portugueses refletiram sobre a saudade como ninguém, a descobriram no cotidiano português como um manto escuro e pesado do qual não se quer livrar, antes pelo contrário, remoe-lo, experimentá-lo a cada manhã ou a cada noite e cantá-lo num fado tristonho.
A saudade tem sido tema de investigação de várias figuras importantes na literatura portuguesa. E o objetivo deste artigo é justamente fomentar ainda mais a reflexão sobre este tema tão importante na cultura portuguesa.
Qual o significado da saudade?
Se desejamos descobrir o significado da saudade na cultura portuguesa, precisamos percorrer alguns caminhos, ter um olhar mais crítico e buscar na literatura, em especial entre os escritores saudosistas e espiritualistas quais foram as suas ideias sobre este tema. O movimento saudosista iniciou-se em 1910 e surgiu com a fundação da revista «A Águia», que circulou em Portugal até 1932. Teixeira Pascoaes envolveu-se com a revista em 1912, com uma grande influência sobre o movimento, que logo envolveu outras personagens. Teixeira de Pascoaes foi sem dúvida um dos que mais contribuiu para a compreensão da saudade no século XX e suas obras são de grande importância para análise deste tema.
Segundo alguns tentam explicar, a palavra saudade é uma palavra sem equivalente noutras línguas, pelo menos no sentido como ela se apresenta na língua e no pensamento português, e, por isso, é um «sentimento-ideia», uma «emoção reflectida», e ainda, «a promessa de uma nova civilização lusitana» – em suma, uma religião, uma filosofia, uma política tipicamente portuguesa. Se desejamos conhecer a saudade em seu sentido mais alargado temos que nos dedicar a uma análise histórico-gramatical desta palavra e também sua significação para o povo português.
A saudade tem a ver com uma nostalgia tipicamente portuguesa, como bem explicou Paulo Borges:
Esta nostalgia (do grego nóstos, regresso (a casa, à pátria) e algos, dor), enquanto dolorosa insatisfação com a condição actual, sentida como exílio, e ânsia de regresso a um espaço recordado como de maior intimidade, evoca aquilo que em português e na cultura poétivo-filosófica galaico-portuguesa se expressa também, e a nosso ver mais plenamente, pela palavra saudade. (Borges 2018, p. 56)
Trata-se ainda daquilo que lemos na obra de Teixeira de Pascoaes, “Regresso ao Paraíso”; (Pascoaes, Silva 1986) uma belíssima tragédia, ao estilo de Dante, sobre a saudade. O livro inicia-se com a descrição do Inferno, onde «Satã consome o fogo dos seus dias cuidando, com amor, do martírio das almas» que ali lhe chegam. Da fronte do Diabo sobressai o símbolo do seu Império, a serpente que seduziu Eva ao enroscar-se na árvore do Paraíso, transformando-a e a Adão, nos dirigentes das noturnas legiões de Satã.
Quando Satã, ouvindo a serpente que prevê o fim da humanidade, envia Adão e Eva para o mundo, «à frente dos demónios aguerridos», não esperava que, pelas recordações do Paraíso, estes revivessem o amor original, sentindo piedade dos seus filhos. Trava-se, assim, uma batalha entre Anjos e Demónios em que, se Adão vencer o demónio que nele se entranhou, poderá regressar ao Paraíso. O homem vive, em Regresso ao Paraíso, uma tragédia que desencadeia-se a partir da saudade. A saudade subjetivada na experiência de Adão e Eva é retratada como um sentimento indomável que consome os patriarcas da humanidade fazendo com que eles repensem suas ações e busquem uma solução que possa ser boa para seus filhos e quem sabe uma possibilidade de regresso ao paraíso.
Qual a origem ou origens da saudade numa perspectiva religiosa?
Em Regresso ao Paraíso, Teixeira de Pascoaes, tenta traçar filosoficamente uma ligação entre o homem e a saudade que este sente do seu estado original no paraíso. É, portanto, uma saudade subjectiva do paraíso que leva o ser humano a este estado nostálgico tão bem descrito na poesia e na literatura portuguesa. Como escreveu Teixeira Pascoaes em sua obra «A Saudade e o Saudosismo»:
Sem Poesia não há Humanidade. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma. A intuição poética ou orfaica antecede, como fonte original, o conhecimento euclidiano ou científico. E nos dá o sentido mais perfeito e harmónico da vida. Aperfeiçoando o ser humano, afasta-o do antropóide e aproxima-o dos antropos. Que a mocidade actual, obcecada pela bola e pelo cinema, reduzida quase a uma fotografia peculiar e uma espécie de máquina de fazer pontapés, despreza o seu aperfeiçoamento moral; e, com o seu fato de macaco, prefere regressar à Selva a regressar ao Paraíso. E assim, igualando-se aos bichos, mente ao seu destino, que é ser o coração e a consciência do Universo: o sagrado coração e o santo espírito. Eis o destino do homem, desde que se tornou consciente. E tornou-se consciente, porque tal acontecimento estava contido nas possibilidades da Natureza. Sim, a nossa consciência é a própria Natureza numa autocontemplação maravilhosa. Ou é o próprio Criador numa visão da sua obra, através do homem. E, vendo-a, desejou corrigi-la, transfigurando-se em Redentor. (Pascoaes, Gomes 1988)
O sonho inconsciente do regresso ao paraíso, na verdade, é a fonte de toda saudade da humanidade. A saudade das coisas, lugares e pessoas representam um sentimento mais profundo, subjetivo e inconsciente daquilo que a humanidade perdeu: o paraíso. E apenas em seu retorno para Deus – em si mesmo transfigurado em Redentor – é que a saudade poderá ser definitivamente satisfeita. Obviamente que não nesta esfera, mas no regresso ao paraíso. A religião tem portanto um papel importante em saciar a saudade do ser humano, uma saudade que não se satisfaz plenamente com o retorno da pessoa amada, com o retorno à pátria querida ou mesmo com a religiosidade. A religião é uma fonte de satisfação, mas não em sua plenitude. Talvez seja a forma mais profunda de lidar com a saudade.
Paulo Borges escreveu que é «fundamental investigar a relação da saudade com motivos centrais da espiritualidade humana». (Borges 2019, p. 14) A saudade como temos visto, encontra sua origem e objeto na espiritualidade. Na cultura budista, Paulo Borges explica que «num certo sentido, estamos saudosos (homesick) da nossa verdadeira natureza» (Borges 2019, p. 14) que é por sua vez espiritual. Portanto, segundo Paulo Borges, a «ânsia de Deus» é já a «presença de Deus». Um Deus ausente que se faz presente na saudade dos seus. Não podemos ter Deus completamente, mas podemos estar completamente absorvidos pela saudade da sua presença de tal forma que esta saudade já é Deus presente em nossos corações.
Qual é a influência da saudade na teopoesia e poesia lusófona?
Neste sentido o cristianismo encontrou na cultura portuguesa um solo fértil onde poderia se desenvolver. Não era um solo fértil para qualquer tipo de religiosidade, mas um solo fértil para os pressuposto do cristianismo, que respondia aos mais profundos anseios da alma portuguesa. Em vista disso, não seria de todo um engano dizer que ser português é ser cristão, ainda que este ser cristão inclua elementos para além do cristianismo bíblico, portanto, «um sincretismo de vertente cristã». (Sá 1992, p. 53) Com isto não quero presumir que o cristianismo seja a única vertente religiosa em Portugal ou dos portugueses. Entretanto, o cristianismo encontrou na cultura portuguesa um ambiente propício para o seu estabelecimento. Vemos, por exemplo, no sebastianismo o mito do retorno, o mesmo encontra-se no cristianismo com a promessa do retorno de Cristo, com a promessa de uma glorificação do corpo que restaurará o homem e o mundo ao seu estado original.
Como apregoado por Pascoaes, o saudosismo vai, portanto – conforme também afirma Maria Lourdes Belchior – agigantar-se como uma religião, com dogmas e ritos cristãos. «A saudade das “origens” equivale a uma saudade religiosa. É desejo, do poeta, de viver no Mundo recente, puro, tal como saiu das mãos do criador. É a nostalgia da Perfeição que explica em grande parte, o desejo de recuperar uma situação paradisíaca, espécie de mito do eterno retorno concretizado no esforço contínuo de presentificar, pela Saudade um passado mítico». (Pascoaes. Gomes 1988, p. 164) «É, no fundo, uma forma de obsessão ontológica: é sede do sagrado e nostalgia do ser. É, em última instância, saudade de Deus». (Pascoaes. Gomes 1988, p. 164)
A saudade tem para os portugueses um sentido eterno, que não termina com o abraço, mas que continua para além do abraço e da presença numa perpétua ânsia de se ter um pouco mais daquilo que já se tem. Não trata-se de um sentimento patológico, mas de um sentimento poético. Todo português é um pouco poeta, seja nas palavras ou nos sentimentos. Esta ansia por «um pouco mais» é externada na interpretação do fado. Dentre as várias suposições, o fado é apresentado como sendo de origem árabe, com os mouros que habitaram a Península Ibérica até ao final do século XV. Se esta suposição estiver certa, é possivel deduzir que o fado era uma forma de expressar a dor, a ausência, a nostalgia, enfim, a saudade das suas origens.
O talento poético lusitano, entretanto, remota aos tempos mais antigos, mesmo antes do nascimento de Portugal como país. São mesmo admiráveis a quantidade e a qualidade dos poetas portugueses num país com dimensões tão pequenas, quando comparado aos outros países. A poesia sempre teve a sua presença marcante na literatura portuguesa. Foi também a poesia uma fonte de inspiração para amores lendários como o de Pedro e Inês de Castro; nos movimentos académicos e filosóficos que também tiveram grande influência nos movimentos sociais e políticos do país.
O escritor português Amorim de Carvalho explica com excelência a presença da poesia e também da filosofia na cultura portuguesa. Em sua obra «Deus e o Homem na Poesia e na Filosofia», Amorim de Carvalho ajuda-nos a compreender o papel do poeta e do filósofo, bem assim o modo como ambos surgem em Portugal. A filosofia é o saber, em pensamento reflexivo e discursivo acerca da realidade na crença duma correspondência entre o real e o pensar, sendo objeto da filosofia todo o pensável incluindo o próprio pensamento – que ao saber não põe limites externos ou do seu objeto, embora se esgote, no homem corpo-e-alma que pensa, em limites internos ou de si mesmo. E aqui nos deparamos com uma realidade: a pobreza na história da filosofia.
Entretanto, pelo facto de ser menos rico na filosofia do que o é na poesia, Portugal desenvolveu uma poesia riquíssima em filosofia. Amorim de Carvalho explica este fenómeno particular português com as seguintes palavras: «O poeta é solitário, esta solidão explicará a riqueza da nossa poesia e o colóquio filosófico que tantas vezes se contém na nossa poesia. E quando o pensador português surge fora da poesia, e ainda quase sem colóquio, ou timidamente mal reconhecido pelos compatriotas, negado até ele mesmo crescendo em si – e quantas vocações não se tem perdido neste drama». (Carvalho 1959, p. 4) Sendo esta a realidade portuguesa, não podemos deixar de mencionar também o papel da teopoesia na filosofia da religião em Portugal. Fernando Pessoa foi sem dúvida o grande poeta e de certa forma o grande filósofo português do século XX. Suas obras são riquíssimas tanto em poesia como em filosofia. Ele expressou lindamente este sentimento agudo da saudade com as seguintes palavras:
Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera do comboio – sim, mas as coisas pequenas da vida, quando as abandono e penso , com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais verei e as terei, pelo menos naquele exato momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e com um sopro frio da boca de Deus roça-me pela face lívida.
O tempo! O passado! Aí algures, uma voz, um canto, um perfume ocasional levantou em minha alma o pano da boca das minhas recordações… Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive não tornarei a ter! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas. (Pessoa 2014, p. 156)
Conclusão
A saudade tem seus mistérios, alguns destes e demonstrado no divino. Como disse o poeta “A saudade é a nossa alma e a nossa Musa” ela é também “Deus” na “saudade de Deus” que o mostra mais presente na própria ausência, revelando-o livre de todas as formas da presentificação que o movimento saudoso transcende: “A saudade de Deus é que é Deus; […] Adoramos a ausência e desprezamos a presença” (Pessoa 2014, p. 111).
Ao voltarmos ao Regresso ao Paraíso observamos que para o poeta Texeira de Pascoaes o sonho inconsciente do regresso ao paraíso seria na verdade a fonte de toda saudade da humanidade. A saudade de Deus! A saudade das coisas, lugares e pessoas trata-se de uma saudade mais profunda, subjetiva e inconsciente daquilo que a humanidade perdeu: o paraíso. E apenas em seu retorno para Deus através de si mesmo transfigurado em Redentor é que a saudade poderá ser definitivamente satisfeita. Obviamente não nesta esfera, mas no regresso ao paraíso. Vive-se, portanto, numa eterna saudade do tudo e do nada, onde o tudo é descrito e o nada indescritível.
Bibliografia
Borges, Paulo. 2019. Presença Ausente: A Saudade na Cultura e no Pensamento Português, Nova Teoria da Saudade. Lisboa: Âncora Editora.
Carvalho, Amorim de. 1959 Deus e o Homem : Na Poesia e na Filosofia. Estudos e Críticas: Porto: Livraria Figueirinhas.
Pascoaes, Teixeira. 1986. Regresso Ao Paraíso. Lisboa: Assírio & Alvim.
Silva, Agostinho da. 1999. Textos e Ensaios Filosóficos. Vol. 1, 2 vols. 1ª ed. Obras De Agostinho Da Silva. Lisboa: Âncora Editora.
Teixeira, António Braz. 1993. Deus, O Mal e a Saudade, Estudos Sobre o Pensamento Português e Luso-Brasileiro Contemporâneo. Vol. 5. Lisboa: Fundação Lusíada.
*Universidade Lusófona, Portugal
Fonte: https://verdadenapratica.wordpress.com/2021/09/20/a-saudade-no-contexto-religioso-lusofono/
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