Guilherme Casarões
O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante o Culto de Ação de Graças promovido no Palácio do Planalto em 2019 -- FOTO: CAROLINA ANTUNES/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICASeguindo o manual dos autocratas, Bolsonaro apela à radicalização religiosa para dividir o país e corroer ainda mais a democracia
Essa mistura de absolutismo medieval com ditadura militar bananeira é traço singular do bolsonarismo. Na história moderna do Ocidente, cristianismo, nacionalismo e militarismo só se fundiram dessa forma nos experimentos fascistas ibéricos de Franco (chefe de Estado da Espanha de 1936 a 1975) e Salazar (chefe de Estado de Portugal de 1932 a 1968). Embora nosso golpe de 1964 tenha sido patrocinado e fomentado por grupos católicos radicais, os militares sempre buscaram manter uma postura laica e ecumênica – inclusive na perseguição e tortura de bispos e leigos católicos que atuavam contra o regime.
No caso de Bolsonaro, a religião está na base do movimento que o conduziu ao Planalto, em 2018, e que o sustenta desde então. Da infame declaração de campanha, segundo a qual o Brasil seria um “país cristão” em que as minorias deveriam se curvar às maiorias, ao desgastado bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, passando por manjados versículos bíblicos, o bolsonarismo não perde uma oportunidade de reforçar essa estranha ideia de nação cristã.
Estranha porque propõe uma total reorganização da nossa leitura de sociedade: todas as clivagens pelas quais buscávamos dar sentido ao Brasil – gênero, raça, classe, regionalismos – são eliminadas em favor de uma dicotomia entre os verdadeiros brasileiros, cristãos, e os traidores da pátria, que não comungam dessa mesma fé (conforme compreendida pelo bolsonarismo). Ao mesmo tempo, esse movimento resolve a antiga disputa entre católicos e protestantes, pasteurizando as diferenças num receituário ideologicamente conservador e tradicionalista. Todos são cristãos e Bolsonaro é seu messias.
Não à toa, um dos atos de campanha mais simbólicos de Bolsonaro ocorreu durante sua viagem a Israel, em maio de 2016. Recém-filiado ao Partido Social Cristão (PSC), ligado à Assembleia de Deus, o então deputado foi batizado nas águas do Rio Jordão pelas mãos do ex-candidato presidencial Pastor Everaldo, presidente do partido. Formalmente católico, mas cercado por um núcleo político-familiar evangélico, Bolsonaro explorou essas ambiguidades para ampliar sua base de apoio junto a grupos religiosos. Desde então, o desbocado capitão passou a misturar suas bravatas politicamente incorretas e apologias à tortura com frases de efeito dominicais.
A estratégia deu resultado: ele ganhou a eleição com amplo apoio de evangélicos e de católicos conservadores – e, ao contrário de outros grupos preteridos ou até mesmo abandonados pelo meio do caminho, os cristãos mais radicais seguem como pedra angular do bolsonarismo. Nesse arco, reúnem-se figuras tão distintas quanto Silas Malafaia, Edir Macedo, Ernesto Araújo e dom Bertrand de Orleans e Bragança.
A fórmula política que assegura a adesão cristã a Bolsonaro pode ser resumida na ideia de nacionalismo religioso. Cunhada pelo sociólogo norte-americano Mark Juergensmeyer, a expressão remete a uma visão de sociedade que condiciona o pertencimento nacional não a critérios legais e laicos de cidadania, mas à filiação religiosa. Trata-se de um fenômeno global que ganhou força no pós-Guerra Fria, especialmente em regiões periféricas do mundo, do Irã ao Afeganistão, do Sri Lanka ao Myanmar. Nelas, a disputa entre capitalismo e comunismo foi suplantada por expressões religiosas de afirmação nacional, com enorme potencial de violência sectária.
Nos últimos anos, a ideia de organização política em torno do eixo religioso-civilizacional expandiu-se para além dos grotões. A crise dos valores liberais do secularismo e do multiculturalismo criou condições para a ascensão de partidos e lideranças populistas de extrema direita, que muitas vezes estão atreladas a uma cosmovisão fundamentalista religiosa. Governos de países tão distintos como Estados Unidos, Hungria, Índia e Polônia passaram a defender a necessidade da regeneração espiritual de suas sociedades, tornando a religião o principal elemento de unidade nacional, em prejuízo de valores como a diversidade, o pluralismo e a tolerância.
O risco evidente desse nacionalismo antiliberal – seja de corte étnico, racial ou religioso – é a linha tênue entre a solidariedade e o supremacismo. Ninguém pode negar a importância dos laços de fé ou de sangue como fundamento da vida comunitária. No entanto, tomar uma religião como moralmente superior às demais, a ponto de se pregar a assimilação forçada, a segregação social ou até mesmo a eliminação literal de quem não pertence ao grupo, é a antítese do espírito secular da modernidade e do projeto democrático que se consolidou no próprio Ocidente ao longo do último século.
Certas democracias populosas foram tomadas de assalto pelo discurso radical religioso. Na Índia, o nacionalismo hindu, também conhecido como hindutva, transformou-se na principal bandeira do governo conservador de Narendra Modi. Ao mobilizar o hinduísmo como parte indissociável da identidade nacional, o premiê vem alterando a legislação e fazendo vistas grossas à violência de sua milícia partidária, a RSS, para transformar cerca de 180 milhões de muçulmanos em cidadãos de segunda classe. Sintomaticamente, entre os traidores da pátria estão, além da grande minoria islâmica, jornalistas, esquerdistas e opositores em geral.
Nos Estados Unidos, apesar de ser um fenômeno antigo (e amplamente documentado), o nacionalismo cristão em sua versão radicalizada está na base do trumpismo, movimento ultraconservador que foi gestado dentro do partido Republicano nos últimos anos. Segundo pesquisa dos sociólogos Andrew Whitehead e Samuel Perry, aproximadamente 20% dos norte-americanos identificam-se com essa teologia política, que subverte narrativas e simbologias cristãs para reconstruir uma versão pura, elevada e segregada da “América”.
Andando de mãos dadas com o supremacismo branco e flertando com o autoritarismo, o nacionalismo cristão explica não somente o apoio incondicional de certos grupos a Trump, mas também arroubos antidemocráticos como a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro deste ano. Em meio à turba que reivindicava a permanência do republicano no poder, viam-se palavras de ordem bíblicas, camisetas com símbolos religiosos e placas exaltando tanto Jesus Cristo quanto seu improvável porta-voz mundano.
Eis a ironia do nacionalismo cristão dos dias atuais: nem Trump nem Bolsonaro são exemplos de vidas devotas, abnegação material ou comportamento pio. Mas são populistas autoritários que perceberam o valor estratégico de se instrumentalizar a religião como forma de construir uma narrativa totalizante e sacramentar o apoio de parcelas numerosas da população. Em nome de Deus, lideram movimentos reacionários, marcados por desrespeito às instituições democráticas, sectarismo religioso e violência política. De quebra, garantem sua governabilidade ao adular lideranças clericais, oferecendo-lhes a aprovação de pautas conservadoras, benesses fiscais e oportunidades de negócios.
No caso brasileiro, são abundantes as evidências de que uma fração expressiva do bolsonarismo é adepta a uma visão radical de nacionalismo cristão. “A relação entre esta nação e Cristo é intrínseca, fundante e inseparável”, diz o programa do partido criado por Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil. A despeito do fracasso da empreitada partidária, que nunca saiu do papel, as implicações concretas dessa teologia política já se fazem sentir – desde coisas mais prosaicas, como cultos escondidos no Palácio do Planalto e indicação de ministros por rateio denominacional, até práticas explicitas de supremacismo cristão, como a evangelização forçosa de indígenas, perseguição a defensoras da legalização do aborto ou destruição de terreiros de religiões afro-brasileiras.
Não restam dúvidas de que nosso nacionalismo cristão, conduzido pelo profeta autoritário e travando uma guerra santa contra inimigos fantasmagóricos, é uma ameaça à democracia brasileira. Para satisfazer seus desejos de poder e seus delírios ideológicos, os cruzados tropicais já estão preparando uma nova investida autoritária, com as bênçãos de Deus e em defesa de Bolsonaro. Resta saber se, como nos Estados Unidos, nossas instituições serão capazes de dar a volta por cima. A esta altura, o compromisso de defendê-las deve ser mais que um mero ato de fé.
Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/quando-cruz-vira-espada/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_75&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
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