domingo, 19 de setembro de 2021

Moacir Gadotti. Educador que conviveu 23 anos com Paulo Freire afirma que sua filosofia é crucial para a retomada das aulas

Moacir Gadotti é presidente de honra do Instituto Paulo Freire Foto: Divulgação/Prefeitura de Florianópolis 

Moacir Gadotti é presidente de honra do Instituto Paulo Freire Foto: Divulgação/Prefeitura de Florianópolis

‘Ele nos deixou a utopia como legado’, diz Moacir Gadotti, presidente de honra do Instituto Paulo Freire 
 

BRASÍLIA - Amigo de 23 anos de convívio e presidente de honra do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti afirma que filosofia do maior educador brasileiro, que completaria cem anos neste domingo, é crucial para a retomada das aulas depois do período sem aulas por conta da pandemia.

Qual o principal legado de Freire para a educação brasileira?

Ele nos deixou a utopia. No sentido do que pode ser feito, de que não somos determinados. É a esperança de que nós podemos ser melhores. A escola pode gestar um país melhor. Um mundo melhor.

O Brasil conseguiu transformar a pedagogia freireana em política pública perene?

Não basta declarar Paulo Freire patrono da educação brasileira, é preciso avançar em propostas concretas inspiradas nele. Ele retomou o sonho de uma educação pública popular e conseguiu implementá-la na secretaria de educação de São Paulo. Há ações que seguem até hoje. Nos movimentos sociais populares, ele está muito presente, sua obra é trabalhada na formação de professores. Não é a presença que gostaríamos que tivesse. Mas não se impõem ideias. Ele mesmo disse que não queria discípulos.

Como a filosofia de Freire pode ser usada hoje?

Os sistemas de ensino colapsaram diante da pandemia porque não sabiam escutar. É preciso escutar o que aconteceu com essas crianças que não tiveram acesso à tecnologia para acompanhar as aulas. A gente precisa muito de Paulo Freire para um retorno acolhedor às aulas. Muitos jovens que desistiram, na realidade, foram expulsos. Não vamos chamar de evasão, eles não tiveram condições de acompanhar. É nesse momento que vamos aplicar Freire na filosofia básica: a pedagogia da escuta, do diálogo, encontrar soluções em conjunto. As palavras “cuidado”, “ternura” e “escuta” deviam estar estampadas em todas as escolas neste retorno.

O MEC exerceu essa escuta?

O MEC está perdido pelos vários ministros da educação, pela inexperiência, pelo tipo de gestão. Não se pode ir para um ministério e adotar os mesmos critérios de lucratividade de uma empresa, falta essa cultura do serviço público nesse MEC. Os mais vulneráveis, que já eram penalizados pelo sistema, foram ainda mais na pandemia. As práticas de Freire são resultado de uma concepção de educação onde o conhecimento é construído de forma dialógica. Não significa que exclui o debate e até o conflito. As diferenças são importantes.

O governo atual ascendeu ao poder posicionando o educador como inimigo. Por quê?

A lógica do inimigo é faz parte da natureza deste presidente. Ele é resultado de um contexto de golpes, inclusive do de 2016, do impeachment que tirou a legitimidade de uma presidenta eleita democraticamente. Quando Paulo Freire foi eleito como o pedagogo a ser “expurgado”, havia na sociedade uma rejeição que se confundia com a desconstrução do pensamento de Freire, porque ele defendia a democracia, a participação, os direitos humanos, o que não interessava a uma parte da elite herdeira de senhores de escravos. Freire representa um pensamento humanista, emancipador, contrário ao que os donos do poder têm hoje.

O senhor acha que o ódio a Paulo Freire é passageiro?

A barbárie foi produzida historicamente, não é algo que você possa equacionar cientificamente. É um projeto de desconstrução não de Paulo Freire, mas da cidadania. A população está se conscientizando, mas existe um núcleo de resistência, muitas vezes iludido. Há uma espécie de fetichização (no bolsonarismo), o “mito”. As pessoas seguem o presidente como um guru, um santo. Quando a pessoa começa repetir muito a palavra do outro, ela perde sua existência.

Houve interlocução com algum dos ministros que passaram pelo MEC?

O instituto não teve nenhuma proximidade, escuta. E sofremos, claro, muita perseguição nas redes sociais. Mas uma coisa que aprendi com Paulo Freire, que foi atacado duramente, é não polemizar. Ele nunca personalizava as críticas. Temos que debater ideias. Não se enfrenta o fascismo na lógica do fascismo.

O MEC sequer mencionou o centenário de Paulo Freire. O que isso significa?

Ele representa um outro projeto de sociedade. Celebrá-lo significa celebrar causas que o governo condena. 

Fonte: https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/educador-que-conviveu-23-anos-com-paulo-freire-afirma-que-sua-filosofia-crucial-para-retomada-das-aulas-25203051

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