domingo, 26 de setembro de 2021

Patrícia Vanzella: ‘A música foi um meio eficaz de reconexão social na pandemia’

 


Pesquisadora e coordenadora do projeto Neurociência e Música da UFABC fala sobre como as músicas de que gostamos têm a capacidade de alterar sistemas neuroquímicos. ‘A música é, em boa medida, parte do que nos torna humanos’

Amauri Arrais 26 de Setembro de 2021

Das cantorias nas varandas ao retorno dos shows em eventos-teste, passando pelo boom das lives, a impressão é de que a música nunca foi tão importante quanto agora, uma ferramenta indispensável para atravessar a pandemia. Nada muito novo para quem se dedica há anos a estudar os efeitos dos acordes no cérebro.

“Hoje temos cada vez mais evidências, embora ainda haja um percurso de pesquisa a ser percorrido, de que determinadas músicas, especialmente aquelas que a gente gosta, que nos emocionam, têm a capacidade de alterar sistemas neuroquímicos específicos”, diz a pesquisadora Patrícia Vanzella, que coordena o projeto Neurociência e Música da UFABC (Universidade Federal do ABC).

Estes sistemas, afirma a pesquisadora, estão associados às experiências de recompensa, motivação e prazer, às respostas imunológicas e até mesmo à percepção de afiliação social. “A música forneceu um meio extremamente eficaz de reconexão social, permitindo que os nossos cérebros se sentissem conectados mesmo sem uma interação face a face.”

Mas ainda que muitos desses benefícios da experiência musical sejam conhecidos, a pandemia trouxe novas perguntas. Vanzella cita, por exemplo, se fazer música online, circunstância a que muitos compositores tiveram que se adaptar no período, produz os mesmos efeitos que reunir-se ao vivo do ponto de vista do funcionamento cerebral.

Junto com o grupo que coordena desde 2015, a pesquisadora investigou durante a pandemia mudanças nos comportamentos musicais de crianças e cuidadores em distanciamento social. O estudo foi publicado numa edição especial da revista científica Frontiers sobre o papel da música na crise da covid-19.

Pianista desde os 6 anos, com passagem por algumas das principais orquestras do país, Patrícia Vanzella também coordena as “Conversas Neuromusicais”, série de diálogos com acadêmicos de várias partes do mundo sobre temas como os efeitos da experiência musical na capacidade de reconhecer emoções. Na entrevista a Gama, a professora fala ainda sobre os aprendizados que podemos levar da nossa relação com as canções neste período e por que a música é, em boa medida, parte do que nos torna humanos.

Em vez de buscar um ansiolítico, vamos tentar ouvir uma música que a gente gosta antes?

  • G |No início da pandemia vimos muito o uso da música como terapia para as pessoas internadas. Se espalharam os vídeos de profissionais da saúde tocando ou cantando para os pacientes. Houve uma redescoberta desse papel da música?

    Patrícia Vanzella |

    Há registros de que a música tem sido usada desde tempos imemoriais para regular o humor, o estado de ânimo e promover a sensação de bem-estar. E também de que a música tem sido eficientemente usada como alternativa não-farmacológica no tratamento de certas condições ou distúrbios neurológicos. Tem até um provérbio popular, que parece ter suas origens nos filósofos gregos, que diz: “La musique adoucit les mœurs”, que em uma tradução livre seria “a música suaviza os costumes” ou “suaviza a mente”. Qual seria o processo pelo qual a música é capaz de fazer isso? Hoje a gente tem cada vez mais evidências de que determinadas músicas, especialmente as de que gostamos e que nos emocionam, têm a capacidade de alterar sistemas neuroquímicos específicos associados às experiências de recompensa, motivação e prazer, estimulando níveis de dopamina e de opióides; a sistemas de regulação de níveis de excitabilidade e estresse, modulando níveis de cortisol e outros hormônios; a sistemas associados nas respostas imunológicas, alterando níveis de serotonina, endorfina; e a sistemas também associados a percepção de afiliação social, modulando níveis de ocitocina. Do ponto de vista fisiológico, esses efeitos podem ser observados por meio de alterações nos batimentos cardíacos, na taxa de respiração, na condutância galvânica da pele (medida que reflete a intensidade emocional pela transpiração), temperatura corporal, pressão arterial e até no diâmetro pupilar. Com técnicas de neuroimagem mais recentes, é possível ver o recrutamento de áreas encefálicas envolvidas no processamento de emoções e no chamado sistema de recompensa, que é ativado em qualquer tipo de experiência prazerosa. Muitos pacientes e muitos profissionais da área da saúde podem se beneficiar da escuta musical em um momento tão delicado como esse. Ao mesmo tempo, teria que ser uma escuta customizada, da preferência de cada um e no momento que cada um desejasse ouví-las. A música que te faz relaxar pode ser uma que me incomoda profundamente.

Carlos Alvarez via Getty Images

  • G |Também num primeiro momento da pandemia, vimos em vários lugares do mundo pessoas cantando nas varandas, tocando instrumentos durante o isolamento. A música tem esse caráter de pertencimento?

    Patrícia Vanzella |

    Sim, a música é uma atividade essencialmente coletiva. O uso que a gente faz hoje dela, individualizado, é muito recente na história evolutiva dos seres humanos. A música é uma atividade que serve como fundamento para várias manifestações sociais. A gente vê exemplos disso nos círios religiosos, cantigas de ninar, cantigas de roda, hinos patrióticos, cantos de guerra, tudo isso é feito em conjunto, não individualmente. E esse papel social da música se explica pelo fato de ela ser capaz de evocar emoções, de modular o humor e possibilitar a sincronização de movimentos e de estados de ânimo. Isso acaba levando à coesão social e a um sentido de identidade, de pertencimento. Veja que as atividades musicais durante a pandemia rapidamente se adaptaram às medidas de distanciamento social. As pessoas começaram a cantar nas sacadas, assistir a shows ao vivo em redes sociais ou mesmo cantar em grupos online. Eu mesma gravei um vídeo de uma ópera para dois pianos e orquestra com cada músico em sua própria casa e a sensação que me deu de fazer isso foi muito boa. A música forneceu um meio extremamente eficaz de reconexão social, permitindo que os nossos cérebros se sentissem conectados mesmo sem uma interação face a face. Fazer música em conjunto, ainda que à distância, é uma forma eficiente de driblar os efeitos nefastos do isolamento social sobre a saúde mental. E pode ser uma forma de estimular a solidariedade e de atender às necessidades sociais básicas.

A música é capaz de evocar emoções, de modular o humor e com isso possibilitar a sincronização de estados de ânimo. Isso leva a um sentido de pertencimento

  • G |Ao mesmo tempo, o que vimos depois de um tempo foi uma certa fadiga das lives e apresentações remotas. Muita gente sente falta da experiência musical presencial. Os efeitos na nossa mente são diferentes?

    PV |

    A gente não tem ainda estudos que possam responder essa pergunta cientificamente. É uma coisa até que fez a gente pensar: será que fazer música em conjunto ou online, do ponto de vista neurobiológico, é a mesma coisa do que fazer música ao vivo? O periódico científico Frontiers publicou durante a pandemia uma edição especial dedicada às pesquisas sobre o papel da música nesse período da pandemia, chamada “Convergência Social em termos de Distanciamento Espacial: O papel da música durante a pandemia da covid-19”. Nós também publicamos um estudo no qual exploramos mudanças nos comportamentos musicais de crianças e cuidadores em distanciamento social na pandemia. Mas de fato está todo mundo meio saturado de olhar para as telas. Com a necessidade de distanciamento, a música acabou se adaptando a essa nova circunstância, mas nada substitui a experiência de estarmos juntos. O ser humano é um animal social.

  • G |Acredita que podemos tirar algum aprendizado dessa experiência toda? Há uma valorização maior da experiência musical para além da pandemia?

    PV |

    Acho que resgatamos um pouco desse papel que a música pode ter no bem estar, no nosso dia a dia. É algo que fazíamos sem perceber. Antes da pandemia, a gente usava a música para ter essa conexão – as pessoas se juntavam para tocar, para ouvir música. Tenho um aluno de iniciação científica que fez um levantamento com estudantes universitários sobre o papel da música durante a pandemia, e foi fundamental para a manutenção de um certo bem estar emocional. O que era muito comum pra eles, que era se reunir, se tornou impossível. Então a música acabou entrando, de certa forma, para apaziguar um pouco a necessidade. Houve um aumento do consumo de música durante a pandemia, isso é algo que levantamos no nosso trabalho sobre cuidadores e crianças. Houve um aumento nas atividades musicais dentro de casa com as crianças. Então, se tem alguma coisa que a gente pode levar, é que podemos recorrer à música como forma de ajudar a relaxar, a se sentir bem, em momentos como esses. Em vez de buscar um ansiolítico, vamos tentar ouvir uma música que a gente gosta antes?

Carlos Alvarez via Getty Images

  • G |O que está envolvido na habilidade de tocar um instrumento? Por que tem gente que se esforça tanto e não consegue e para outras pessoas parece tão natural?

    PV |

    Todo mundo pode tocar um instrumento, mas todos nós temos mais facilidade em alguma coisa do que em outra. Eu posso ter mais facilidade para tocar piano e você, para jogar xadrez. É natural que as pessoas apresentem habilidades distintas. Mas os seres humanos são seres musicais. São raríssimos os casos de pessoas que apresentam algum tipo de comprometimento no processamento musical que as impeçam de entender a música, distinguir duas melodias, ou que sejam incapazes de cantar e dançar. A gente nasce com habilidades básicas para se engajar em atividades musicais. Estudos mostram, por exemplo, que bebês recém-nascidos já são capazes de perceber regularidades nos pulsos rítmicos, reagem emocionalmente a música, são incrivelmente sensíveis ao contorno de melodias, tanto na música quanto na fala. A mera exposição à música da cultura em que estamos imersos molda a forma como a gente vai gerar expectativas e fazer sentido da nossa escuta musical ao longo da vida. Só que para desenvolver as habilidades para tocar um instrumento com fluência ou escrever uma sinfonia, por exemplo, é de fato necessário muito trabalho e muita dedicação. E aí entram questões das preferências, das habilidades naturais e da motivação. É normal que alguns se dediquem a isso e que de fato se tornem grandes músicos e grandes instrumentistas e outros, por mais que gostem de música, acabem indo por outros caminhos.

Os humanos são seres musicais. Bebês são capazes de perceber regularidades nos pulsos rítmicos, reagem emocionalmente à música

  • G |O que a ciência já sabe das vantagem da prática musical em outras áreas não musicais?

    PV |

    Que o envolvimento musical é capaz de produzir alterações no nosso sistema nervoso, tanto do ponto de vista estrutural quanto funcional. A gente fala em neuroplasticidade, uma característica organizacional que é fundamental para o sistema nervoso e que permite que ele se modifique em resposta a mudanças na estimulação ambiental. Esses processos neuroplásticos são observados ao longo da vida — por isso que é possível começar a estudar um instrumento mais tarde. A escuta musical também induz mudanças neuroplásticas, mas são de curto prazo e o processo de treinamento e de aquisição de expertise musical, por outro lado, pode induzir alterações neuroplásticas que são permanentes. O treinamento musical promove alterações em áreas auditivas, áreas de integração multimodal, no corpo caloso — esse feixe de fibras que conecta os dois hemisférios do cérebro –, em áreas frontais envolvidas na linguagem, na memória operacional, em estruturas subcorticais e até no tronco encefálico. Só que essas diferenças anatômicas e funcionais, que a gente observa quando a gente compara os indivíduos com e sem treinamento musical, têm que ser interpretadas com muito cuidado, porque elas podem resultar tanto na plasticidade induzida pelos anos de treinamento, especialmente se ocorreu durante a infância, como de diferenças anatômicas pré-existentes, que poderiam predispor certas pessoas a se dedicarem à prática musical.


  • G |Então não é certo fazer uma relação direta entre a prática musical e habilidades cognitivas em outras áreas?

    PV |

    Como o treinamento musical envolve todo esse nosso aparato neurobiológico, a gente de fato pode pensar se não ajuda em outras áreas. É uma pergunta inevitável. De fato o treinamento musical traz alguns benefícios, mas os estudos têm que ser interpretados com cautela. Associações não significam causa. Precisa haver estudos longitudinais. Pode ser que as pessoas já tenham de início mais motivação, mais facilidade nessas áreas cognitivas que estão sendo avaliadas. Muito tem se tentado justificar o ensino musical nas escolas com o argumento de que pode beneficiar habilidades cognitivas relacionadas a outras disciplinas. O ensino musical pode trazer benefícios em si mesmo por ser uma atividade complexa e desafiadora, que envolve múltiplos processos cognitivos, afetivos. Pode ampliar as possibilidades de expressão e promover o desenvolvimento humano de uma forma mais ampla, além de proporcionar a oportunidade de expansão do universo de experiências estéticas, por exemplo.

  • G |Vez por outra nos deparamos com alguma declaração de cantor ou compositor famoso dizendo que a música atual é muito ruim, que já não se faz música de qualidade. Por que há essa rejeição ao que é novo?

    PV |

    É muito comum a gente encontrar essa categorização. Eu, pelo menos, não gosto de separar as coisas dessa forma. Gosto de pensar que há música boa e música ruim mas, mesmo assim, quando faço essa separação tenho que ter critérios. E, nesse caso, entra muito da preferência de cada um. Lembrando o que eu falei antes, se você começa a compartimentar dessa forma, acaba se distanciando da ideia de que a música é algo que nos torna humanos. Todo mundo tem direito a fazer música porque todo mundo é musical. Cada um se expressa como pode e faz o que quer. A gente não tem direito de julgar se uma música é melhor do que a outra de forma impositiva. O que eu julgo bom ou ruim é um termômetro meu, com critérios que fazem sentido para mim. Acho muito discriminatório colocar esses rótulos.

    Fonte: https://gamarevista.uol.com.br/semana/que-ce-ta-ouvindo/musica-e-neurociencia/?utm_medium=Email&utm_source=NLSemana&utm_campaign=SemanaGama

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