Foto: Luís Barra
O auditório do Complexo Interdisciplinar, no Técnico, em Lisboa, está cheio de caras conhecidas de Nuno Maulide – mesmo que mais velhas e cobertas pela metade. Professor de Química Orgânica na Universidade de Viena, Áustria, vai falando com antigos professores e colegas de curso que se juntaram numa sexta-feira ao final da tarde para a apresentação do seu livro Como Transformar Ar em Pão (editora Planeta) que, numa linguagem simples e “desafetada” e com ilustrações apelativas, vai da comida às alterações climáticas para mostrar que tudo é química e que, por isso, não há que ter medo dela, da Química. Explicar e tornar simples conceitos complexos é parte essencial da sua identidade. Já era assim quando ainda estudante de licenciatura entrava na biblioteca, à procura de quem tivesse dúvidas, ou enquanto andava a aprender piano e teve vontade de dar aulas de música, ou praticava ginástica e quis ensinar os amigos a fazer mortais, ou até quando tirou a carta de condução e cogitou ser instrutor. Na Áustria, esta paixão já lhe valeu o prémio de Cientista do Ano, em 2018. De regresso, pelo menos parcial, à casa de partida, onde integrará o corpo de docentes, como catedrático convidado do Departamento de Engenharia Química, admite que “o jeito para ensinar” não é tido em conta na carreira de um professor universitário – mas devia.
No Técnico, onde estudou e aonde regressa agora como professor, sofre-se muito enquanto se está a estudar. Tem de ser assim?
Não. De maneira nenhuma!
Então por que razão isto acontece?
Penso que isto acontece porque é a perpetuação de um trauma: “Eu sofri, logo os meus alunos também vão ter de sofrer”. Tem de haver um nível de exigência elevado na universidade – sou um grande defensor disso – não é para ser fácil. Mas tem de ser justo. É preciso combinar as duas coisas. Perguntei aos meus alunos repetentes de Química Orgânica se estavam revoltados comigo. E eles responderam que não, porque sentiram que o exame era justo – só que a disciplina é vasta e exige muito estudo. Nem sempre se avalia a qualidade pedagógica na escolha de um professor universitário. Privilegia-se a componente de investigação. Eu acho que devia haver prémios tendo em conta a componente pedagógica.
No livro tem a preocupação de desmontar ideias feitas, negativas, acerca de questões relacionadas com a Ciência, em particular com a Química. Nunca houve tanta comunicação de ciência como a que temos assistido durante a pandemia. Apesar disso, nunca pareceu haver tanta desinformação. Até parece ser contraproducente…
É um problema muito grande [a desinformação]. O que penso é que não estamos a abordá-lo da forma certa. Quem está a defender coisas como ‘A Terra é plana’ não está à espera que alguém vá demonstrar que não o é – isto já foi feito muitas vezes e não é por isso que se deixaram convencer. Dentro deste grupo de pessoas que acredita em coisas deste género, há quem tenha um posicionamento de crente, de dogma. E aí não há nada a fazer! Depois há outro grupo de pessoas que poderiam mudar de opinião se sentissem que estão a ser tratadas com respeito. O grande problema da falta de confiança nos peritos é as pessoas sentirem que estão a ser tratadas com arrogância. Vimos isso também na altura do Brexit e do Trump – as pessoas estão fartas de peritos.
Que por vezes perdem a paciência a tornam-se agressivos.
Exatamente. O que eu até posso compreender. Porque ao fim de tanto tempo [de ter sido demonstrado que a Terra não é plana] e numa altura de tão grande desenvolvimento tecnológico ter de convencer pessoas de que a Terra não é plana é um bocadinho exasperante. Mas temos de abordar quem acredita nisto em pé de igualdade. A abordagem tem de ser a de explicar o método científico, que é muito frustrante porque não dá certezas. Elabora-se uma teoria que permite explicar uma série de observações. Mas a primeira coisa que os cientistas fazem é provar por A mais B que a teoria está errada. O objetivo é chegar a uma teoria que permita explicar o que se observa, com base em medições rigorosas, e fazendo previsões para o que ainda não se mediu. Quem cria teorias da conspiração tem uma abordagem completamente oposta. Cria uma teoria e vai à procura de pequenas porções de informação que poderiam encaixar na teoria. É o contrário do método científico já que só se recorre ao que confirma a teoria e elimina-se os restantes dados. Vamos tomar como exemplo a teoria da Terra plana. Podemos sentar-nos com a pessoa e perguntar: admitindo que a Terra é plana, o que seria previsível observar, para podermos testar a teoria? Tenho a certeza de que com uma abordagem deste género as pessoas que não têm uma perspetiva dogmática, de crente, se deixariam muito mais facilmente convencer.
Já teve sucesso com uma abordagem deste género?
Sim! Tenho esta experiência. As pessoas dogmáticas não aguentam o confronto de ideias. Não vale a pena sequer. As outras, que aceitam discutir porque acreditam que a sua teoria vai sobreviver ao escrutínio, nunca foram sensibilizadas para o facto de a ciência ter por base o escrutínio.
Durante a pandemia ocorreu um fenómeno que foi uma espécie de ‘conversão’ à desinformação. Pessoas que até então acreditavam na ciência mudaram completamente de posição. Como explica este percurso?
Continuo a achar que é pela falta de interlocutores que as levem a sério. Devem ser consideradas e não dispensadas pura e simplesmente, tratadas como malucas. O problema é que quando se vai pelo caminho do rebater, isto gera logo oposição. Temos de ir por um discurso positivo.
Tem esperança que consiga converter pessoas com este livro?
Olhe, todos os jornalistas a quem dei entrevistas sobre o livro me disseram que tinham ficado a perceber que a química não é boa nem má. Houve até quem tivesse ido fazer as experiências [descritas no livro].
Sente diferença na perceção relativamente à ciência entre Portugal e a Áustria?
Noto na perceção relativamente à necessidade de investir em Ciência. Neste momento, o investimento em ciência na Áustria está próximo dos três por cento do PIB.
Em que é que isto se traduz na atividade científica?
Em imensa coisa. Por exemplo há concursos para projetos durante todo o ano e as taxas de aprovação são de vinte a trinta por cento.
O que é mais do dobro das taxas de aprovação em Portugal…
Exato. Mas mesmo assim para nós [cientistas na Áustria] não chega. Também há verba disponível para as universidades contratarem pessoas para apoiar a investigação e dar aulas.
Se pudesse resolver um problema da atualidade, o que gostaria de resolver?
Há vários, mas há um que não está assim tão longe assim de ser resolvido, embora não seja ainda economicamente viável, que é o splitting da água [separação da água em oxigénio e hidrogénio]. Porque aí podia ter um carro movido a água. Neste caso, o hidrogénio da água é que faria mover o carro. Ou seja, seria um carro que consumiria água.
Disse que estavas prestes a ser resolvido…
Quer dizer, já existe a tecnologia. Se tivermos um copo de água iluminado, pela luz do dia, e tivermos uma folha, um pedaço de papel impregnado com um catalisador, mergulhada na água, as bolhas de hidrogénio começam a libertar-se. O splitting da água acontece, graças à energia dos fotões. Só que isto ainda não é eficiente.
E na sua área, da química orgânica, o que solucionaria?
A transformação de metano em metanol. Não estou a trabalhar nisso, mas é um problema da química orgânica muito complicado.
Qual é o interesse em conseguir fazer isso?
O metanol é o primeiro composto na cadeia de conversão da química. Tendo acesso a metanol pode fazer-se toda a química: produzir as cadeiras em que estamos sentados, os cosméticos, praticamente tudo. O problema é que a maior parte dos processos que permitem fazer metanol a partir de metano, que é uma fonte renovável, são muito pouco eficientes o que nos deixa muito dependentes da indústria petroquímica, que gera não metanol mas outros compostos que se poderiam obter a partir do metanol e é com estes compostos que fazemos a química toda. Portanto, se fosse possível substituir toda a química do petróleo por uma química renovável, isto teria um enorme impacto positivo. Ainda mais giro seria despolimerizar a lignina e a celulose.
Vai ter de explicar do que se trata…
Eu imagino um polímero como uma cadeia de crianças de mãos dadas – o plástico é um polímero. Despolimerizar é separar as crianças. Este processo requer muita energia. Sendo a celulose uma das moléculas mais comuns na Terra, ser capaz de a cortar aos pedacinhos seria uma excelente jogada. A lignina, que é o que existe na casca de qualquer árvore, é outro polímero que existe ao pontapé e é muito mais difícil de partir do que a celulose. É também muito mais valiosa e quem o conseguir partir de forma eficiente ganhará um prémio Nobel e resolverá grandes problemas, gerando uma economia muito diferente da do petróleo.
A comida nunca foi tão segura e controlada. No entanto nunca houve tanta desconfiança e tanto medo relativamente à comida. Tem uma explicação para isso?
Por haver mais controle e mais cuidado gera-se uma tomada de consciência muito maior relativamente ao que está a ser feito. Há também muita informação que gera medo, como a de galinhas a crescer em espaços muito apertados, em grande concentração. Não é de facto natural manter galinhas em espaços exíguos e tratadas com antibiótico para acelerar o crescimento. É normal que as pessoas procurem processos mais naturais. Só não está garantido que sejam assim tão mais seguros … Mesmo assim, vivemos num continente em que as normas são as mais apertadas. Na América, por exemplo, há muito menos preocupação com a segurança alimentar.
Mas há a ideia de que a FDA é muito rigorosa.
Nem por isso. Aliás, uma das motivações para o Brexit foi precisamente o que os britânicos consideravam excesso de regulação. As pessoas nem sempre têm esta noção, de que o escrutínio feito a Europa é muito rigoroso.
Reportagem: Por Sara Sá (Jornalista)
Fonte: https://visao.sapo.pt/exameinformatica/noticias-ei/ciencia-ei/2021-09-23-as-pessoas-que-nao-acreditam-na-ciencia-nao-devem-ser-tratadas-como-malucas/
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