Pablo González Blasco
Tinha lido alguma resenha sobre este filósofo sul-coreano/ alemão, mas foi da minha irmã, professora de filosofia num Instituto em Madrid, de quem me chegou o “touché” : “Estamos lendo este livro na classe, revolucionário, um gosto excessivo por Heidegger, mas mexe com a juventude”. E como ainda não tinha mergulhado na sintonia de Han fui à internet, baixei o livro, na versão espanhola (não havia em português) e comecei a ler.
Algumas páginas depois tropecei com esta bofetada (que, como o resto do texto, traduzo livremente do espanhol): “No e-book, o livro é reduzido ao seu valor informativo. Falta-lhe idade, local, produtor e proprietário. Falta-lhe completamente o afastamento atrativo do qual um destino individual nos falaria. O destino não se enquadra na ordem digital. A informação não tem nem fisionomia nem destino. Nem admite uma ligação intensa. É por isso que não existe nenhum exemplar do livro electrónico. A mão do proprietário dá a um livro um rosto inconfundível, uma fisionomia. Os livros electrónicos não têm rosto e não têm história. São lidos sem as mãos. O ato de folhear é táctil, algo que é constitutivo de qualquer relação. Sem toque físico, não são criados laços”.
Encaixei o golpe, e continuei lendo as pouco menos de 100 páginas deste pequeno-grande livro. Aliás, como todos os deste autor -depois pesquisei sobre outras obras que comentaremos em seu momento- são livros pequenos, curtos, densos, diretos. Uma boa síntese do sentido prático dos coreanos com a precisão terminológica germânica.
Mas afinal o que são essas “não- coisas” que o autor traz à tona neste escrito? Copiamos as suas palavras: “Hoje em dia, as não-coisas penetram no nosso ambiente de todos os lados e deslocam as coisas. A isto chama-se informação”. Hoje estamos na transição da idade das coisas para a idade das coisas que não são coisas. É a informação, não as coisas, que determina o mundo em que vivemos. Já não habitamos a terra e o céu, mas sim o Google Earth e a nuvem. O mundo torna-se cada vez mais intangível, nublado e espectral. Nada é sólido e tangível”.
As não-coisas que o Han analisa, são dados, informação, rapidez, e toda essa voragine que nos cerca nos dias de hoje. Texto corrido, direto, um cruzado de esquerda para nos acordar, pois afinal os culpados somos nós mesmos: “É antes o nosso frenesim de comunicação e informação que faz desaparecer as coisas. A informação, isto é, não coisas, é colocada à frente das coisas e torna-as pálidas. Não vivemos num reino de violência, mas num reino de informação disfarçada de liberdade (….) A digitalização desmaterializa o mundo. Também reprime memórias. Em vez de armazenarmos memórias, armazenamos imensas quantidades de dados. Como caçadores de informação, tornamo-nos cegos a coisas silenciosas e discretas, incluindo o habitual, o pequeno ou o lugar-comum (…) Os impulsos de informação não são descanso para a vida. Não é possível deter-se na informação. Vive-se do estímulo da surpresa que, pela sua transitoriedade, desestabiliza a vida, e exige constantemente a nossa atenção”.
O que se perde nesse turbilhão? As histórias de vida, o cuidado e atenção com os outros e conosco mesmos. “A informação é aditiva, não narrativa. Podem ser contadas, mas não narradas. Como unidades descontínuas de breve atualidade, não se combinam para formar uma história. Apenas as narrativas criam significado e contexto. No digital, ou seja, numérico, a ordem carece de história e memória, e consequentemente fragmenta a vida (…) A percepção ligada à informação exclui a observação longa e lenta. A informação torna-nos míopes e apressados. É impossível ficar a pensar na informação. A lenta contemplação das coisas, a atenção não intencional, que seria uma fórmula de felicidade, retira-se face à caça à informação. Hoje, corremos atrás de informação sem obter conhecimento. Tomamos nota de tudo sem ganhar sabedoria. Viajamos para todo o lado sem adquirir uma experiência. Comunicamo-nos continuamente sem participar numa comunidade . Armazenamos grandes quantidades de dados sem preservar memórias . Acumulamos amigos e seguidores sem nos encontrarmos uns com os outros. A informação cria assim um modo de vida sem permanência e duração”. De fato, sobram comentários diante de tanta clareza. O que falta é tempo para parar e pensar, por exemplo, nesse parágrafo acima.
Dos conceitos -claríssimos e demolidores- Han (que estudou metalúrgica antes de filosofia) passa a questões operacionais, reflexo dessa mentalidade torta, subjugada pelas não-coisas. “A mão é o órgão de trabalho e de atividade. O dedo, por outro lado, é o órgão de eleição. O humano manualmente inativo do futuro só fará uso dos seus dedos. Ele irá escolher em vez de agir. Para satisfazer as suas necessidades, ele carregará nas teclas. A sua vida não será um drama que o obriga a agir, mas sim um jogo. Não vai querer ser dono de nada, mas sim experimentar e desfrutar. O humano manualmente inativo do futuro estará próximo daquele Phono sapiens que lhe dedica o seu smartphone. A utilização do smartphone é uma forma de jogo. É tentador pensar que o humano do futuro apenas irá brincar e desfrutar, ou seja, que não terá “preocupações”.
Obviamente, entre as questões operacionais, as diatribes de Han tem no telefone celular um alvo contínuo e perfeito: “Não somos nós que utilizamos o smartphone, mas o smartphone que nos utiliza. O verdadeiro ator é o smartphone. Estamos à mercê deste informador digital, atrás de cuja superfície diferentes atores nos dirigem e nos distraem (…) Plataformas como o Facebook ou o Google são os novos senhores feudais. Incansavelmente, lavramos as suas terras e produzimos dados valiosos, dos quais eles depois lucram. Sentimo-nos livres, mas somos completamente explorados, monitorizados e controlados (…) O smartphone não é um ursinho de peluche digital. Pelo contrário, é um objecto narcisista e autista em que não se sente os outros, mas antes e sobretudo a si próprio”
Dos celulares e aplicativos até as fotografias e as selfies, prato forte desta crítica suculenta. “O smartphone produz uma fotografia com uma temporalidade completamente diferente, uma fotografia sem profundidade temporal, sem extensão de novela, uma fotografia sem destino ou memória, ou seja, uma fotografia momentânea (…) O narcisismo por si só não esgota o essencial da selfi. O que há de novo sobre a selfi tem a ver com o seu estado. A selfi não é uma coisa, mas uma informação, uma não-coisa. Também na fotografia acontece que coisas que não são coisas deslocam as coisas. Os selfies não são feitos para serem mantidos. Não são um meio de memória. É por isso que não são feitas cópias delas. Como qualquer informação, estão ligados à atualidade. As repetições não têm qualquer significado. Os selfies só são conhecidos uma vez. O seu estatuto é semelhante ao de uma mensagem ouvida numa secretária eletrônica. A comunicação digital de imagens relega-as para o estatuto de mera informação”
Narcisismo que nutre um egoísmo essencial, onde toda a procura converge no próprio umbigo (palavras minhas, pouco acadêmicas para Han). Anoto textualmente: “Produzimo-nos nas redes sociais. A expressão francesa se produire significa colocar-nos em palco. Nós próprios encenamos. Representamos a nossa identidade (..) A informação que não me interessa é apagada num instante. Por outro lado, o conteúdo que gosto pode ser aumentado com os meus dedos. Tenho o mundo completamente sob controle. O mundo tem de obedecer a mim. O smartphone reforça assim o egocentrismo. Ao tocar na sua tela, submeto o mundo às minhas necessidades. O mundo parece estar digitalmente à minha disposição e à minha chamada”.
Que sobra para os outros? Qual é o papel deles? Na verdade, são atores figurantes para a prima dona que sou eu mesmo, o centro digital do universo. “Na comunicação digital, a outra está cada vez menos presente. Com o smartphone, retiramo-nos para uma bolha que nos protege da outra. Na comunicação digital, a forma de abordar os outros desaparece frequentemente. Não chamamos o outro para falar. Preferimos escrever mensagens de texto em vez de telefonar, porque ao escrever estamos menos expostos ao contacto direto. Assim, o outra como voz desaparece. Os afetos humanos são substituídos por classificações ou gostos. Os amigos são contados em números”.
Han adverte que não é um detalhe, mas um verdadeiro equívoco metafísico, uma postura obtusa de conhecimento falso. Explica: “O objeto é originalmente algo que se opõe e me resiste. Os objetos digitais não têm o negativismo do obstaculizar, não noto qualquer resistência nele. O smartphone é inteligente porque remove a resistência à realidade. Já a sua superfície lisa produz uma sensação de ausência de resistência. Na sua superfície tátil tudo parece dócil e agradável. Com um clique, ou com o toque de um dedo, tudo é acessível e disponível. Com a sua superfície lisa, comporta-se como um achatador digital, o que nos dá constantemente um permanente convite a produzir um like”
Nos capítulos finais do livro, Han aprofunda nesses equívocos filosóficos que produzem a constelação de absurdos que diariamente contemplamos à nossa volta….e em nós mesmos!! Anotamos algumas pérolas que fazem pensar: “A inteligência artificial não tem coração. O pensamento do coração percebe e sente espaços antes de trabalhar com conceitos. Nisto difere do cálculo, que não precisa de espaços. A inteligência artificial nunca atinge o nível conceptual de conhecimento. Não compreende os resultados dos seus cálculos. O cálculo difere do pensamento na medida em que não forma conceitos e não avança de uma conclusão para outra (…)A filosofia começa com um. Não é a inteligência, mas sim um idiotismo, que caracteriza o pensamento. Cada filósofo que produz uma nova língua, um novo pensamento, uma nova língua, é um idiota. Despede-se de tudo o que tem sido. Ele habita essa imanência virgem, ainda não descrita, do pensamento. Com este “faire l’idiot“, o pensamento atreve-se a saltar para o totalmente diferente, para o desdobrável. A história da filosofia é uma história de idiotismos, de saltos idiotas. A inteligência artificial é incapaz de pensar, porque é incapaz de “”faire l’idiot“. É demasiado inteligente para ser um idiota”. Impossível não evocar a obra de Dostoievsky que, por sinal, eu estava lendo em paralelo com o livro do Han.
E das não-coisas um giro filosófico à procura das coisas e seu sentido. “As coisas pérfidas são coisa do passado. As coisas já não nos maltratam. O seu comportamento já não é destrutivo, nem nos resiste. Não os percebemos na sua alteridade ou estranheza. Isto enfraquece o nosso sentido da realidade. A digitalização, acima de tudo, exacerba a desrealização do mundo através da sua descosificação. A observação de que a coisa é a totalmente outra” ( le tout autre ), que dita a sua lei, à qual temos de nos submeter, já soa estranho. As coisas hoje em dia são bastante submissas. Estão submissas às nossas necessidades (…) Para Rilke, as coisas irradiam calor. É por isso que sonha com uma relação íntima com as coisas: “Quero dormir um dia com cada coisa, cansar-me do seu calor, sonhar que a sua respiração me chegue, sentir a sua querida vizinhança nua em todos os meus membros e fortalecer-me com o cheiro do seu sono, e depois, de manhã cedo, antes de acordar, antes de me despedir, continuar, continuar”.
Poético, emocionante, a materialização das coisas; uma poesia impossível de digitalizar. Neste sentido continua Han: “Desapareceram os dias em que as coisas tinham arestas. A digitalização retira às coisas qualquer materialidade rebelde, qualquer resistência. Perdem completamente o carácter de obstáculo, não nos oferecem qualquer resistência. Os Infomata não têm pontas, por isso temos de os tratar com grande destreza. Eles preferem moldar-se às nossas necessidades. Ninguém se magoa com o smartphone escorregadio”.
As coisas se opõem no seu ser contundente. E, naturalmente, as pessoas, o outro, também. “A comunicação digital significa uma redução considerável nas relações humanas. Hoje estamos todos nas redes sem estarmos ligados uns aos outros. A comunicação digital é extensa. Falta-lhe intensidade. Estar na rede não é sinónimo de estar relacionado (…) Sem nada à nossa frente só nos contornamos a nós próprios. A depressão não é senão uma exacerbação patológica da sensação de pobreza do mundo. A digitalização tem contribuído para a sua difusão. As infosferas intensificam o nosso egocentrismo. Submetemos tudo às nossas necessidades. Só um renascimento do outro nos poderia libertar da pobreza do mundo (…) Ouvir o outro . Quem realmente ouve, presta atenção sem reservas a outro. Quando não se presta atenção ao outro, o eu volta a levantar a sua cabeça. A fraqueza metafísica para o outro é constitutiva da ética da escuta como uma ética da responsabilidade. O ego que se fortalece é incapaz de ouvir, porque em todo o lado só ouve a si próprio falar. Hoje não temos tempo para o outro. O tempo do eu torna-nos cegos para o outro. Apenas o tempo do outro cria fortes laços, amizade e até mesmo comunidade. É o bom momento”.
Neste ponto, a invocação do Pequeno Príncipe de Saint Exupéry é inevitável. “Os homens já não têm tempo para saber nada. Eles compram coisas prontas aos revendedores. Mas, como não há comerciantes de amigos, os homens já não têm amigos. Hoje em dia, Saint-Exupéry poderia ter afirmado que agora também existem comerciantes amigos com nomes como Facebook ou Tinder” E acrescenta em citação magnífica: “Quem diz tu não tem algo, na verdade não tem nada. Mas tem sim: uma relação!!”
Das coisas e das pessoas, o tumulto estende-se à arte, à incapacidade de apreciar a beleza. “O problema da arte hoje em dia é que ela tende a comunicar uma opinião preconcebida, uma convicção moral ou política, ou seja, a transmitir informação. A concepção precede a execução. Como resultado, a arte degenera em ilustração. A arte já não é uma arte que dá à matéria a forma de uma coisa sem intenção, mas uma obra de pensamento que comunica uma ideia pré-fabricada. O esquecimento das coisas toma conta da arte. Permite deixar-se levar pela comunicação. Está carregada de informação e de discurso. Quer instruir em vez de seduzir (…)Se olharmos para um quadro apenas para nos informar sobre algo, deixamos de sentir a sua independência e a sua magia. É o excesso do significante que faz a obra de arte parecer mágica e misteriosa”.
E da arte até os rituais e lembranças queridas, que também são sacrificadas: “Tanto os rituais como as coisas amadas são momentos de descanso que estabilizam a vida. As repetições distinguem-nas. A compulsão da produção e do consumo suprime as repetições. Desenvolve a compulsão para o novo. A informação também não é repetível. Desenvolve uma compulsão para estímulos sempre novos. Não há espaço para estímulos nas coisas que nos são queridas. É por isso que são repetíveis. A hiper comunicação, o ruído da comunicação, dessacraliza, profana o mundo. Ninguém ouve. Cada indivíduo produz-se a si próprio”.
Mas o que fazer, poderíamos nos perguntar, se o mundo hoje é assim? Han invoca uma referência nada suspeita para lembrar que “ a cultura aristocrática é caracterizada pela capacidade de não reagir imediatamente a um estímulo. Controla os instintos que dificultam, que isolam. O desconhecido, o novo de qualquer espécie, deve ser abordado com uma calma hostil. Manter todas as portas abertas, estar sempre pronto a entrar, a saltar para outros homens e outras coisas, ou seja, a incapacidade de resistir a um estímulo, é uma atitude destrutiva para o espírito. A incapacidade de não reagir já é uma doença, uma decadência, um sintoma de esgotamento”. O conselho não provém de um místico, nem de um estoico, nem de um tomista, ou de Agostinho. É Nietzsche puro, logo ele!!
Releio o anotado até aqui, e apalpo a densidade da obra, do pensamento de Han. É verdade que utilizei recursos digitais para elaborar este resumo, mas enquanto digitava, o meu pensamento se agarrava às coisas, colocando as não-coisas sob suspeita. Uma atitude que encontrei descrita quase no final e me consola de ter feito, às presas, este apanhado de sabedoria: “A digitalização acaba com tudo o que está à nossa frente. Como resultado, perdemos a sensação de apoio e transporte, de sermos ultrapassados por algo, do sublime em geral. A ausência desse algo à nossa frente faz-nos recorrer constantemente ao nosso ego, o que nos deixa sem um mundo, ou seja, deprimidos. O papel amarelado e o seu cheiro aquecem-me o coração. A digitalização destrói memórias e contatos. Para sermos felizes, precisamos de algo à nossa frente que nos ultrapasse”. Nada a comentar; muito, muito mesmo, para refletir.
Fonte: https://pablogonzalezblasco.com.br/2022/04/08/byung-chul-han-no-cosas/
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