Crónica de Bento Domingues
1.
Junho é um mês muito português. No dia 10, celebramos o Dia de
Portugal, de Camões, das Comunidades Portuguesas e a festa litúrgica do
Anjo da Guarda de Portugal. Os dias 12 e 13 são dedicados a Santo
António, o santo português mais conhecido em todo o mundo. No dia 24,
celebramos S. João Baptista, no dia 29, a festa de S. Pedro. Há uma rima
que sintetiza este mês: “Primeiro vem Santo António / depois, S. João /
por fim, vem S. Pedro / para a reinação”.
Este
ano, também no dia 10, o Presidente da República homenageou, em
Londres, um grande nome da pintura portuguesa conhecida em todo o mundo,
Paula Rego, falecida a 8 deste mês (1935-2022) e anunciou que será
condecorada a título póstumo em Lisboa.
Foi
um outro Presidente da República, Jorge Sampaio, que convidou Paula
Rego para contar a história de Nossa Senhora para a capela do Palácio de
Belém que aceitou de imediato: “Desde que comecei a pintar que estava à
espera desse convite”. Pouco tempo depois, nascia o Ciclo da Vida da
Virgem Maria.
No Museu da
Presidência da República, no Palácio de Belém, está patente ao público
uma exposição dedicada a Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004) sobre o
seu percurso de cidadã na esfera pública. Foi sempre uma católica
militante.
Desde o dia 6 de
Junho, no âmbito das comemorações do centenário de José Saramago
(1922-2010), a Biblioteca Nacional apresenta uma mostra bibliográfica e
documental que celebra o percurso de escrita do autor, com o título A
Oficina de Saramago.
2.
O mais popular de todos os santos e de todos os portugueses é, sem
dúvida, Santo António. Nasceu em Lisboa (1195?), morreu em Pádua-Itália
(1231) e foi canonizado, em 1232, pelo Papa Gregório IX. Em 1946, foi
proclamado Doutor da Igreja pelo Papa Pio XII.
A
religião popular não suporta a tristeza. Mesmo o cumprimento de
promessas difíceis é para vencer a dor e o sofrimento. É o desejo da
saúde e da alegria a fonte das promessas. Por isso, dos santos mais
austeros, como S. João Baptista e Santo António, fazem os padroeiros das
festas em que todos podem participar, cantando, dançando, bebendo e
comendo melhor. Um santo triste é um triste santo. A santidade não se dá
bem com a tristeza. Esta religião popular está a desaparecer, sofre as
consequências da mudança do mundo rural e das migrações.
Este
ano, em Lisboa, Santo António já voltou à rua, nos arraiais com muita
música e balões coloridos, as sardinhas assadas, o caldo verde, os
manjericos, as marchas populares e os casamentos de Santo António, na
Câmara e na Sé, no respeito pela liberdade religiosa.
Mas,
quem disse da forma mais eloquente a significação de Santo António,
como símbolo da apregoada vocação universalista de Portugal, foi o Padre
António Vieira, no seu sermão pregado, em Roma, na Igreja de Santo
António dos Portugueses [1]. Deixo, aqui, alguns extractos.
“Quando,
por parte da Pátria me queria queixar do seu amor, atalhou-me o
Evangelho com a sua obrigação: Sois a Luz do Mundo. Não tem logo
Portugal de se queixar. Se António não nascera para o sol, tivera a
sepultura onde teve o nascimento; mas como Deus o criou para luz do
mundo, nascer numa parte e sepultar-se em outra é obrigação do sol.
Lisboa foi a aurora do seu oriente; seja Pádua a sepultura do seu ocaso.
“(…)
Se António era luz do mundo, como não havia de sair da Pátria? Saiu
como luz do mundo e saiu como português. Sem sair ninguém pode ser
grande. Saiu para ser grande e, porque era grande, saiu… Assim era
obrigado a fazer, porque nasceu português.
“(…)
Se [Deus] nos deu o brasão que nos havia de levar da Pátria, também nos
deu a terra que nos havia de cobrir fora dela. Nascer pequeno e morrer
grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o
nascimento e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para
morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o mundo.
«(…)
Assim como a luz material primeiro a criou Deus junto num lugar, e
depois a repartiu dali por todas as regiões do Céu e sobre todas as
terras: umas estrelas ao polo ártico, outras ao antártico, umas ao
norte, outras ao sul, umas ao setentrião, outras ao meio-dia; assim para
alumiar o Novo Mundo, que tantos séculos havia de estar às escuras, sem
ser conhecido dos homens, nem ter conhecimento do verdadeiro Deus. Que
fez o Autor da graça? Criou primeiro e conservou separado em Portugal
aquele seminário escolhido de fé e de luz, para que dali dividida e
repartida, a seu tempo, umas luzes fossem alumiar a África, outras a
Ásia, outras a América, umas ao Brasil, outras à Etiópia, outras à
Índia, outras ao Mogor, outras ao Japão, outras à China e, desta maneira
transplantada de Portugal a fé, se plantasse nas três partes do mundo.
«(…)
É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa;
mas, nesse cantinho da terra pura e mimosa de Deus, quis o céu depositar
a fé, que dali se havia de derivar a todas essas vastíssimas terras,
introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com
tanto sangue, recolhida com tantos suores e metida, finalmente, nos
celeiros da Igreja debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória.
“Medindo-se
Portugal consigo mesmo e reconhecendo-se tão pequeno à vista de uma
empresa tão imensa, poderá dizer o que disse Jeremias, quando Deus o
escolheu para profeta das gentes: A. A. A. Deus meu, onde me mandais que
sou tão pequeno para tamanha empresa? O mesmo poderá dizer Portugal.
Mas tirando-lhe Deus da boca estes três AAA, ao primeiro A, escreveu
África; ao segundo A, escreveu Ásia; ao terceiro A, escreveu América,
sujeitando todas as três ao seu império como Senhor e à sua doutrina
como Luz: Sois a Luz do Mundo».
3.
O Padre António Vieira serviu-se deste sermão sobre Santo António,
ritmado por uma citação do Evangelho – Vós sois a luz do mundo –, para
dizer que, afinal, Deus fez de Portugal, este canteirinho da Europa, a
luz do mundo, levando o Evangelho “às três partes do mundo”. Na sua
perspectiva, este nacionalismo religioso, algo delirante, não era para a
dominação, mas para a iluminação.
O
nosso Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, não já do ponto de vista do
providencialismo religioso, mas da nossa competência em todas as áreas,
insistiu: “Hoje somos os melhores do mundo. E sabem como eu digo
incessantemente, porque há sempre uma falta de autoestima e de
amor-próprio nalguns dos nossos compatriotas, que me criticam por dizer
que, quando somos muito bons, somos os melhores do mundo. É isso mesmo:
quando somos muito bons, somos os melhores do mundo”.
O
retrato que nos é dado por vários meios de comunicação não é exaltante.
E compreende-se. Pertence-lhes insistir no que nos falta e não é pouco,
mas esse estilo leva a esquecer o que já foi conquistado, que também
não é pouco. Por isso, há quem diga que só sabemos viver entre a
depressão e a exaltação. Compensamos a falta da realidade com sonhos de
grandeza.
O realismo tem pouca graça!
Frei Bento Domingues no PÚBLICO
[1]
Obras completas do Padre António Vieira, Sermões, Volume VII, Porto,
1908, pp.55-65. A bibliografia sobre Santo António não é muita. Acaba de
ser traduzido e publicado o romance histórico de Nicola Vegro, António
Secreto. A força de um Santo, Paulinas, 2022.
Fonte: https://www.publico.pt/2022/06/19/opiniao/opiniao/melhores-mundo-2010481
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