segunda-feira, 20 de junho de 2022

Fernando Aramburu: "A democracia é um engano"

João Céu e Silva*

O escritor basco Fernando Aramburu, em Lisboa.

 O escritor basco Fernando Aramburu, em Lisboa. © Jorge Amaral/Global Imagens

O escritor espanhol mais bem sucedido deste século, o autor do romance Pátria, que vendeu mais de um milhão de exemplares só no seu país, duvida que "alguma vez exista um paraíso social sobre a Terra". O seu livro mais recente, O Regresso dos Andorinhões, é um corte tão radical com o anterior que assusta o leitor que vai à espera de mais do mesmo.

Fernando Aramburu já há muito que existia enquanto escritor antes de ter publicado o romance Pátria, mas não com o poder que esse livro lhe veio conceder. Ao passar por Lisboa para promover o seu mais recente romance, O Regresso dos Andorinhões (Los Vencejos), é impossível evitar referir na entrevista esse livro de 2016, que o catapultou para o pequeno reino dos autores espanhóis que têm uma audiência de níveis estratosféricos, no entanto evitou-se essa memória o mais possível pois percebe-se que desagrada ao autor - mesmo que na capa deste livro esteja bem destacado "Autor de Pátria".

O seu percurso é o de qualquer escritor que tem um sucesso inesperado aos cinquenta anos devido a um livro apesar de ter publicado nove antes de ser descoberto por uma imensidão de leitores. Formado em Filologia Espanhola pela Universidade de Saragoça, exercido a docência na Alemanha, a escrita esteve sempre presente, desde que em 1997 publicou Fuegos com Límon e recebeu um prémio. O seguinte, Los Ojos Vacios (2001), voltou a ser premiado, seguindo-se outros livros e cada vez mais reconhecimento a um autor que surge em muitas fotografias com a sua boina basca a cobrir a cabeça e um aspeto físico que não esconde a sua origem.

Considerado um dos expoentes da Nova Narrativa espanhola, Aramburu não é uma personalidade fácil para ser questionado, nem se incomoda em disfarçar a má disposição frequente, principalmente quando muitas das perguntas parecem não fugir à atração do tal romance de 2016. Ainda por cima, do País Basco "muda-se" para uma Madrid que desconhece e sobre a qual teve de se informar bastante, para dar ao protagonista Toni o ar da capital e de se movimentar bem nesse território. O Regresso dos Andorinhões é, no entanto, um choque para o leitor que descobriu através de Pátria, um romance em que escalpeliza a personalidade de um homem que se condena ao suicídio com data marcada e nada tem a perder no ano de vida que lhe resta. Principalmente, estranham-se confissões bem distantes dos tempos em que o politicamente correto impera e que deixam o leitor desconcertado com uma mentalidade do passado. Nada que impeça Aramburu de percorrer intimidades mais próprias de autores que fazem questão de ser do contra, tornando este livro uma leitura no mínimo polémica. Até porque faz questão de colocar cenários que, mesmo sendo fáceis de encontrar na realidade que nos cerca, são por norma evitados. Designadamente a nível sexual, em capítulos em que os atos mais desprezíveis de uma certa humanidade são expostos com toda a crueza. A narrativa aproxima-se em muitas das suas páginas de um voyeurismo pornográfico inesperado, nada que as notícias dos jornais não vão lembrando ao leitor da sua existência. Como o do irmão que explora sexualmente a irmã com deficiência mental, entre outras situações de grande violência. Mesmo que Toni seja um protagonista não tão extraordinário, afinal é um cidadão com que qualquer um se pode cruzar ao virar da esquina, disfarçando a sua infelicidade, pensamentos e atitudes comuns, que pouco obedecem à moral oficial.

A vida de Toni está cheia de enganos e o pedido de um café feito por Fernando Aramburu ao iniciar a entrevista mostra como um desejo pode ser alterado pelo desentendimento da linguagem, pois dissera que queria um café com leite e foi-lhe servido um galão em vez de um cortado - um café solo com um pingo de leite apenas. O Regresso dos Andorinhões tem muitos desses enganos, aqueles que são servidos a Toni em vez do que ele desejava quando está a ultrapassar o meio da vida e se sente tão desiludido que prefere não experimentar os anos a que ainda poderia ter direito.

Este não é um romance para todos os leitores! É muito cru e erótico...

Eu não escrevo para todos os leitores, mesmo que alguns dos meus livros tenham tido uma grande repercussão e sido lidos por pessoas com níveis culturais muito diferentes. Nunca pensei nessa questão com profundidade, ou seja, tenho projetos e alguns são populares enquanto outros não. Quando comecei a escrever O Regresso dos Andorinhões sabia que este romance não era para todos, o que não foi uma razão que me limitasse.

As reações não foram tão unânimes como em Pátria?

Unânimes não foram, mas são reações, e isso já me satisfaz enquanto escritor. Não procuro o aplauso geral, sou atreito à provocação e quero deixar na página perguntas atuais para as quais alguns têm respostas - o que não é o meu caso. Daí que queira pensar nelas através da literatura e, por isso, se for necessário entro por terrenos pantanosos ou escorregadios.

Um dos grandes problemas do protagonista é a situação do homem perante a mulher atual?

Coloquei como protagonista do meu romance um homem maduro, Toni, que está só após um percurso biográfico que conta com uma paternidade frustrada, com um divórcio, com uma profissão que não o satisfaz e, por essas razões, não sente um grande apego à vida. Então, o narrador e os outros personagens veem o mundo atual através da cidade de Madrid pelos olhos de um homem, olhar que durante o romance vão tendo uma evolução. De qualquer maneira, acho que todos os meus romances tratam de homens e mulheres.

A maior parte dos leitores são do sexo feminino, como será a sua reação perante uma história misógina?

Não concordo com a qualificação de misógino, antes que estamos perante um homem que se confessa. A ficção literária permite-nos o que a vida não aceita: ver a intimidade de alguém em detalhe. Este homem tem algumas características misóginas, mas escondidas. Quando sai para a rua não as pratica nem é violento, mas procura o amor que não encontra na sua mulher, entre outras situações, e, de alguma maneira, reflete-as no seu relato. O leitor que não compreenda isto terá um problema no que respeita à proposta do romance. Creio que somos uma espécie muito dada à dissimulação, por isso escondemos a nossa identidade e não permitimos que a conheçam por completo, nem os mais próximos. Este foi o jogo que pus em prática no livro: descobrir o íntimo de um ser humano de 55 anos e expô-lo totalmente, desde as facetas mais obscuras, mas sem as exaltar. Por isso recuso o rótulo de misógino para o romance.

Ao longo do livro fica-se com a ideia de que os homens têm medo das mulheres...

Eu não tenho medo das mulheres e não sou partidário de analisar a sociedade a partir dos comportamentos dos personagens. Um romance deve mostrar personagens singularizados e não arquétipos ou perdem-se os traços específicos da humanidade. Não nego que no livro certos homens estejam sós e que não tiveram sorte com as mulheres, mas isso não faz com que sejam inimigos das mulheres. Antes, têm dificuldade em se adaptar, porque não souberam jogar as suas cartas ou foram educados de uma forma que já não serve para as relações atuais.

"A democracia baseia-se num acordo de normas que resultam das eleições em que se escolhe um dirigente e este manda em seguida até acontecerem novas eleições. É exatamente o contrário do que está previsto na natureza, que mostra que quem domina sempre é o mais forte."

O protagonista tem uma atitude quase indiferente perante a política mas não evita críticas à extrema-direita. Era uma intenção clara?

Sim, ele "pertence" ao Partido dos que Preferem Estar Sós. Tem um pouco a ver com o escritor francês Stendhal, que definia o romance como um espelho em que o autor coloca em frente para mostrar a sociedade. Foi o que fiz, daí que se observe o reflexo da vida social dos espanhóis atuais que têm filhos que do ponto de vista ideológico e sexual seguem por caminhos imprevistos ou que não correspondem à educação que lhes foi dada e contrária ao que os pais pensam. O filho do protagonista é um desses casos, pouco politizado e influenciado pelos amigos ao nível ideológico, o que retrata muitos dos percursos dos jovens atuais.

É normal perguntar ao escritor o que o romance tem de autobiográfico. Neste caso, o que existe?

Praticamente nada, apenas posso dizer de forma irónica que Toni tem uns sete por cento de mim, pois eu também tenho uma biblioteca em casa e também fui professor. Nada mais! A grande virtude da ficção é permitir-nos entrar em vidas que são diferentes das nossas, tanto como autores como leitores.

O livro começa com o anúncio de que o protagonista pretende suicidar-se e dá-lhe um ano de vida. Este é um cenário que lhe permitiu fazer de tudo?

Sim, esse foi uma forma de colocar o protagonista conhecedor de uma realidade que a humanidade desconhece: a hora e o dia da sua morte. O romance deseja responder a como se vive numa situação destas e como racionalizar essa experiência. É a coluna vertebral do livro, que permite ao leitor aceder de uma maneira total à intimidade de um ser humano. Essa circunstância de saber o momento da sua morte cria uma série de perguntas morais e a primeira é se vale a pena respeitar algumas regras porque não há tempo para se ser castigado. Toni sabe que vai morrer dentro de um ano e podia cometer um crime sem haver tempo para ser penalizado! Esta e outras perguntas são postas durante a narrativa e isso interessava-me para dar respostas e abandonar a superfície normal dos personagens. O que se verifica após tomar a decisão de se suicidar um ano depois exige uma amplitude de respostas, até a nível filosófico, com que ele se defronta. Questões para as quais não existem respostas na sociedade e com a dificuldade acrescentada de ter de lutar contra o seu negativismo inicial, nunca se resignando perante essa decisão e continuando a manter a sua vida. Essas perguntas estavam em mim desde o momento em que me pus a escrever o romance e nunca me desviei delas.

Vem colocar também o problema da eutanásia. É um assunto que o preocupa?

É algo sobre o qual tenho pensado muito. Em Espanha existe uma lei sobre a eutanásia e sou desde sempre partidário de aceitar que uma pessoa incapacitada se possa libertar do sofrimento inútil. Contudo, o que se passa neste romance é anterior à aprovação dessa lei.

Um dos personagens foi vítima do atentado terrorista na estação de Atocha, em Madrid em 2014. É impossível fugir na literatura à questão do terrorismo em Espanha?

Está presente em alguns livros, noutros nem tanto. Não é um tema agradável, principalmente quanto faz parte de uma realidade ideológica e gera nessas pessoas a crença de que uma ideologia permite uma crueldade. Um dos métodos para ultrapassar essa atitude é o esquecimento e eu, que tenho escrito muito sobre violência e não só sobre terrorismo, preocupa-me saber o porquê de seres humanos atacarem os outros e imporem critérios pela via da eliminação de indivíduos. O que me tem provocado muita reflexão e o que concluo é que é um fracasso humano. A história da humanidade mostra essa sucessão de violência desde que o ser humano era um animal, um macaco, até à atualidade, quando o esforço civilizatório criou uma comunidade de convivência pacífica. Existem grandes enganos, como é o caso da democracia, da moral, das leis e da cultura, sendo que a violência atua contra esse movimento civilizatório positivo. É um assunto que me preocupa bastante, daí colocá-lo nos meus livros. Eu cresci numa sociedade, a do País Basco, em que a violência era recorrente; física e verbal, atentados, repressão policial. Fui uma criança marcada por essa envolvente, que viu as consequências dessa violência, o dano que produz através das mutilações, das depressões, da dor e das más recordações. A violência existe de uma forma contínua na minha literatura por isso.

Nomeia entre os enganos da evolução humana a democracia. O que quer dizer?

A democracia parece-me ser o sistema político menos mau, mas duvido que alguma vez exista um paraíso social sobre a Terra. Sempre existirão problemas como a divisão da riqueza, a administração pública, a corrupção... é humano. A democracia baseia-se num acordo de normas que resultam das eleições em que se escolhe um dirigente e este manda em seguida até acontecerem novas eleições. É exatamente o contrário do que está previsto na natureza, que mostra que quem domina sempre é o mais forte - geneticamente, com o veneno mais eficaz, os dentes mais fortes, o mais rápido -, e o homem inventou as regras e os acordos, e o sistema que lhe é mais parecido é a democracia. Isso parece-me um grande engano, de que têm resultado muitas guerras e séculos de sangue. Que vão diminuindo, e essa será uma das grandes conquistas do ser humano, a da possibilidade de uma pessoa por muito forte que seja não domine a outra em virtude da sua força, devido às leis consensuais que o impedem.

É uma violência que regressa agora com a invasão da Ucrânia?

Sim, de novo. Para nós é uma situação quase inesperada mas não deixa de ser uma invasão à antiga, em que o mais forte vai roubar território ao mais fraco.

O protagonista cita muitas frases de filósofos e escritores. Já foi tudo pensado?

Eu ponho no meu romance muita filosofia profissional, mas não creio que esteja tudo pensado. É possível que o que se entende por filosofia tradicional não seja suficiente para explicar ou contar a vida. Daí que nesse sentido a filosofia me faça sorrir um pouco, até porque está afastada da ciência e da literatura. Creio que a existência de intelectuais é muito importante porque contribuem com o seu conhecimento e inteligência para nos ajudar a pensar o nosso tempo, a criar conceitos e a desmistificar as mentiras, mas é minha opinião que o intelecto humano ainda tem muito pela frente para fazer. O que não acredito, como diz o meu protagonista, é que num livro ou num ensaio se possa explicar toda a existência humana, social, metafísica, moral. Nem mesmo a ilusão simpática de que o passado já passou mesmo.

Foi fácil ultrapassar o sucesso do romance Pátria ou considerou que não iria voltar a escrever?

Não pensei nisso. O êxito de Pátria foi agradável e também inesperado, pois nunca o imaginei. Estou agradecido pela atenção dos leitores, mesmo que o livro não agrade a todos - é impossível que isso aconteça -, mas não aceito ficar parado após o sucesso de Pátria. Tive outros projetos entre esse romance e este, publiquei três livros relacionados com a poesia e o jornalismo, livros que não são comerciais, e continuo a acreditar na literatura. Tenho a ambição de continuar a tentar a arte da palavra escrita.

O Regresso dos Andorinhões

Fernando Aramburu

Editora D. Quixote

802 páginas 

Fonte:  https://www.dn.pt/cultura/fernando-aramburu-a-democracia-e-um-engano-14950666.html

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