A professora observa como a autora aborda as temáticas femininas sem necessariamente ser feminista, movendo-se muito mais no sentido de liberação de quaisquer amarras e padrões
Quem seria capaz de acertar o coração das leitoras e leitores com delicadeza, mas também “de forma contundente, com violência e certa perversão”? Para a professora Nádia Gotlib, essa é Clarice Lispector. Pesquisadora não só da obra, mas também da vida da escritora, Nádia assegura com propriedade que a narrativa de Clarice “trata-se de uma experiência de liberação de padrões, de mitos, de sujeições”. “Embora Clarice não tenha se considerado ‘feminista’, por rejeitar rótulos, colaborou para a emancipação da mulher ao lhe legar sua obra, que pode ser considerada como o registro de um mapeamento dos caminhos que a mulher pode encontrar no sentido de se libertar de tudo o que a aprisiona nessa nossa sociedade patriarcal e machista”, acrescenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora também observa o caráter inventivo da escritora. Característica que se dava muito menos na fantasia edílica e muito mais em uma libertação dessas amarras e rótulos. “O narrador criado por Clarice (ou narradora?) não só, tal como Machado [de Assis], desmitificava padrões e mitos, mas ia fundo na exploração da intimidade e de um outro modo: aproximava-se tanto das personagens que com elas passava a se identificar, valendo-se de um recurso eficiente, o fluxo de consciência e o estilo indireto livre, e sem benevolência, ou seja, sem por vezes dar trégua ao seu leitor”, analisa.
Desses outros modos de ver a humanidade, Clarice experimenta uma virada, uma forma de ver o mundo não só com os olhos de gente, mas também de bicho. Não à toa, há quem a considere uma das pioneiras da chamada zooliteratura. “Plantas e bichos são personagens frequentes nos textos de Clarice, desde os tempos em que tais mazelas políticas não ocupavam a imprensa”, destaca Nádia, relacionando com a degradação ambiental de nosso tempo. Para ela, Clarice nutre admiração por esses seres, revelada na sua relação com Dilermando e Ulisses, dois de seus cães. “Os bichos vivem apenas. Sem outras demandas além das consideradas básicas. E Clarice reconhece esse modo peculiar de levar a vida e parece querer atingir esse estágio de pureza existencial, caracterizada ao mesmo tempo por certa percepção sensível a valores de amizade e fidelidade”, observa.
Para Clarice, não se tratava de animalizar gente e nem humanizar bicho. Era simplesmente viver junto e se deixar tocar por essa outra forma de ver e viver a vida. Não à toa Ulisses era sempre bem recebido na mesa de Clarice para tomar um café ou até fumar um cigarro e dividir um whisky. “Clarice reconhecia nos cães essa sabedoria inata de ‘estar sendo’, num estágio de vivência que talvez fosse mesmo o objetivo de seus personagens. E talvez seu: existir imersa no silêncio e na comunhão com o cosmos, como simples matéria viva primária”, sintetiza Nádia.
Nádia Battella Gotlib (Foto: Biblioteca Nacional)
Nádia Battella Gotlib é livre-docente pela Universidade de São Paulo – USP, atuou como professora de Literatura Portuguesa e de Literatura Brasileira na USP. Atualmente é professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. Foi professora visitante de várias universidades brasileiras federais, estaduais e particulares. E no exterior foi visiting fellow junto ao Oxford University Centre for Brazilian Studies e Senior Assistant Membre (SAM) junto ao St. Antony’s College, da Universidade de Oxford (1998). Entre suas obras publicadas, citamos Teoria do conto (São Paulo: Ática, 2012), Tarsila do Amaral, a modernista (São Paulo: SENAC, 2012), Clarice, uma vida que se conta (São Paulo: Edusp, 2013) e Clarice Fotobiografia (São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2014). Esses dois últimos foram traduzidos para o espanhol, respectivamente na Argentina e México.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quando surgiu o seu interesse pela literatura de Clarice Lispector ?
Nádia Battella Gotlib – O interesse surgiu quando estudava Letras na Universidade de Brasília e ganhei um exemplar de Laços de família. Li os contos e fiquei desorientada. Esse é o termo: perdi o rumo das coisas...
Naquela oportunidade, fazia um trabalho de pesquisa sobre os contos de Machado de Assis e notei uma grande diferença. Embora ambos apresentassem aspectos semelhantes quanto a recursos, como o da sugestão, e quanto a temas fulcrais, como o da complexidade da natureza humana, observava diferenças enormes. O narrador criado por Clarice (ou narradora?) não só, tal como Machado, desmitificava padrões e mitos, mas ia fundo na exploração da intimidade e de um outro modo: aproximava-se tanto das personagens que com elas passava a se identificar, valendo-se de um recurso eficiente, o fluxo de consciência e o estilo indireto livre, e sem benevolência, ou seja, sem por vezes dar trégua ao seu leitor.
O narrador criado por Clarice desmitificava padrões e mitos, mas ia fundo na exploração da intimidade e de um outro modo: aproximava-se tanto das personagens que com elas passava a se identificar – Nádia Gotlib Tweet
IHU On-Line – Foi um amor que se irradiou pelo tempo? Quais traços mais significativos estiveram no foco singular de sua atenção por essa autora?
Nádia Battella Gotlib – A primeira leitura dos tais contos incluídos em Laços de família, livro que me despertou para o reconhecimento dessa peculiaridade da autora no seu modo de narrar, me instigou a seguir adiante no sentido de tentar decifrar o que ela, a autora, me dizia. Para usar um exemplo, cito o conto “Amor”: o que aconteceu a Ana no Jardim Botânico? Que fenômeno era aquele? Como “traduzir” essa experiência da personagem?
E as leituras subsequentes confirmaram que a autora Clarice conseguia atingir o seu leitor ou leitora de forma contundente, com violência e certa perversão e com extrema delicadeza. Calculo que, ao misturar, em certos textos, a truculência com a fina sensibilidade, num jogo paradoxal de bem e mal, usava recurso, aliás, de tradição barroca, que viabilizava cumprir um novo percurso estético: fazer o leitor perceber de que “matéria” era feito. Assim, lhe impunha observar-se enquanto ser “humano” marcado pela multiplicidade de vetores, livrando-o de certezas cristalizadas por uma tradição patriarcal conservadora caracterizada por um reducionismo simplista.
Clarice conseguia atingir o seu leitor ou leitora de forma contundente, com violência e certa perversão e com extrema delicadeza – Nádia Gotlib Tweet
IHU On-Line – Quais motivos levaram você a fazer a biografia de Clarice e a fotobiografia? Qual foi a recepção do público e da crítica literária ao seu trabalho?
Nádia Battella Gotlib – Fui motivada, ao longo da minha carreira profissional, pela minha atividade de professora de literatura. Os livros que escrevi tinham esse intuito didático. Assim aconteceu com o livrinho Teoria do conto e com a primeira edição do livro também brevíssimo intitulado Tarsila do Amaral, a musa radiante, que ganharia edições encorpadas nos anos seguintes com o título de Tarsila do Amaral, a modernista. Ambos surgiram nos anos 1980.
Os dois livros sobre Clarice Lispector tiveram o mesmo motivo de inspiração: meus alunos. Ao iniciar os cursos de pós-graduação na Universidade de São Paulo, ficou patente a falta de uma biografia de Clarice que incluísse pesquisa de arquivo, sim, mas também pesquisa de campo: ir atrás de amigos, parentes, críticos e demais pessoas que com ela tivessem tido algum tipo de relacionamento. Foi o que eu fiz. Os resultados de tais depoimentos, unidos aos dados de informação colhidos nos quase três mil documentos depositados pelos herdeiros nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa, foram responsáveis pelo desenho de duas linhas narrativas: uma, de vida; outra, de obra.
Posteriormente me veio a ideia de fazer uma narrativa visual dessa vida e obra. Surgiu então o Clarice Fotobiografia, com mais de 800 imagens. Tive de me adaptar a esse novo formato que exigiu uma dose enorme de pesquisa: conseguir fotos de Clarice e de pessoas e lugares a ela relacionados, em museus e em arquivos pessoais e institucionais, localizados no Brasil e em vários lugares onde Clarice morou ou por onde passou. Mais um trabalho custoso, sob vários pontos de vista. Sorte que tive bolsa do CNPq que me permitiu chegar até a Ucrânia.
Recepção das obras
Posso afirmar que a crítica foi muito boa, pois entendeu o projeto e divulgou os dois livros tanto pela imprensa quanto pelos veículos especializados do mundo acadêmico. E o resultado é que os dois livros estão vivos.
O primeiro, Clarice, uma vida que se conta, que teve sua primeira edição em 1995, já conta com os seus 27 anos e está na sétima edição, pela Edusp. E o segundo, Clarice Fotobiografia, editado em 2008, teve terceira edição em 2014 e recente reimpressão nesse ano de 2022, pela Edusp/Imesp. Ambos foram traduzidos para o espanhol, respectivamente na Argentina e no México.
IHU On-Line – Hoje, você parece tocada e tem revelado particular interesse pelas cartas de Clarice. Como situar na obra da autora esse passo das cartas? Em que medida o estudo das cartas ajuda a entender a obra de Clarice?
Nádia Battella Gotlib – De fato, tenho grande interesse pela leitura de correspondência de escritores e escritoras, de modo geral. E pelas cartas escritas por Clarice (correspondência ativa) e pelas que recebeu (correspondência passiva). No caso das cartas escritas por Clarice, para definirmos aqui um limite de abordagem, reconheço sim o motivo mais comum: o da informação. As cartas nos trazem notícias referentes a acontecimentos ligados à pessoa em questão e, também, a aquelas que fazem parte do seu convívio social.
Mas as cartas dizem mais: embora sejam um produto criado por alguém e sujeito às instâncias da linguagem, que tanto pode reproduzir fatos quanto inventá-los, há pelo menos certa dosagem de informação que, se checada, pode nos trazer dados importantes e ampliar, por exemplo, o repertório autobiográfico.
Sua importância é de longo alcance: ultrapassa o campo puramente informativo e, nesse caso específico da missivista Clarice, tem implicações de ordem estética, pois são, na sua maioria, cartas bem escritas. E que mostram parentescos curiosos com outros gêneros narrativos, como a literatura de viagens e o diário íntimo. Uma Clarice-pessoa, dependendo da destinação das cartas, revela-se em diferentes papéis, ora familiares – se escreve para irmãs, amigas e amigos, filho – ou profissionais – caso se dirija a editores e tradutores, por exemplo.
Assim sendo, podemos afirmar que as cartas contribuem tanto para uma história da literatura de Clarice – quando e onde escreveu esse ou aquele romance ou conto – quanto para uma melhor compreensão da escritora Clarice – como Clarice encarava o seu trabalho de escrita? O que pretendia, ao escrever? Qual o significado da arte literária, para Clarice?
Podemos afirmar que as cartas contribuem tanto para uma história da literatura de Clarice – quando e onde escreveu esse ou aquele romance ou conto – quanto para uma melhor compreensão da escritora Clarice – Nádia Gotlib Tweet
IHU On-Line – Você tem interesse único pelos contos de Clarice e em particular o conto Amor. O que nesse conto chama a sua atenção?
Nádia Battella Gotlib – Fundamentalmente uma estrutura dupla. De um lado, simetria de construção em três tempos ou partes, com clímax na parte medial, e com partes intermediárias entre primeira e segunda e entre segunda e terceira partes. De outro lado, um movimento que acompanha tal simetria, mas que se ancora em variedade de tensão: gradação da tensão num primeiro momento e subsequente diminuição gradativa da tensão.
Esse arcabouço estrutural “suporta” uma experiência extraordinária da personagem diante do inusitado, que a leva para território novo, desconhecido, original – no sentido de remontá-la a... a quê? A partir daí, o leitor se defronta com esse enigma: o que acontece com a personagem? A indagação sugere várias reações e respostas. Eis um dos motivos da riqueza desse conto.
IHU On-Line – Como você vê essa identificação de Clarice com seus personagens e de forma específica com a personagem Joana, de Perto do Coração Selvagem?
Nádia Battella Gotlib – Não reconheceria aí propriamente uma identificação. Afinal, são dois mundos diferentes: o da pessoa Clarice e o da criadora e ficcionista Clarice. Tenho dúvidas se Clarice conseguiria fazer essa distinção, pois, segundo depoimentos dela e de outros artistas, os dois se misturam numa alquimia que embaralha as cartas e não permite definição de limites precisos.
Mas que há coincidências, há. E podem ser atribuídas ao simples fato de se tratar de personae com um DNA da condição humana a que todos nós estamos sujeitos. No caso do romance Perto do coração selvagem, identifiquei alguns pontos em capítulo do meu livro Clarice, uma vida que se conta: ser órfã de mãe quando criança, viver com o pai, viver com uma tia, não gostar da tia, cometer transgressão, a presença do livro, pendor para a poesia, sensação de “ser diferente”, dificuldade de socialização ou de “viver com” pessoas etc. Mas até que ponto poderíamos identificar tais atitudes, posturas, como sendo de Clarice e não apenas de Joana, já que no romance estão inseridas num conjunto estrutural estético autônomo cujo sentido escapa desse veio autobiográfico?
Mas até que ponto poderíamos identificar tais atitudes, posturas, como sendo de Clarice e não apenas de Joana, já que no romance estão inseridas num conjunto estrutural estético autônomo cujo sentido escapa desse veio autobiográfico? – Nádia Gotlib Tweet
IHU On-Line – Clarice faculta um olhar diferenciado sobre o tema da mulher, do empoderamento feminino e da busca da liberdade. Como você percebe isso?
Nádia Battella Gotlib – Há uma predominância numérica de personagens mulheres na literatura de Clarice. Mas isso não quer dizer que personagens homens não tenham importância nesse conjunto. E tais personagens mulheres são “inventadas” num percurso de vida que caminha em direção a um estado de “crise” entre uma situação social familiar e um mundo “outro”, estranho a esse ambiente, em que a mulher paira desvinculada de qualquer ordem da rotina e da sucessão histórica.
É como se desembocasse, de repente, num outro mundo, que provoca reações paradoxais: a personagem sente, ao mesmo tempo, atração e rejeição por esse território. No entanto, é nesse espaço, ora exíguo, como o quarto de empregada no romance A paixão segundo G. H., ora mais amplo, como o Jardim Botânico no conto Amor, que a personagem se redescobre enquanto mulher e enquanto ser vivo. Por isso o espaço se amplia, se espalha para além dos seus limites físicos. E a mulher, em união com o ser vegetal, que a rodeia, se redescobre como um “mim”, sente-se poderosa pela experiência de aí “estar sendo” de modo até então não experimentado e nem mesmo previsto.
Trata-se, sim, de uma experiência de liberação de padrões, de mitos, de sujeições. Embora Clarice não tenha se considerado “feminista”, por rejeitar rótulos, colaborou para a emancipação da mulher ao lhe legar sua obra, que pode ser considerada como o registro de um mapeamento dos caminhos que a mulher pode encontrar no sentido de se libertar de tudo o que a aprisiona nessa nossa sociedade patriarcal e machista.
Há uma predominância numérica de personagens mulheres na literatura de Clarice. Mas isso não quer dizer que personagens homens não tenham importância nesse conjunto – Nádia Gotlib
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IHU On-Line – Há todo um debate sobre a “religiosidade de Clarice”. Você tem uma percepção especial sobre esse tema. Poderia partilhar conosco?
Nádia Battella Gotlib – Clarice não confessa adesão a qualquer tipo de religião. Pelo menos não o faz em depoimentos seus. Embora pertencente a uma família de judeus que seguiam o judaísmo e que fugiram da Ucrânia para o Brasil para escapar da perseguição violenta sob a forma de pogroms ou massacres contra judeus quando Clarice era recém-nascida, a escritora não seguiu a tradição religiosa familiar. Chegou a rejeitar explicitamente, em entrevista, a ideia de o povo judeu ser o povo eleito por Deus. Não frequentou sinagogas. Não aderiu a qualquer causa em favor dos judeus.
Já sua irmã Elisa não só seguiu o judaísmo, como escreveu a história da família, em romance, em conto, em texto memorialístico, e militou em favor de causas ligadas aos judeus. São dois diferentes modos de reagir depois da chegada ao país de destino.
Quanto às evocações a Deus na sua ficção, há que considerar o contexto em que aparecem, enquanto apelos, alguns exaltados, em momentos de maior aflição e desespero. Mas a qual Deus ela se dirige? Ou Deus seria um só, sob diferentes formas, e nesse caso se confundiria com o próprio universo? São questões que sua obra propõe.
Clarice não confessa adesão a qualquer tipo de religião. Pelo menos não o faz em depoimentos seus – Nádia Gotlib
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IHU On-line – Você também trabalhou muito o tema dos romances em Clarice. Qual o lugar de A paixão segundo G.H. no caminho de compreensão do mistério de Clarice?
Nádia Battella Gotlib – Considero esse romance como um momento de apogeu da qualidade estética de Clarice. A experiência vivenciada pela personagem G. H. leva ao extremo o risco de enfrentamento de um “estado de crise”, que viabiliza checar o bom e o ruim da condição humana com rara coragem, do ponto de vista humano. Mas o que fica, para mim, paralelamente a esse desenho de descida aos Infernos, que também é o Paraíso, é a prova da genialidade de Clarice enquanto escritora, entre outros motivos, pela sua competência em criar imagens de rara força e beleza.
O romance pode ser lido como uma sequência de pujança imagística, do começo ao fim. As etapas de G.H. na sua via sacra da vida, passando por uma série de experiências como a do medo, da indignação, da revolta, da adoração, enfim, do que a vida nos oferece, essas etapas são traduzidas por imagens com carga visual e plástica de qualidade estética. Considero esse romance como um dos valiosos tesouros da literatura brasileira.
O que fica, para mim, paralelamente a esse desenho de descida aos Infernos, que também é o Paraíso, é a prova da genialidade de Clarice enquanto escritora, entre outros motivos, pela sua competência em criar imagens de rara força e beleza – Nádia Gotlib
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IHU On-Line – Fala-se muito em momentos epifânicos na obra de Clarice, desde o trabalho de Olga de Sá , passando também por Afonso Romano de Santana. Como você vê essa questão da epifania na obra de Clarice?
Nádia Battella Gotlib – Considero como um dos modos de se ler Clarice. Aliás, um eficiente modo de se efetivar a leitura, enquanto fator ligado à teoria do conhecimento, que já conta com substancioso repertório teórico e crítico. Esse recurso pode passar pelo crivo de aproximações com outros modos de se nomear o que acontece com as personagens, como o da revelação, do ponto de vista religioso, ou do inconsciente, do ponto de vista psicanalítico, ou do erotismo, enquanto união ligada à sexualidade, entre tantas outras possibilidades de leitura.
Cabe ao leitor fazer sua escolha, entre tantas vertentes disponíveis.
IHU On-Line – Hoje se fala muito em virada animal e vegetal na reflexão literária. Fala-se em zooliteratura e fitoliteratura. Pode-se considerar Clarice uma precursora dessa reflexão que se irradia com tanto vigor hoje em dia?
Nádia Battella Gotlib – Sim, acredito que sim. É o que alguns teóricos têm desenvolvido a partir da leitura de alguns escritores. É o que, por exemplo, o professor, crítico, escritor e artista plástico Evando Nascimento desenvolve na sua reflexão em torno de Clarice.
Acrescento que o tema vem à baila com mais força nesse presente momento, com certeza causado pelo pesadelo do desmatamento e do desprezo pelos reinos vegetal e animal por parte dos órgãos governamentais brasileiros. Seja como for, plantas e bichos são personagens frequentes nos textos de Clarice, desde os tempos em que tais mazelas políticas não ocupavam a imprensa.
No Brasil o seu cão chamava-se Ulisses. Tomava café sentado em cadeira e na mesma mesa que demais pessoas, e fumava e bebia whisky – Nádia Gotlib
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IHU On-Line – Clarice chega a dizer que preferia ter nascido bicho a humano. Qual o lugar desse “chamado” na vida de Clarice?
Nádia Battella Gotlib – Os bichos vivem apenas. Sem outras demandas além das consideradas básicas. E Clarice reconhece esse modo peculiar de levar a vida e parece querer atingir esse estágio de pureza existencial, caracterizada ao mesmo tempo por certa percepção sensível a valores de amizade e fidelidade.
Daí povoar suas crônicas, contos e romances com cavalos, búfalo, macacos, peixes, coelhos, cães, galinhas, sempre considerando-os como “seres vivos”, ou seja, como um hino de louvor à vida.
E ela teve cães em casa. Dilermando era o nome do cão que tinha na Itália e que teve de abandonar ao se mudar para a Suíça. Quem sabe esse abandono tem a ver com a tentativa de se redimir dessa culpa ao escrever o conto “O crime do professor de matemática”? No Brasil o seu cão chamava-se Ulisses. Tomava café sentado em cadeira e na mesma mesa que demais pessoas, e fumava e bebia whisky. Clarice reconhecia nos cães essa sabedoria inata de “estar sendo”, num estágio de vivência que talvez fosse mesmo o objetivo de seus personagens. E talvez seu: existir imersa no silêncio e na comunhão com o cosmos, como simples matéria viva primária.
Os bichos vivem apenas. Sem outras demandas além das consideradas básicas. E Clarice reconhece esse modo peculiar de levar a vida e parece querer atingir esse estágio de pureza existencial – Nádia Gotlib Tweet
IHU On-Line – Hoje você está se dedicando igualmente ao estudo das obras de Elisa Lispector, a irmã de Clarice. Qual a importância desse estudo que vem realizando?
Nádia Battella Gotlib – Elisa Lispector era a irmã mais velha de Clarice Lispector. Escreveu doze livros, sendo sete romances, três livros de contos e um livro de memórias. Pelo seu quarto romance, O muro de pedras, ganhou o Prêmio José Lins do Rego criado pela editora José Olympio, que editou o romance em 1963; e ganhou o Prêmio Coelho Neto pela Academia Brasileira de Letras, em 1964. O livro de contos O tigre de bengala, editado em 1985, recebeu o Prêmio Luísa Cláudio de Souza conferido pelo Pen Club do Brasil, em 1986.
A obra de Elisa teve também alguma repercussão na imprensa. Mas apesar de a escritora continuar produzindo, caiu no quase anonimato por décadas. Recentemente apareceram estudos acadêmicos e publicações sobre sua obra.
Há que considerar pelo menos dois pontos importantes, entre outros, nessa produção de Elisa. Um deles refere-se ao seu empenho em contar a história da família, desde os tempos em que morava na Ucrânia, bem como a viagem que fizeram, já as cinco pessoas – pai, mãe e três filhas – da Ucrânia para o Brasil, além de recriar cenas da vida da família no Nordeste. Essa fatia história manifesta-se sob a forma de um romance de teor autobiográfico (No exílio), um conto autobiográfico (Exorcizando lembranças), um texto de memória (Retratos antigos).
Outro ponto de interesse, reconheço, na sua ficção, é que tanto em contos como em romances, predominam personagens mulheres em estado de difícil vida social, dominada ora pela insatisfação e angústia, ora pela necessidade de solidão.
Espero que essa obra de Elisa seja reeditada.
Irmã do meio
E para terminar: a irmã do meio, Tania Lispector, que assinava o nome de casada, Tania Kaufmann, além de livros técnicos publicados em função de sua atividade de funcionária do Ministério do Trabalho, publicou um único livro de contos curtos, O instante da descoberta, em 2003, quando tinha seus 88 anos, portanto quatro anos antes de morrer. É curioso observar que publicou esse livro 26 anos depois da morte de sua irmã Clarice e 14 anos depois da morte de sua irmã Elisa.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/619592-clarice-lispector-a-delicadeza-e-contundencia-de-uma-literatura-de-liberacao-entrevista-especial-com-nadia-gotlib
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