Crónica de Bento Domingues*
no PÚBLICO de domingo
O cristão deve procurar uma incansável e amante inteligência da fé. Tem de a servir com a ousadia de todas as forças da sua mente e do seu afecto. A fé cristã não é um calmante, é um excitante
1. Hoje, no calendário litúrgico da Igreja Católica, celebra-se a Santíssima Trindade. Há quem diga que é uma festa desnecessária, pois, é com essa expressão da fé cristã que começam todas as celebrações da Eucaristia: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” Os fiéis respondem – Ámen, isto é, estamos de acordo, acreditamos. Este é um credo tão breve que nem dá tempo de pensar no que se diz e, pior ainda, passou a ser usado para dizer: estes dizem ámen a tudo.
A seguir, quem preside a assembleia explicita em estilo narrativo: “A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco.”
Sendo assim, até parece que têm razão os que dizem que é uma festa redundante. O perigo é passar por estes enunciados sem pensar e, quando se começa a pensar, pode acontecer como a I. Kant: “Tomada em sentido literal, a doutrina da Trindade, mesmo se se julgasse compreendê-la, é totalmente inútil em termos práticos e, menos ainda, ao reconhecer que ultrapassa totalmente os nossos conceitos. A Trindade ter três pessoas ou dez seria a mesma coisa.” K. Rahner dizia que, se o dogma trinitário fosse eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia permanecer quase inalterável e Goethe não encontrava, na fé trinitária, a mais pequena ajuda. Quem não ficou satisfeito com essa inutilidade foi Leonardo Boff. Durante o ano de silêncio imposto pelo Vaticano, escreveu uma obra que tentava mostrar a Trindade como a melhor comunidade. Por outro lado, Paul Blanquart via, na expressão trinitária da fé cristã, o que as nossas democracias não deviam ignorar, pois, nessa expressão, as pessoas são todas iguais e diferentes, todas activas sem subordinação, todas autónomas e todas em mútua relação.
Como já escrevi em crónicas passadas, considero fundamental esta simbólica para escutar, acolher e pensar a realidade misteriosa de Deus e do mundo, questionando os modelos actuais que regem a vida familiar, cultural, política, do lazer e da vida das igrejas.
Não é por acaso que a grande questão das nossas sociedades, a todos os níveis, é sempre a da coexistência pacífica da unidade e da pluralidade. Será possível viver juntos, respeitando e promovendo, ao mesmo tempo, a comunhão entre todos e a originalidade de cada um?
Se acentuamos a pluralidade, corremos o risco da fragmentação. Se sublinhamos muito a urgência da unidade, espreita-nos a uniformidade. No entanto, a coincidência entre unidade e pluralismo parece um milagre sempre diferido.
S. Paulo gastou muita energia para encontrar metáforas e razões que tornassem criativa a coabitação eclesial da unidade e da diversidade dos carismas. Eram dons e frutos do mesmo Espírito, num só corpo com muitos órgãos e membros [1].
2. Na expressão, cunhada por Paul Ricoeur, os chamados “mestres da suspeita” – Marx, Freud e Nietzsche – negavam Deus em nome da liberdade, da criatividade e da felicidade humanas. Para eles, Deus era o inimigo da nossa alegria. Santo Ireneu sustentava o contrário: a glória de Deus é que o ser humano viva e desabroche na fruição da divindade [2]. Não via nenhuma oposição entre as duas afirmações. Gozavam da mesma festa.
Ludwig Wittgenstein não pertencia aos “mestres da suspeita”. Levantou a questão fundamental: “Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i. é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus e associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido” [3].
Os cristãos não dizem apenas que acreditar em Deus é ver que a vida humana tem sentido. Acreditam que Ele é humaníssimo e fonte do verdadeiro humanismo, como escreveu E. Schillebeeckx [4].
O ser humano é a narrativa humana de Deus, a máxima unidade na máxima diversidade. Como já ficou dito, a unidade não absorve nem destrói a diversidade. As pessoas são todas diferentes, todas iguais, todas activas, todas livres, sem subordinação de umas às outras e em perfeita comunhão.
Nessas afirmações não há dominadores e dominados. O Pai e o Filho partilham um mesmo Espírito que nos é dado: “todos os que se deixam guiar pelo Espírito são filhos de Deus. Não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo, mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! Esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus” [5].
A palavra trindade não consta nas narrativas do Novo Testamento. Surgiu, na Igreja, para sintetizar e inculturar essas narrativas na filosofia greco-romana.
A incarnação trinitária de Deus é a grande originalidade da fé cristã. Se há algo singular no cristianismo é a fé de que a transcendência de Deus se faz acessível na imanência de um ser humano. Por mais escandalosa que pareça esta afirmação da fé, tem múltiplas consequências.
3. Estai prontos a dar razão da vossa esperança, sem arrogância, é a recomendação de S. Pedro. A modéstia deve ser o espírito do trabalho teológico. O cristão deve procurar uma incansável e amante inteligência da fé. Tem de a servir com a ousadia de todas as forças da sua mente e do seu afecto. A fé cristã não é um calmante, é um excitante [6]. No entanto, nunca pode esquecer a recomendação de Tomás de Aquino que herdou da chamada teologia negativa, da teologia mística: de Deus não podemos saber o que Ele é, mas o que não é [7]. De Deus, tanto mais saberemos quanto mais nos apercebermos que excede tudo o que Dele compreendermos [8].
Não há só a mística de olhos fechados. São Macário, o Grande, testemunha que aqueles que nasceram do Espírito Santo acontece-lhes chorar e afligir-se por todo o género humano, implorando a Deus por toda a descendência de Adão. Se eles sofrem e choram, é porque estão abrasados de amor espiritual por toda a Humanidade. Depois, de novo, o Espírito suscita neles uma total alegria e um tal impulso de caridade que eles quereriam, se fosse possível, encerrar em seus corações todos os seres humanos, sem distinguir os maus dos bons [9].
Na Eucaristia em que hoje participo, é cantado o hino de Santa Catarina de Sena: Ó Deus, Trindade Santa,/ ó luz mais radiosa que toda a luz,/ fogo mais ardente que todo o fogo,/ Tu és um oceano, a paz,/ Tu és um mar sem fundo,/ mais eu mergulho, mais eu me afundo,/ mais eu Te encontro, mais eu Te procuro ainda./ Sede que Tu saciaste no deserto um dia,/ para sempre ficar com sede de Ti.
Frei Bento Domingues no PÚBLICO de domingo
[1] 1Cor 12
[2] Adversus haereses, IV, 20, 5-7
[3] L. Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf:
Francoforte, 1984, 167-8
[4] Não vou entrar, aqui, no debate sobre o humanismo, o transhumanismo e o
pós-humanismo
[5] Rm 8, 14-17; Gal 3, 26-28
[6] C.G. III, c.40
[7] I Pars, q.3, prólogo
[8] II-II, q.8, 7
[9] Cf. José Mattoso, Levantar o Céu, Temas e Debates, 2012, pp.192-193
Fonte: https://pela-positiva.blogspot.com/2022/06/um-deus-humanissimo.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email
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