quinta-feira, 2 de junho de 2022

“Guerra na Ucrânia: Procuro não me desesperar”.

 Edgar Morin*

 https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2022/06/02_06_ucrania_foto_Heinrich_Bll_Stiftung_flickr.jpg

“Esperamos que a paz chegue o mais rápido possível, porque a guerra está produzindo desastres humanos irremediáveis na Ucrânia, mas também acaba agravando as condições de vida no mundo e produzindo o risco de fome em muitos países. A guerra esconde os problemas vitais que temos que enfrentar: a degradação ecológica do planeta, o aquecimento global, a explosão descontrolada do lucro que reforça a crise ecológica e acentua a crise generalizada das democracias no mundo, agravada pela pandemia não domada e que corre o risco de recrudescer”. A reflexão é de Edgar Morin, publicada por L'Obs, 26-05-2022

: https://www.nouvelobs.com/idees/20220526.OBS58953/guerre-en-ukraine-j-essaie-de-ne-pas-desesperer-par-edgar-morin.html A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

 A guerra agrava a ditadura de Putin. Talvez ela suscite um golpe de Estado que o derrube, o que parece difícil dado o rígido controle da polícia secreta. Putin assume tanto a herança czarista como a herança stalinista, sem ser um czar ou um Stalin. Ele exalta o culto da grande e santa Rússia czarista e dá continuidade aos métodos da polícia secreta stalinista. Ele não cultiva o culto de sua personalidade, mas às vezes gosta de exibir sua virilidade. Progressivamente, tornou-se cada vez mais autoritário e repressivo. Ele sofreu com o colapso da União Soviética, sabendo que não poderia ressuscitá-la, mesmo que pudesse declarar: “Qualquer pessoa que não lamenta o colapso da URSS não tem coração; qualquer pessoa que deseja o seu renascimento não tem cabeça”. Ele mantém o desejo de reagrupar pelo menos seu núcleo eslavo e ficar de olho no Cáucaso.

Além disso, a realidade ucraniana se impôs enquanto Putin via nela apenas um agregado de pequenos russos (nome tradicional na Rússia para os ucranianos no passado) e russos. Ele não viu a Ucrânia como uma unidade nacional. Ele não teve ideia de que a agressão russa completaria e consolidaria essa unidade.

No entanto, a Ucrânia é de uma formidável complexidade. Mesmo se excluirmos o Donbass, tem uma minoria de língua russa (impossível de quantificar) dividida entre a hostilidade a uma Rússia ditatorial e devastadora e a adesão total à Pátria Mãe. Florence Aubenas relatou no Le Monde uma pequena manifestação pró-Rússia que aconteceu no dia 9 de maio na própria Kiev. Há também a ambiguidade de um culto com estátuas a [Stepan Andriyovych] Bandera que foi o líder da independência ucraniana, primeiro emigrante, depois colaborador dos nazistas e cúmplice de seus crimes durante a ocupação da Ucrânia pela Wehrmacht.

O banderismo deixou assim uma herança nazista, reconhecidamente uma minoria, mas foram os fascistas ucranianos que se viram na linha de frente da guerra contra os separatistas de Donbass e cometeram abusos ali; o regimento Azov estava sob comando fascista e integrado à guarda ucraniana durante a guerra. É claro que a Ucrânia se tornou mais democrática com a urbanização e se ocidentalizou em seu consumismo devido ao seu crescimento econômico. O antigo antijudaísmo popular de uma Ucrânia rural foi progressivamente diminuindo e um judeu foi eleito presidente. Todas essas contradições foram atenuadas na guerra.

É possível um compromisso?

Para que haja uma paz de capitulação como aquela da França em 1871 e 1940, deve haver um vencido em debandada total. Caso contrário, a paz é uma questão de compromisso que se estabelece de acordo com o equilíbrio de forças e as sutilezas da diplomacia.

Atualmente, o equilíbrio de forças é mais ou menos igual, com a dificuldade russa de ocupar todo o Donbass: e mesmo uma eventual ocupação modificaria a relação de forças sem que a Ucrânia fosse derrotada. Também se poderia imaginar uma ofensiva ucraniana que empurraria os exércitos russos de volta para a fronteira, mas a Rússia continuaria sendo uma enorme potência militar ameaçadora.

Um compromisso de paz é, portanto, possível, apesar das criminalizações recíprocas e ódios exasperados que tendem a impedi-lo.

O compromisso pressupõe a independência da Ucrânia, o que é absolutamente essencial, mas a independência não significa necessariamente integridade territorial. Aqui surge a questão do Donbass, uma região industrial equipada e amplamente povoada por russos desde o tempo da URSS e que permanece de língua russa e russófila. É verdade que um certo número de falantes do russo se tornou hostil à ditadura de Putin e à brutalidade da invasão russa, mas uma grande parte está envolvida na guerra que vem acontecendo desde 2014 contra o exército ucraniano. É difícil ver esta região retornar pura e simplesmente à Ucrânia atual, que se tornou visceralmente anti-russa. E se assim fosse, os pró-russos sofreriam dura repressão e não deixariam de se revoltar.

É difícil ver a integração do Donbass em uma Ucrânia federal. Seria desejável um referendo para decidir ou sobre o status de uma república “independente”, ou sobre a integração na Rússia – o que só poderia ser feito com a garantia da independência da Ucrânia em troca de um acordo internacional que incluísse a OTAN –, com uma neutralidade de acordo com o modo austríaco ou a integração na União Europeia. Acrescentaria que seria importante considerar no futuro a inclusão da Rússia na União Europeia como um resultado positivo para a relação Rússia/Ocidente.

Sendo o Donbass de importância econômica e estratégica para a Ucrânia, seria necessário, em todo caso, criar um condomínio russo-ucraniano que compartilhasse suas riquezas.

O status do litoral do Mar de Azov deve ser abordado. Um controle russo poderia ser compensado pela criação de Mariupol e Odessa como portos livres, como no caso de Tânger.

Além disso, seria desejável que, a partir do armistício, fosse prevista a possibilidade de exportar o trigo ucraniano como o trigo russo para os países privados dele.

O montante das reparações e da reconstrução da Ucrânia deve ser arcado não apenas pela Rússia, mas também pelos ocidentais que, ao contribuir para a guerra, também contribuíram objetivamente para a destruição.

A histeria anti-russa, não só na Ucrânia, mas no Ocidente como na França, deveria se atenuar e ser combatida como a histeria anti-alemã que confundiu a Alemanha e o nazismo. É vergonhoso que artistas, dançarinos, diretores e atletas russos sejam banidos das competições e é uma sorte que, apesar do pedido dos cineastas ucranianos, os cineastas russos não tenham sido excluídos do Festival de Cannes.

Esperamos que a paz chegue o mais rápido possível, porque a guerra está produzindo desastres humanos irremediáveis na Ucrânia, mas também acaba agravando as condições de vida no mundo e produzindo o risco de fome em muitos países. A guerra esconde os problemas vitais que temos que enfrentar: a degradação ecológica do planeta, o aquecimento global, a explosão descontrolada do lucro que reforça a crise ecológica e acentua a crise generalizada das democracias no mundo, agravada pela pandemia não domada e que corre o risco de recrudescer.

Procuro não me desesperar, não tanto por mim, que estou no final da vida, mas pelas gerações mais jovens e nossos descendentes.

* Pseudônimo de Edgar Nahoum, é um antropólogo, sociólogo e filósofo francês judeu de origem sefardita. Pesquisador emérito do CNRS. Formado em Direito, História e Geografia, realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/619150-guerra-na-ucrania-procuro-nao-me-desesperar-artigo-de-edgar-morin

Nenhum comentário:

Postar um comentário