09 Junho 2022
Em uma guerra é compreensível que as emoções estejam à flor da pele. No entanto, o proeminente filósofo alemão Jürgen Habermas pede que não nos deixemos levar pelo afã de guerra ou por uma “política do medo”. Insiste na razoabilidade e na “consideração integral”.
A reportagem é de Marc Vandepitte, publicada por Rebelión, 08-06-2022. A tradução é do Cepat.
O fim do pacifiso alemão
Um dos acontecimentos mais marcantes e inesperados desta guerra é a virada radical que a Alemanha deu em termos de armamento e esforço de guerra. O país não tem uma verdadeira indústria bélica, gastava relativamente pouco em armamento no passado, e seu governo geralmente tem sido muito moderado em conflitos militares. Recordemos os casos do Iraque em 2003 ou da Líbia em 2011.
Do ponto de vista histórico, é mais do que compreensível e sensato. No passado, a militarização da Alemanha provocou, em duas ocasiões, uma conflagração global com dezenas de milhões de mortes. Portanto, é melhor não voltar a essa situação.
Há uma segunda razão para a relutância alemã em participar do conflito atual. Após a queda do Muro de Berlim em 1989, o capital alemão dirigiu-se para a Europa Oriental e Central. Fortes laços econômicos foram estabelecidos com a Rússia, entre outros.
Fora da União Europeia, a Rússia era até recentemente o quarto país mais importante para as importações alemãs e o quinto para as exportações de produtos alemães. Especialmente no campo da energia, os alemães dependem muito da Rússia: para o gás 32%, para o petróleo 34% e para o carvão 53%.
Portanto, o capital alemão não tem nada a ganhar com um conflito prolongado, muito menos com sua escalada, pelo contrário. São, ao contrário, principalmente os Estados Unidos que têm interesse nisso. Pelo menos é assim que Willy Claes, ex-chefe da OTAN, vê a situação. Segundo ele, esse conflito é essencialmente um “confronto entre a Rússia e os Estados Unidos” no qual “a Europa não desempenha nenhum papel”. Ele ressalta que para os Estados Unidos “pode se prolongar um pouco mais” (1).
No início da invasão, o governo federal alemão mostrou-se especialmente comedido pelas duas razões mencionadas, para aborrecimento de países como os Estados Unidos, o Reino Unido e os Estados do leste da União Europeia. Eles pressionaram o chanceler Scholz para que abandonasse essa relutância.
A pressão da mídia foi ainda maior. O fato de quase todo mundo ter um smartphone no bolso faz desta a guerra mais midiática da história do mundo. Podemos acompanhar quase online o sofrimento desta guerra nos detalhes mais macabros, o que desperta muitas emoções, mesmo longe do campo de batalha.
Além disso, a grande mídia usa uma abordagem de Hollywood: os mocinhos contra os bandidos. Esse tipo de abordagem é excelente para as vendas e, além disso, desperta as emoções da opinião pública. Mas essa forma de reportar não deixa espaço para nuances ou para abordagens equilibradas como as adotadas pelo governo alemão no início do conflito.
Finalmente, Olaf Scholz sucumbiu à grande pressão, e a política externa pacifista dos últimos 75 anos chegou ao fim. Nos próximos anos, a Alemanha gastará até 100 bilhões de euros a mais em armas e também houve promessas de entrega de armas para a Ucrânia.
Um dilema incômodo
Jürgen Habermas escreveu um artigo de opinião no Suddeutsche Zeitung que vai contra essa pressão sobre o chanceler alemão e a ruptura com o passado pacifista. Habermas é o filósofo alemão mais proeminente e respeitado, quase o Chomsky da Alemanha.
O filósofo de 92 anos expõe o dilema incômodo que o Ocidente enfrenta: uma derrota na Ucrânia ou a escalada de um conflito limitado que pode se transformar na Terceira Guerra Mundial. Neste “espaço entre dois males” o Ocidente optou por não participar diretamente desta guerra.
Para Habermas, é uma decisão acertada, porque “a lição que aprendemos com a Guerra Fria é que uma guerra contra uma potência nuclear não pode mais ser ‘vencida’ em um sentido razoável, pelo menos não pela força militar”.
O problema é que, nesse caso, Putin determina quando “o Ocidente ultrapassa o limite estabelecido pela lei internacional, acima do qual também considera formalmente o apoio militar à Ucrânia como o início de uma guerra por parte do Ocidente”. Isso dá ao lado russo uma vantagem assimétrica sobre a OTAN, que não quer se tornar parte da guerra devido às proporções apocalípticas que uma guerra mundial envolvendo quatro potências nucleares pode ter.
Por outro lado, o Ocidente “não pode se deixar chantagear à vontade. Se o Ocidente simplesmente deixasse a Ucrânia por conta própria, não seria apenas um escândalo do ponto de vista político e moral, mas também não seria do seu próprio interesse”. O roteiro do que aconteceu na Geórgia e na Moldávia (2) poderia então se repetir e, pergunta Habermas, “quem seria o próximo?”
Nesse desconfortável cenário, Habermas comemora o fato de que o chanceler alemão não se deixe levar por uma “política do medo” e que insista em uma “consideração politicamente responsável e global”.
O próprio Scholz resumiu sua política no Der Spiegel da seguinte maneira: “Nós estamos enfrentando o sofrimento que a Rússia está infligindo à Ucrânia com todos os meios à nossa disposição, sem provocar uma escalada incontrolável que cause sofrimento imensurável em todo o continente, talvez até no mundo inteiro”.
Os beligerantes
Mas Scholz está sob forte pressão. Enfrenta uma “feroz batalha de ideias, alimentada por vozes na imprensa, sobre a natureza e a extensão do apoio militar à sofrida Ucrânia”.
Além disso, o personagem principal, o presidente Zelensky, é um ator talentoso, “que conhece o poder das imagens e cria mensagens poderosas”. Os “mal-entendidos políticos e as decisões equivocadas dos governos alemães anteriores” tornam-se assim simplesmente uma “chantagem moral”.
Habermas refere-se aqui, por um lado, à continuação da política de distensão após a queda da União Soviética, mesmo quando Putin se tornou imprevisível, e, por outro, à dependência do petróleo russo barato.
Essa chantagem moral “arrancou os jovens de suas ilusões pacifistas”. Refere-se explicitamente a Annalena Baerbock, a jovem ministra das Relações Exteriores dos Verdes, “que se tornou um ícone, que expressou sua comoção de maneira autêntica com gestos confiáveis e uma retórica confessional imediatamente após a eclosão da guerra”.
Três dias após a invasão, Baerbock fez um discurso emocionado perante o Parlamento alemão. Como em outros países, os Verdes alemães têm fortes raízes no movimento pela paz. É, portanto, muito surpreendente que foram principalmente os Verdes alemães que pressionaram dentro do governo para entregar mais armas e mais rapidamente.
Habermas está particularmente incomodado com a “retórica beligerante” e “a autoconfiança com que os promotores moralmente indignados da Alemanha agem contra um governo federal ponderado e comedido”. Eles assediam o chanceler com “exigências míopes”.
Segundo Habermas, “a conversão dos ex-pacifistas” leva a “erros e mal-entendidos”, há uma “confusão de sentimentos”. Esses “agitados opositores à linha governamental […] são incoerentes ao negar as implicações de uma decisão política que não questionam” (3).
Scholz soube manter a calma até agora. Teve de fazer concessões, mas continua a adotar uma atitude cautelosa e moderada, especialmente em comparação com a atitude beligerante dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha. A Alemanha prometeu aumentar o fornecimento de armas à Ucrânia, mas são promessas, e seu cumprimento é, de qualquer forma, lento.
Ao contrário dos países mais beligerantes, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e os países bálticos, França, Alemanha e Itália mantêm um diálogo aberto com a Rússia. Por exemplo, Scholz e Macron tiveram uma conversa telefônica com Putin para negociar, entre outras coisas, o desbloqueio das exportações de alimentos da Ucrânia.
Putin
Habermas também está incomodado com o “enfoque em Putin como pessoa”. Isso “leva a especulações selvagens, que nossos principais meios de comunicação espalham hoje, como no apogeu da sovietologia especulativa”.
A mídia pinta uma imagem de “um ambicioso visionário” que “vê a restauração gradual do Grande Império Russo como a obra de sua vida política”. Diante desse “perfil de personalidade de um nostálgico histórico enlouquecido está um curriculum de progresso social e a trajetória de um homem forte, racional e calculado”.
Habermas interpreta a invasão da Ucrânia “como uma reação frustrada à recusa do Ocidente em negociar a agenda geopolítica de Putin”.
Para Habermas, Putin é “um criminoso de guerra” que merece comparecer perante o Tribunal Penal Internacional. Mas ao mesmo tempo assinala que o presidente russo ainda tem direito de veto no Conselho de Segurança e pode ameaçar seus oponentes com armas nucleares.
Gostemos ou não, será com ele que teremos que “negociar o fim da guerra, ou, pelo menos, um armistício”.
Notas
(1) Willy Claes no programa de televisão belga De Afspraak em 24 de maio: “Se posso dizê-lo um pouco descaradamente, trata-se agora de um confronto entre a Rússia e os Estados Unidos. Com todo o respeito e simpatia para com os ucranianos, e a propósito, a Europa não está envolvida. […] Em suma, é do interesse dos Estados Unidos que se prolongue por mais algum tempo. […] Este é um momento de ouro para a indústria bélica, que é estadunidense por definição”.
(2) Em 2008, a Rússia invadiu a Geórgia para apoiar as autoproclamadas repúblicas da Ossétia do Sul e da Abcácia em seu conflito com o governo central da Geórgia. Os russos se retiraram após uma trégua, mas mantiveram uma zona de segurança nas áreas de conflito. Algo semelhante aconteceu antes na Moldávia no período 1990-1992.
(3) Refere-se à decisão da OTAN de não se envolver diretamente nesta guerra.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/619365-habermas-a-conversao-dos-ex-pacifistas-leva-a-erros-e-mal-entendidos
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