sexta-feira, 24 de junho de 2022

“Não deixei de ser padre só porque me apaixonei” - Na primeira pessoa.

 


Nasci e vivi em Winnipeg, no Canadá, até aos 14 anos, onde tive uma infância bastante natural. Em casa, brincava aos padres, mas também aos bombeiros ou cabeleireiros. Os meus pais foram excelentes pais e, sendo muito católicos, ficaram contentes quando entrei no seminário.

Quando, 15 anos mais tarde, expliquei que deixar de ser padre era uma questão de integridade pessoal e que, se continuasse, não ia gostar da pessoa que ia ser, também perceberam. Custou-lhes, mas aceitaram e apoiaram-me.

Segui o meu coração. Não quer dizer que tenha feito tudo bem, mas não são coisas que possamos planear, ter uma ideia completa de como vai ser. A vida acontece.

Acho que a primeira vez que fiz perguntas acerca do sentido disto tudo e de quem eu era foi quando, com 14 anos, fui de férias aos Açores, visitar os avós, e os meus pais disseram que já não íamos voltar ao Canadá. Foi um choque e uma mudança enorme.

Aos 18 anos, a melhor forma de obter respostas para estas perguntas existenciais parecia-me ser estudar Teologia e Filosofia na Universidade Católica, em Lisboa. Mas um amigo acabou por convencer-me a entrar no seminário e lá fui para Angra do Heroísmo.

Desde cedo, no seminário, comecei a trabalhar voluntariamente na cadeia e aí testava, de certa forma, as coisas que ia aprendendo. Gostava muito de ajudar as pessoas, para que pudessem ter uma vida melhor, com mais sentido.

Nunca fui um seminarista-modelo ou convencional. O cabelo grande já vem desde os 20 anos, era um bocadinho contra o sistema, questionava a autoridade e tive altos e baixos. Cheguei a fugir à noite para ir à discoteca. Uma vida normal de estudante…

Perguntei-me várias vezes se era mesmo aquilo que queria fazer com a minha vida, mas nunca tive crises de fé. Sempre vi o meu caminho como um chamamento de serviço às pessoas através do ministério do sacerdócio e pareceu-me que era uma coisa boa de se fazer.

“Podíamos despir a Igreja e ir à essência”

Os primeiros três anos como sacerdote foram passados na ilha de Santa Maria onde trabalhei com o meu colega e grande amigo, o Padre Adriano. Foram excelentes anos de trabalho, mas comecei a ter ainda mais perguntas. Achava (e acho) que a Igreja continua a fazer um diagnóstico da Humanidade de um tempo que não é o tempo de hoje.

As pessoas têm outra forma de expressar a espiritualidade. Por exemplo, não entendo como a homossexualidade não é aceite e entendida porque, quer dizer… está aí. Também, em termos de economia, a Igreja podia dar mais vezes o exemplo, e não dá.

Não me via numa paróquia a fazer as mesmas coisas durante 40 anos. Quis estudar melhor a Bíblia e acabei por passar um ano na Terceira a estudar grego, latim e hebraico, antes de seguir para um curso de cinco anos no Pontifício Bíblico, em Roma, onde as inquietações que tinha acabaram por aumentar.

A certa altura, estive seis meses em Jerusalém, onde encontrei uma Igreja muito mais simples, mais pura e mais próxima das origens. Jerusalém ajudou a confirmar que, efetivamente, podíamos despir a Igreja de muitos séculos de rituais e ir mais à essência. E foi assim que, no fim do quarto ano, apercebi-me, de uma forma bastante viva e intensa, que a Igreja ia mudar, mas muito lentamente, não ao ritmo e com a profundidade que eu esperava. Então a crise saiu.

Ser obediente, pobre e celibatário custa. Pode parecer materialista, mas eu entreguei essas três coisas em função de fazer parte de um movimento que ia ser revolucionário. Isso era o que eu tinha na minha cabeça, de certa forma idealista e romântica, mas queria essa revolução e quando me apercebi que não ia acontecer, deixou de ter sentido

Nessa altura, tinha tido uma oferta do reitor do Instituto Bíblico para fazer o doutoramento onde eu quisesse e regressar para dar aulas. Era uma oportunidade fantástica, mas só conseguia pensar: “Vais passar o dia na biblioteca fechadinho, depois vais dar umas aulas, talvez vás celebrar uma missa, mas, no fim da tua vida, o que vai mudar?”

Podia voltar para uma paróquia, mas parecia uma roda de hamster, a andar sempre à volta. Apesar de ajudarmos as pessoas, enquanto instituição as coisas iam ficar na mesma.

Ser obediente, pobre e celibatário custa. Pode parecer materialista, mas eu entreguei essas três coisas em função de fazer parte de um movimento que ia ser revolucionário. Isso era o que eu tinha na minha cabeça, de certa forma idealista e romântica, mas queria essa revolução e, quando me apercebi que não ia acontecer, deixou de ter sentido.

“Sentia medomdo desconhecido”

Quando vim de férias aos Açores, falei com o Bispo e contei-lhe o que estava a passar-se comigo, que pensava seriamente deixar de ser padre. Regressei a Roma para acabar o curso, mas, como tinha todas estas dúvidas, não quis que a Diocese pagasse, por isso comecei a dar aulas de grego na Universidade Gregoriana, além de fazer locuções em português e inglês da voz do Papa.

Aí trabalhava a Cláudia, com quem viria a casar-me. Não deixei de ser padre só porque me apaixonei. Já me tinha apaixonado antes, de forma platónica… Com muita liberdade para tomar a decisão, voltei aos Açores e confirmei ao bispo o que já lhe tinha dito no ano anterior. Falar com o bispo e com os meus pais foi das coisas mais difíceis que tive de fazer.

Mas o bispo disse uma coisa muito importante: explicou que a Igreja tinha feito um grande investimento em mim e que queria que desse fruto, dentro ou fora da Igreja. Tirou-me um enorme peso das costas e da consciência. Hoje tenho como missão vital dar fruto àquele investimento.

Decidimos viver em Barcelona, onde a Cláudia tinha uma proposta de trabalho, e casámo-nos pelo civil, em 2009. Nunca mudei de ideias por ter deixado o sacerdócio.

Ainda assim, foram 15 anos dedicados à Igreja e eu não conhecia outro mundo, sentia medo do desconhecido. A Cláudia ajudou-me muito, mostrou-me que existiam outras coisas e que eu podia integrar-me no mundo de outra maneira. Estive casado com a Cláudia 11 anos e tivemos uma filha, a Irene, de 8 anos. A Irene está na catequese.

Fiz um mestrado em Resolução de Conflitos e, hoje em dia, formo aquilo que se chamam “badass teams” em empresas. É um trabalho de crescimento e conhecimento pessoal, estabilidade emocional, empatia e vulnerabilidade.

Sou um sortudo. Nasci com muito amor e tenho prazer em viver. Quando vejo o Sol a nascer, quando saio a correr, a ouvir música, quando trabalho com as pessoas e vejo as suas dores, o seu esforço, a sua vontade de crescer, vejo Deus nessas coisas todas. Chamem-me louco, mas Deus está em todo o lado.

Fonte:  https://visao.sapo.pt/atualidade/sociedade/2022-06-11-na-primeira-pessoa-nao-deixei-de-ser-padre-so-porque-me-apaixonei/

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