Então ele me olhou e disse com a maior seriedade possível, uma seriedade tão grande que chegava a criar uma sombra no seu rosto, como se, de repente, ele percebesse uma impossibilidade lógica maior:
– Tem um problema aí…
– Aí aonde?
– Aí no aparecimento da humanidade.
– Como assim?
– Nem o homem nem a mulher pode ter vindo primeiro.
Fiquei por alguns segundos sem saber o que dizer. Nas conversas que tínhamos, pelas ruas, isso não era raro. Ele ficava ainda mais inteligente com aquele ar de perplexidade. Esperei que falasse:
– É um problema lógico.
– Como assim.
Ele parecia esperar que eu compreendesse o problema lógico por conta própria, de tão evidente que ele subitamente lhe parecia:
– Se há um primeiro, homem ou mulher, então o primeiro não pode ter nascido de uma relação sexual, pois ainda não havia dois para isso.
Fiquei sorrindo. A questão não me parecia importante. Para ele, no entanto, era, a partir de então, a mais relevante de sua vida.
– Isso quer dizer que o primeiro ser humano não nasceu de uma relação sexual, dado que não podiam existir ainda dois para isso.
Eu já tinha entendido o raciocínio. Aguardava que ele me desse alguma pista de como imaginava que as coisas pudessem ter acontecido. Com ele era assim, havendo problema, impunha-se a busca de uma saída.
– Para quem crê em Deus não há problema – disse.
– E para quem não crê?
– Aí é que está. Qual a narrativa lógica possível?
– Devem ter surgido ao mesmo tempo um macho e uma fêmea – arrisquei.
– Surgido de onde? Do sexo não seria, pois o par ainda não existia.
– É uma longa evolução – arrisquei – Os primeiros seres não eram sexuados. A reprodução não se dava como vemos em nós mamíferos.
Ele considerou a possibilidade. Ainda não parecia convencido ou satisfeito. Fazia cogitações em seu cérebro estampado nos olhos escuros. Por fim, com ar de contrariedade, fez uma observação:
– Não deixa de ser esquisito que possa ter existido um primeiro mamífero e, mais do que isso, um primeiro humano, não nascido de uma relação sexual, salvo se a evolução gerou dois indivíduos ao mesmo tempo capazes de se relacionar e gerar o primeiro fruto da reprodução sexuada. Mesmo assim, antes desse primeiro, teriam de ter existido dois seres sexuados gerados de outro modo, um modo assexuado.
Eu ri. Falei que nunca havia me interessado por esse momento inaugural da espécie, que andava mais preocupado com a geração da inflação, que me parecia um modo de reprodução negativa, quanto mais a inflação crescia, menos meu dinheiro valia. Ele deu um sorriso amarelo, como quem diz “dã”, e continuou a pensar no surgimento da humanidade. Foi então que, com ar ainda mais sério, disse isto:
– O homem não pode ser o centro do universo.
Tinha oito anos de idade.
*Jornalista. Escritor. Professor Universitário
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/juremir-quem-nao-nasceu-do-sexo/
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