O ditador Souza Tavares em ação: "Cozinha não é um espaço de gestão democrática.
A mesa, a seguir, é que é".
O escritor português Miguel Souza Tavares, de 60 anos, tem uma longa relação com a cozinha. Começou a cozinhar depois de seu primeiro divórcio - e já foram três. Em junho do ano passado, casou-se pela quarta vez. Mas se o evidente apreço marital pelo sexo feminino teve idas e vindas, as descobertas culinárias com um constante grupo de homens não tiveram fim. Daí o título do livro "Cozinha d'Amigos", lançado em dezembro, em Portugal, pela Oficina do Livro (128 páginas, 24,40 euros).
Com receitas, memórias e opiniões contundentes, o autor dos romances "Equador" e "Rio das Flores", editados aqui pela Companhia das Letras, faz sua primeira incursão no terreno gastronômico. Para quem acha a cozinha um espaço democrático, ele deixa claro que gosta da ideia de que cada um é ditador na sua. Nacionalista, que se nega como tal, Souza Tavares considera a culinária portuguesa uma das melhores do mundo e manifesta certo desdém pela italiana e até pela japonesa. Mas essa é apenas uma das opiniões polêmicas que externa, entre tantas outras, na entrevista a seguir.
Valor: Por que um livro de receitas?
Miguel Souza Tavares: É uma espécie de "serviço público". Tento explicar no livro que, ao contrário do que nos fazem crer, cozinhar não é assim tão complicado e pode ser um prazer, quando se cozinha para amigos, sem pretensões nem ostentações.
Valor: Como você começou a cozinhar?
Souza Tavares: Depois do meu primeiro divórcio. Quando me enfastiei de comer todos os dias em restaurantes, quando tudo já me parecia ter o mesmo gosto e eu tinha curiosidade de experimentar o que seria poder comer sozinho em casa.
Valor: Qual critério foi usado para a seleção de receitas?
Souza Tavares: Escolhi receitas às quais, por uma razão ou outra, estou pessoalmente mais ligado. Umas têm a ver com a infância, outras com comida de férias de praia, outras com a comida que faço para os amigos na minha casa no campo, no Alentejo, algumas que a minha mãe fazia. Digamos que são receitas que têm uma história. Aliás, o livro não é propriamente um livro de cozinha, mas um livro de histórias da cozinha, que contém receitas.
"Cozinhar não é assim tão complicado
e pode ser um prazer, quando se cozinha
para amigos, sem pretensões
nem ostentações"
Valor: Que pratos você faz melhor?
Souza Tavares: Não é nenhum prato em especial. Um prato pode sair bem hoje e mal amanhã. São momentos, depende da concentração, do estado de espírito, da atenção aos pormenores. Mas, claro, há vários pratos nos quais eu não falho, que quase poderia fazer de olhos fechados: sopa de peixe e marisco, por exemplo.
Valor: Como foi a experiência de escrever sobre cozinha?
Souza Tavares: Mais do que as receitas ou a culinária, aquilo que me divertiu foi a escrita: escrever sobre cozinha, exatamente. Para quem já escreveu romances, livros infantis, livros de viagens, crônicas, reportagens, escrever sobre cozinha foi a demonstração de que o importante é escrever - o gênero é o menos importante.
A sala de refeições na quinta do Alentejo: "as mulheres se limitam a comer e tirar a mesa".
Valor: Você tem um grupo constante de amigos que vão pra cozinha?
Souza Tavares: Tenho, nas férias de verão. Somos três amigos. Todos os dias de manhã vamos ao mercado comprar peixe e legumes e à noite cozinhamos - cada um o seu prato -, enquanto as mulheres se limitam a comer e tirar a mesa. Depois, tenho outros amigos (companheiros de caça, por exemplo) com quem cozinho; às vezes em forma de desafio, outras em colaboração. Gosto muito do ambiente dos amigos homens na cozinha.
Valor: Você caça? O quê?
Souza Tavares: Sim, na Europa caçamos, não somos tão politicamente corretos como aí. É o meu maior prazer. Caço, sobretudo, aves: perdiz, pombo bravo, codorniz, rola, pato bravo. Mas também coelhos, lebres, javalis. E faço também caça submarina. Tudo sempre com uma regra: não mato o que não vou comer.
Valor: Por que cozinhar só entre homens? As mulheres atrapalham?
Souza Tavares: As mulheres na cozinha ou sabem cozinhar e ajudam (coisa que vai sendo rara...) ou então atrapalham, como atrapalham todos aqueles que estão na cozinha sem fazer nada, enquanto você cozinha. Depois de tantos anos a ouvir as mulheres queixarem-se de que precisavam de se libertar da cozinha, descobri que não há nada melhor do que uma cozinha só com homens-amigos, que têm prazer de estar lá.
Valor: Quais são suas manias na cozinha?
Souza Tavares: Lá não tenho telefone nem televisão e não gosto de conversas em volta que me distraem. Gosto de ter as minhas coisas à mão e que ninguém as venha arrumar - o copo de vinho branco, os cigarros - e, como eu digo, gosto do princípio de que cada um é ditador na sua cozinha. A cozinha não é um espaço de gestão democrática. A mesa, logo a seguir, é que é.
Valor: Quer dizer que você fuma enquanto cozinha...
Souza Tavares: Eu fumo enquanto cozinho, enquanto escrevo, enquanto penso, enquanto caço, enquanto me deixarem. Sou militante contra o politicamente correto e o fascismo higiênico que os americanos impuseram ao mundo.
Valor: Você é produtor de azeite?
Souza Tavares: Não, imagina. Acontece que, há uns anos, fiz uma transplantação de oliveiras muito antigas (a mais nova deve ter uns duzentos anos) para a minha quinta do Alentejo. Depois de uns anos em choque traumático, em 2011, finalmente, elas deram azeitonas suficientes para fazer azeite para a casa e não mais: 40 litros. Por algum milagre inexplicável, e testemunhado por todos os que já o provaram, trata-se do melhor azeite que alguma vez provei! Uma coisa surpreendente, fantástica, e na qual o único mérito que terei tido foi, ao longo destes anos, falar frequentemente com as oliveiras. Eu fazia carinho no tronco delas, dizia que gostava muito de tê-las ali e que esperava que elas, também, estivessem felizes de ali viver. Sabe, eu acho que se deve falar com as árvores! A prova de que fui escutado é que fui recompensado: o meu azeite envergonha qualquer marca de luxo (que orgulho poder dizer isto!).
"Ao El Bulli fui uma vez, por curiosidade,
e ri-me do princípio ao fim.
Aquilo não tem nada a ver com a minha cozinha,
mas foi cômico assistir a
toda aquela encenação."
Valor: De que forma os sabores do Alentejo, ao sul, e do Porto, ao norte, onde você nasceu, se fundiram à mesa?
Souza Tavares: Eu cresci no norte e depois tornei-me habitante do sul, do Algarve e do Alentejo. Acho a cozinha portuguesa fabulosa, diferente de região para região e a melhor, para mim, é a do norte. O norte, porém, não entra neste livro, que é, basicamente, sobre a cozinha do sul, aquela que agora se chama "dieta mediterrânea" e que os especialistas concluíram ser, talvez, a cozinha mais saudável do mundo. Pode ser que numa futura edição alargada eu tenha receitas e histórias sobre a cozinha do norte de Portugal, que é, em grande parte, a cozinha da minha infância.
Valor: Você é do tipo que faz viagens gastronômicas? Que procura lugares como o ex- El Bulli, do Adrià?
Souza Tavares: Não faço viagens gastronômicas, mas quando viajo procuro conhecer a cozinha local e os melhores locais para a experimentar. Por exemplo, no Brasil, se estou em Belém, quero comer o pato no tucupi e o peixe do Amazonas; se estou em São Luís, busco experimentar a patinha de caranguejo.
Quem ler o meu livro descobrirá que eu odeio a nouvelle cuisine, que acho uma coisa pretensiosa, para novos-ricos, e acho que nela as coisas perdem quase sempre o seu sabor original. A verdadeira cozinha para mim é o que eu chamo cozinha natural: produtos frescos e bons, feitos de forma tão simples que preservam seu sabor original.
Valor: Você disse, numa entrevista ao jornal português "Expresso", que considera a cozinha japonesa e a italiana pobres. Por que?
Souza Tavares: Porque são pouco variadas - se bem que o melhor delas não é exportado. Se você quer comer cozinha italiana à sério, tem de ir à Itália, e o mesmo com a japonesa. Mesmo assim, acho a cozinha italiana muito pouco variada e imaginativa, quando comparada, por exemplo, com a francesa, a basca (talvez a melhor do mundo) e a portuguesa. A melhor cozinha italiana é a do Piemonte (a região das trufas), mas varia pouco. Eles não sabem cozinhar o peixe, por exemplo, não usam ervas, não tiram todo o partido do azeite, as entradas são limitadas e, ao fim de uns dias, você está farto. Não sou muito nacionalista, mas a verdade é que, quanto mais cozinhas conheço, mais viajo e mais coisas estranhas experimento, mais me convenço que a cozinha portuguesa tradicional é das melhores do mundo. Vocês praticamente só conhecem o bacalhau e o pastel de nata, mas todos os brasileiros com quem costumo comer aqui ficam siderados com a nossa cozinha.
Valor: É verdade que você odeia Nespresso? De qual café gosta?
Souza Tavares: Odeio. É só espuma e presunção. Gosto de um café forte, escuro, onde ainda reconheça o cheiro e o sabor dos grãos de café. Gosto do arábica e dos vários "blends" que se obtêm misturando alguns cafés da África com outros da Ásia, como o de Timor.
Valor: Que outra opinião provocativa você cultiva no domínio gastronômico?
Souza Tavares: Estas não são opiniões provocativas. Não gostar de nouvelle cuisine ou de Nespresso não é uma provocação, é simplesmente não se alinhar com a moda dominante e dizer que as coisas são tão melhores quanto mais naturais forem e mais próximas se mantiverem do seu sabor original. Sabe que em Portugal (que eu acho que tem o melhor peixe e os melhores frutos do mar do mundo), nós temos algumas 30 variedades de frutos do mar e algumas 40 de peixe que você encontra regularmente no mercado e todas elas têm sabor diferente? Eu posso fazer aqui provas cegas de peixe e digo-lhe o nome de todos os que estou a comer. Mas vou ao El Bulli ou a outro templo de estrelas Michelin, e todos os peixes têm o mesmo gosto, em função das combinações absurdas que eles fazem. Ora, em vez de experimentar o sabor de um salmonete - que é um peixe extraordinário -, misturado com geléia de gengibre em emulsão de fígado de avestruz e massa de abóbora, prefiro experimentar o sabor único do salmonete. Isso, para mim, é a verdadeira cozinha.
Valor: Há negociações para a edição de "Cozinha d'Amigos" no Brasil?
Souza Tavares: Nem me ocorreu. Você acha que os brasileiros poderiam ter interesse em ler as considerações de um homem na cozinha, às voltas com algumas receitas mediterrâneas da cozinha portuguesa? Quem dera!
-------------------------REPORTAGEM Por Maria da Paz Trefaut Para o Valor, de São Paulo
FONTE: Valor Econômico online, 26/01/2012
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