Para o economista Eduardo Giannetti da Fonseca,
a evolução tecnológica não resolve o problema,
porque barateia produtos que
agridem a natureza.
O economista mineiro Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper de São Paulo, teve um estalo há alguns anos. Diante dos sinais irrefutáveis da mudança no clima, percebeu que a vida no planeta está indo para um buraco perigoso - e sem retorno - em virtude do modo insustentável de produção. Fã da economia de mercado, Giannetti alerta para a "cegueira" do sistema de preços, que considera omisso quanto ao custo ambiental das escolhas de produção e consumo. "Ele padece de uma falha tão ou mais grave no longo prazo do que o planejamento central. Nunca imaginei que diria isso na vida." Para Giannetti, é preciso uma mudança nos valores e na forma de produzir e consumir. Senão, diz o economista, a conta recairá sobre o meio ambiente. "E o a ambiente não aceita desaforos." A seguir, trechos da entrevista que ele concedeu ao Valor.
Valor: E como termina essa história?
Eduardo Giannetti da Fonseca: Lamentavelmente, o ambiente não vai aceitar indefinidamente esse desaforo, ainda mais com 1 bilhão de indianos e chineses entrando na corrida armamentista do consumo. O limite virá de fora. Adoraria que viesse do amadurecimento ético, com as pessoas ganhando uma nova consciência e outros valores. Duvido muito. O mundo está se estreitando dentro de um padrão democrático monetário americano dominante. Mas o limite ambiental, que não é de escolha humana, vai se impor.
"A qualidade de vida piora, as pessoas
agora têm que comprar uma coisa que
era antes um bem livre e, no entanto,
parece que ficaram mais prósperas.
Quando a gente tiver de andar com
uma garrafinha de oxigênio no bolso
para continuar respirando,
o PIB vai subir de novo."
Valor: De que forma?
Giannetti: Já está se impondo. A expressão visível e ameaçadora de que tem limite é a mudança climática. Isso vai levar à mudança nos modos de produzir, consumir e até de valores. Essas mudanças ocorrerão de forma voluntária ou terão de ser impostas. Chegamos a uma situação de tal gravidade que não dá para esperar para compactuar alguma mudança que não sacrifique tanto a liberdade.
Valor: O que está errado?
Giannetti: Eu, que sou fã da economia de preços e de mercado, hoje percebo que ela padece de uma cegueira absurda, que é o modo como usamos os recursos ambientais. O sistema de preços é completamente omisso em relação ao custo ambiental de nossas escolhas de produção e consumo. Não sinaliza a gravidade do que estamos fazendo com o espaço biológico de que nossa vida depende. Um exemplo vem de Alfred Marshall, economista inglês do século XIX: suponha uma comunidade com acesso a água potável de graça. A água não entra em nenhum tipo de registro. Mas se as pessoas dessa comunidade poluírem todas as fontes de água potável e passarem a direcionar trabalho para engarrafar, distribuir e vender esse bem, o que acontece com o PIB desse país? Aumenta. Uma coisa que antes era de graça passa a demandar trabalho, as pessoas passam a desembolsar dinheiro para comprá-la e o PIB aumenta.
Valor: Mas a qualidade de vida piora.
Giannetti: A qualidade de vida piora, as pessoas agora têm que comprar uma coisa que era antes um bem livre e, no entanto, parece que ficaram mais prósperas. Quando a gente tiver de andar com uma garrafinha de oxigênio no bolso para continuar respirando, o PIB vai subir de novo. Se as doenças respiratórias aumentarem porque o ar está poluído e for preciso trabalhar mais para pagar os remédios e os médicos, o PIB subirá de novo.
"Eu, que sou um fã da economia de mercado,
percebo que ela padece de uma cegueira,
que é o modo como utilizamos
os recursos ambientais"
Valor: O cálculo do PIB está errado.
Giannetti: A medida do PIB é muito burra, porque ela apenas registra o que passou pelo sistema de preços, sem saber o que, de fato, está acontecendo com a vida das pessoas. É um problema de contabilidade simples. Mas o mais grave é que o sistema de preços sinaliza errado. Se um empresário quiser fazer uma usina para gerar eletricidade, ele tem um leque de opções. Vamos pegar os extremos: uma termelétrica a carvão ou uma usina solar com a melhor tecnologia. Se eu comparar hoje o preço dessas duas coisas, a ordem é de cinco para um. A termelétrica é muito mais econômica nesse registro monetário - o custo de produção do KW/h - do que a solar. Mas tem uma assimetria nessa comparação. E o custo não monetário do CO2 que ela emitirá ao gerar um KW com o carvão? A solar não tem. O sistema de preços não é internalizado. É como se a emissão de gases e o ônus ambiental dessa opção fossem de graça. Não são.
Valor: Isso se aplica a quase tudo.
Giannetti: Veja o caso das viagens aéreas. Quando pego um avião para cruzar o Atlântico, eu emito mais CO2 do que um indiano durante um ano no meio rural. É de uma extravagância sem tamanho. O que está embutido no preço da passagem? Equipamento, combustível, aeroporto, depreciação, serviço. Não está embutido o CO2. Deveria estar. A British Airways deu a opção ao cliente de pagar pelo crédito de carbono equivalente emitido no trajeto. A adesão? 3% dos consumidores toparam. Está todo mundo preocupadíssimo, mas na hora de pôr a mão no bolso... O sistema de preços vai ter de mudar. Ele padece de uma falha tão ou mais grave no longo prazo do que o planejamento central. Nunca imaginei que diria isso na vida! É muito sério. E está em tudo. Onde está, no preço, a emissão enorme de gases do rebanho para alimentar a produção de carnes? É maior do que a emissão de toda a frota automobilística do mundo, segundo a FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação]. Os preços relativos vão ter de mudar. Algumas coisas vão ficar muito mais caras e outras muito mais baratas. Essas coisas vão ter de ser precificadas de alguma maneira. Do jeito atual, estamos sendo levados para o caminho do desastre.
Valor: O que deu o estalo no senhor?
Giannetti: Ver o que está acontecendo. O planejamento central também foi horroroso, causou um desastre ecológico. Não estou dizendo que o planejamento central teria por si só dado conta do mercado. Mas nunca se imaginava que o sistema de preços e a economia competitiva de mercado, capaz de gerar tanta riqueza, tivesse uma falha tão grave.
Valor: Há mudanças em curso?
Giannetti: Quem está fazendo uma experiência pioneira nessa direção é a Austrália. Eles adotaram um sistema de internacionalização de custos ambientais e emissão de CO2 na geração de energia elétrica nas diferentes opções. Não sei a mecânica, mas é algo novo.
Valor: E ganhos de eficiência nesse contexto?
Giannetti: Essa ideia de melhorar a eficiência dos produtos, no final das contas, é mais um elemento agravante do problema. O Paradoxo de Jevons [Stanley Jevons, economista britânico do século XIX] mostra isso. No século XIX ele já tinha feito um exercício com o carvão. Dizia que, se o consumo de carvão continuasse crescendo, o custo de sua produção ficaria caro e as economias europeias terminariam estranguladas pela alta da sua principal fonte de energia. O exercício é impecável como extrapolação. Ele só não foi capaz de prever que, poucas décadas depois, viria uma segunda revolução industrial, na qual o carvão seria deslocado como fonte primária de energia pela introdução do petróleo e das fontes elétricas. Mas Jevons disse uma coisa que o tempo mostrou ser realidade. Ao contra-argumento de que a eficiência do carvão aumentaria, ele respondeu que melhorar essa eficiência também aumentaria o consumo de carvão. O raciocínio é de que, no início, subiria a lucratividade das siderúrgicas, o que atrairia mais capital ao setor, aumentaria a oferta e derrubaria o preço do carvão. Isso elevaria a demanda e exigiria um consumo de carvão maior do que quando havia máquinas menos eficientes.
Valor: Isso virou o Paradoxo de Jevons.
Giannetti: É fantástico. Em 1960, 80% dos condomínios nos EUA não tinham ar-condicionado. O equipamento era caro e o custo de consumo de energia, elevado. Hoje, 84% dos domicílios o têm. Entre 1993 e 2005, a eficiência energética do ar-condicionado aumentou 20%, enquanto o consumo médio por aparelho aumentou 35%. Ficou tão barato que as pessoas deixam ligado. Resumindo: os EUA usam hoje um volume de energia, só com ar condicionado, igual ao total de energia consumida nos EUA em 1955. A China, entre 1997 e 2007, triplicou o número de aparelhos, e estão só começando. A Índia vem na cola. Vai crescer dez vezes o uso de ar-condicionado entre 2005 e 2030. Com o compressor cada vez mais barato e a eficiência maior, o consumo vai aumentar. Essa conta não fecha. Tecnologia não é a resposta. (BB)
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Fonte: Valor Econômico/Fim de Semana on line,20/01/2012
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