sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Nossa Senhora da Inovação

Michele Dantini*
A imagem-manifesto, a bailarina que gira sobre o touro, zombando tanto da rude violência do animal,
quanto dos insurgentes em armas visíveis no segundo plano.

O paradigma ao qual se faz referência quase
que exclusiva é o de marca empresarial.
Há casos, porém, como a contribuição
da revista Adbusters ao movimento "Occupy Wall Street",
que revelam novas formas
de colaboração imaginativa. No momento em que
são redefinidas as estruturas universitárias
 (linhas de base, financiamentos, acesso às profissões),
o projeto político e institucional que vai se
consolidando tende a ignorar
as disciplinas humanísticas.
Tentemos considerar o assunto "crise das disciplinas humanísticas" nos aspectos estratégicos, com referência ao caso nacional. Simplifiquemos. Em anos recentes, o discurso sobre a "inovação" foi conduzido em seu próprio interesse e como que sequestrado por economistas e técnicos: no momento em que vão sendo redefinidos as estruturas universitárias (as políticas, os financiamentos, o acesso às profissões), as especificidades dos cursos de licenciatura em ciências históricas e sociais são ignoradas pelo projeto político-institucional (e sociocultural) que vai se consolidando.
Existe uma convicção difundida nos âmbitos não humanísticos: que a educação humanística, desprovida como é de relação com a cultura empresarial, é inadequada para as economias de escala contemporânea. Com a difusão de indústrias conectadas às novas tecnologias, a capacidade de inovar teria se transferido aos saberes técnicos e estaria intimamente entrelaçada com a comerciabilidade da "descoberta". No discurso economicista, em grande parte transversal às inclinações políticas, "inovação" coincide de fato com "grande distribuição". O modelo Apple, na Itália, parece ter sido adotado acriticamente: é "vencedora" a empresa que se impõe no mercado graças ao marketing e ao design, mesmo sem ter inventado nem o sistema operacional nem a morfologia que, contudo, caracterizam os seus produtos. Portanto, caberia à pesquisa de base mover-se para além das fronteiras dos laboratórios para ir se colocar no "mercado".
Em fevereiro de 2011, em Roma, na Câmara dos Deputados, ocorreu uma Working Capital Conference intitulada Refazer a Itália. Na ocasião, Francesco Profumo, então reitor do Politécnico de Turim, sentado à mesa dos palestrantes, dentre outros, com Franco Bernabé, Enrico Letta, Riccardo Luna, Corrado Passera, Irene Tinagli, proferiu aquele que hoje pode parecer o discurso programático do atual ministro da Educação e da Pesquisa Científica [italiano]. Apesar da ênfase posta pelos coordenadores nas características "não lineares" da "criatividade" e o propósito de levar a discussão para aspectos "não estritamente econômicos", nem uma palavra foi gasta na ocasião, pelos oradores, para estudos e competências externas ao mundo corporativo.
O modelo "inovador" ao qual se faz referência quase exclusiva foi o engenheirístico-empresarial (ou do design industrial). Ao redor da mesa, estavam sentados apenas expoentes do mundo da indústria e dos bancos: porém, a constatação de uma suposta e escassa atitude ao risco dos italianos podia ser sugerida pela contribuição de historiadores italianos e levar a pontos de vista que poderiam ser não apenas de depreciação.
Por que não prever, além disso, que a proposta de um Banco Nacional da Inovação, lançada por Edmund Phelps, economista pós-keynesiano e prêmio Nobel em 2006, comentada favoravelmente pelos palestrantes do congresso, possa beneficiar start ups nos âmbitos da editoração e do jornalismo especializados, as tecnologias aplicadas à conservação e difusão do conhecimento, a empresa social? É evidente que, para que isso ocorra, os cursos das faculdades humanísticas deveriam ser concebidos de um modo novo, e as competências, integradas: nada que não se possa fazer com um sóbrio programa de investimentos e um projeto político de requalificação. O atual debate se tornaria mais amplo e corroborante se admitisse índices sociais e culturais não só econômicos, de "inovação".
Há cerca de quatro décadas, a análise textual (e iconográfica) uniu ao seu próprio método filológico interno as perspectivas crítico-ideológicas amadurecidas no interior de disciplinas historicamente distintas da história literária (ou artística), como a etnografia, a sociologia, os estudos geopolíticos, os estudos de gênero, a ecologia política e social. Os estudos sobre a imigração, a teoria pós-colonial ou do encontro cultural, os debates sobre as políticas da memória ou da indústria cultural produziram formidáveis ampliações interpretativas e discursivas, despertaram novas sensibilidades, instigaram o uso do texto em direções civis e democráticas. Produziram-se descontinuidades técnicas e historiográficas que devemos reconhecer como "inovação" e que possuem relevantes implicações sociais.
Queremos, depois, indicar um caso de inovação linguística e cultural de marcante importância comunitária? A revista canadense Adbusters contribuiu de forma consistente com o movimento "Occupy Wall Street": lançou a iniciativa, apoiou o protesto através da edição impressa e sobretudo das redes sociais, produziu, por fim, a imagem-manifesto, a bailarina que gira sobre o touro, zombando tanto da rude violência do animal, quanto dos insurgentes em armas visíveis no segundo plano. Tudo isso é bastante conhecido para que se precise repetir. Gostaria, contudo, de observar como a eficácia mitográfica da dançarina em questão descende decisivamente de uma reflexão crítica sobre a imagem publicitária corrente e da radical transformação do seu funcionamento. "O nosso propósito é criar revelações: acreditamos que palavras apaixonadas, informação adequada e uma brilhante imaginação brilhante podem fazer isso", disse Micah M. White, editor sênior da Adbusters. "Nós não dissemos: 'ocupem Wall Street'. Nós nos limitamos a dizer: 'Não seria fantástico se uma comunidade de pessoas ocupasse Wall Street?'. Muitos consideraram a proposta atraente e ocuparam Wall Street por iniciativa própria".
As instâncias de democracia participativa e de protesto não violento que caracterizam o movimento teriam sido desatendidas por uma comunicação autoritária que resultasse em "impor" em vez de "sugerir". Um eco extremo do ensinamento de Martin Luther King, a quem a Adbusters se refere em editoriais recentes, está, portanto, justamente na escolha de uma imagem-manifesto que não prescreve nada, ao contrário, encoraja a uma espécie de colaboração imaginativa e introduz dimensões de mutualidade, descoberta e jogo nos territórios habitualmente hierárquicos da persuasão corporativa usual ou dos apelos à insurreição. A mudança teve início com a transformação dos atos comunicativos: esse é um primeiro ensinamento que podemos obter do Occupy Wall Street.
Para Claudio Gentile, responsável de educação da Confindustria, os estudantes dos cursos de licenciatura em ciências humanísticas adquirem "fracas capacidades chamadas de decisionais (incertezas diante de um menu de escolhas) e fracas capacidades chamadas de diagnósticas (por exemplo, na busca de informações online)". A afirmação merece ser considerada, apesar de que (ou justamente porque) conflita com as nossas convicções profundas. De fato, tendemos a considerar que precisamente o exercício assíduo da interpretação (de um texto literário ou de uma obra de arte, digamos) consolida atitudes idôneas à orientação de contextos complexos. O que se critica nos estudos humanísticos é, em nossa opinião, efeito de uma crise interna, do progressivo déficit de ensino crítico e qualificado, das graves ineficiências dos processos de recrutamento, da falta de escolhas político-institucionais e de financiamentos adequados e seletivos, em vez de uma lacuna inata.
Não se trata aqui de assumir uma posição defensiva ou de negar déficits formativos aos atuais cursos de licenciatura em disciplinas humanísticas, ao contrário: pode-se pensar que a excessiva e fragmentária heterogeneidade de ensinamentos se reflete negativamente na preparação dos estudantes ou que o déficit de competências contemporâneas confere aos estudos históricos na Itália características como que de vão exotismo. No entanto, é preciso compreender que processos de aproximação entre cultura humanística e cultura tecnológico-industrial podem ser ainda mais profícuos, além de respeitosos, do que os das diversas ontologias disciplinares, se iniciados ao término de percursos de estudo que requerem disciplinas, cautelas, métodos específicos.
O profissionalismo humanísticos tem tempos lentos, não coincidentes com a rapidez das prestações de conta industriais, e tem resultados próprios: textos, cânones e narrações; comunidades de pesquisa, tradições e "escolas"; métodos e perspectivas; exposições científicas. Mais em geral, se interpretado nas suas potencialidades, é acompanhado por um cuidado dos processos que não tem equivalentes em outras atividades, senão as artes, e por propósitos de autoaperfeiçoamento que, se podem resultar em benefício coletivo duradouro no plano simbólico, devem se conotar como desperdícios no plano puramente econômico.

"O argumento da superioridade do
 modelo técnico-quantitativo nas políticas
da educação encontra resistência no
"talento" do pesquisador individual:
esse é o seu inimigo."

A reputação dos estudos de um país contribui para o prestígio político, diplomático, empresarial: não me parece que haja, no entanto, há (ou tenha havido nos últimos anos) solicitude político-institucional para a manutenção das "tecnologias" altas e fins implicados, digamos, na construção de ensaios destinados a se impor e a circular. A simples invocação do termo "internacional", com relação às disciplinas humanísticas, não é esclarecedora, nem por si só salvífica. Faz parte da "cultura (humanística) internacional" hoje, se se for capaz de construir perspectivas "nativas", nem miméticas nem subalternas. E recompõem-se "histórias" situadas no ponto de intersecção entre "local" e "global". A adoção de metodologias ou tópicos dominantes, de "padrões" globais não é, ao contrário, de modo algum, recompensada. Existem atualmente garantias suficientes de que a individualidade das disciplinas históricas seja reconhecida e observada no âmbito dos institutos de controle e de avaliação da atividade universitária? A questão da soberania linguística, cultural e historiográfica se cruza com direitos elementares de cidadania global dos quais, em breve, podemos ficar desprovidos.
O argumento da superioridade do modelo técnico-quantitativo nas políticas da educação encontra resistência no "talento" do pesquisador individual: esse é o seu inimigo. O que significa, perguntamo-nos, a celebração do "talento coletivo" promovida por Richard Florida e pela sua escola, ativa também no nosso país, à qual até mesmo recentes declarações do ministro da pesquisa e da educação científica se referem? A colaboração entre pesquisador e "sistema" tem limites precisos de sustentabilidade, na opinião deste que escreve: ultrapassados esses limites, a organicidade ou "adaptabilidade" (aos contextos de mercado, a economias em constante transformação, à mutável demanda de serviços, a instâncias sociais que pressionam, a redes acadêmicas) deixa de ser inventiva para se tornar mera condição subalterna. Nas disciplinas históricas e sociais, a lógica da descoberta não é sistêmica, nem pode prescindir verdadeiramente do elemento biográfico e autobiográfico. Portanto, o que está em jogo é: corrigir disfunções ou (no modelo indiano ou sinoasiático) predispor universidades que selecionam conformismo?
Afirmemo-lo com clareza. A atitude de inovar pressupõe a capacidade de elaboração crítica e de projeção imaginativa, mobiliza processos linguísticos e culturais, até (sensu lato) historiográficos. Como pensamos que pode ser possível se propor a modificar um paradigma (histórico, teórico, de mercado) senão pelas capacidades de considerar um contexto de forma reflexiva, de nele inserir intencionalmente uma infração altamente funcional, de medir a descontinuidade produzida, de se esforçar para consolidar e difundir isso mesmo através de uma obra eficaz de distribuição? Justamente a distância entre economia e cultura, empresa e pesquisa parece ser um dos maiores problemas do país: tem enormes custos no plano ocupacional, produtivo e de gratificação individual. "O da educação, na Itália, é um insucesso que se reflete na capacidade das pessoas de encontrar emprego", afirma Fabrizio Barca, ex-economista da OCDE e hoje ministro para a coesão territorial, "na capacidade dos trabalhadores de interagir com o trabalho mais especializado, na capacidade dos empresários de conceitualizar suas próprias intuições produtivas".
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*Filósofo italiano Michele Dantini, professor de história da arte contemporânea da Universitá degli Studi del Piemonte Orientale, em artigo para o jornal Il Manifesto, 14-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 20/01/2012

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