domingo, 29 de janeiro de 2012

Rubem Alves - Trechos de leituras dominicais

Rubem Alves*

Imagem da Internet: Montes de Feno - tela de Monet
"As telas de Monet entraram no meu pensamento provocadas por uma estranha advertência que encontrei num texto de Kierkegaard. Trata-se de uma exigência que ele faz àqueles que escrevem. Ele diz: “A pessoa que fala sobre a vida humana, que muda com o decorrer dos anos, dever ter o cuidado de declarar a sua própria idade aos seus ouvintes.”
Não conheço nenhum outro filósofo que tenha jamais feito declaração parecida. Quem diz coisa semelhante parece estar enganando o próprio ideal do saber filosófico, que é a busca da verdade. A verdade independe das oscilações do ser do filósofo. Ela possui uma objetividade que a salva desse espelho líquido inquieto que é a subjetividade do pensador. A idade do matemático nada tem a ver com a verdade do seu teorema. Essa coisa que oscila com o tempo poderia ser, talvez, poesia, mas não filosofia. E seria precisamente isso que uma vaca diria a Monet, se a ela fosse dado o dom da fala. “Um monte de feno pela manhã é o mesmo monte de feno ao entardecer. A minha fome o comprova. E para a minha fome a luz não existe...” Boa ontologia escreveriam as vacas, se elas pensassem...
Imagine então que, talvez, Kierkegaard estivesse mais próximo de Monet que dos filósofos. Ele sabia que o Ser é sensível à luz. Há de fato, um Ser pornográfico, o Ser conhecível, que se desnuda sem pudor sob a luz do sol a pino, e a ele Descartes e seus seguidores têm dedicado as suas mais rigorosas investigações. Mas há um outro Ser que foge do excesso de luz. É o ser amoroso. O amor precisa da luz das velas. O ser erótico prefere despir-se com pouca luz. “Parece que existem em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante”, disse Bachelard em A chama de uma vela (p.14), livro que é uma realização prática do conselho de Kierkegaard. Bachelard confessa a sua idade. Um jovem não poderia ter escrito aquele livro. É diante da página branca colocada sobre a mesa na justa distância da minha lâmpada que, realmente, estou à minha mesa de existência. Tudo em volta de mim é repouso, é tranquilidade; meu ser só, meu ser que procura o ser... Mas será que ainda há tempo para mim...?
Esta pergunta, “Será que ainda há tempo...?” é a pergunta de um homem que percebe que a vela está chegando ao fim. Os filósofos pensam sob a luz de lâmpadas fluorescentes. Os poetas pensam sob a luz de velas.

"É muito difícil viver numa universidade e
 continuar a cultivar os próprios pensamento.
É muito mais seguro ficar moendo
os pensamentos dos outros."
-Nietzsche-

Faço a mesma pergunta: “Será que ainda há tempo?”. Mudei. Mudaram-se os meus olhos. Passei a ver o mundo de forma diferente, banhado por uma luz crepuscular. As ideias que aparecem aos crepúsculo não são as mesmas que tivemos pela manhã. Esse livro deveria ser lido sob a luz das velas. Este livro é sobre a educação, vista sob a luz crepuscular.
Não sei se foi a velhice que abriu os meus olhos ou se ela, a velhice, simplesmente me deu coragem para dizer o que eu sempre vira e não dissera, por medo.
Vivi muito tempo no mundo acadêmico. O mundo acadêmico é um lugar perigoso. Dá medo. Nietzsche muito cedo se sentiu incapaz de respirar o seu ar. Sobre o perigo de se viver na universidade ele fez uso de metáforas sinistras: “Eles se assentam frios na sombra fria: em tudo eles desejam ser apenas espectadores. Como aqueles que ficam nas ruas observando os passantes, eles esperam para observar os pensamentos que os outros pensam. [...] Eles se vigiam uns aos outros com atenção e desconfiança. Férteis em espertezas mesquinhas, eles ficam tocaiados esperando os que andam com pés trôpegos: como aranhas eles esperam” (Assim falou Zaratustra FN II(II), p.655).
Durante muitos anos, não tive coragem para dizer o que eu sabia. Por medo. As inquisições não são monopólios das igrejas e não se fazem só com lenha e fogo. É muito difícil viver numa universidade e continuar a cultivar os próprios pensamento. É muito mais seguro ficar moendo os pensamentos dos outros. Na universidade é mais seguro falar sobre aquilo que outros falam Nietzsche percebia isso acontecendo nas universidade alemãs: “Os eruditos que hoje em dia fazem pouco mais que comer livros [...] acabam por perder totalmente a capacidade de pensar por si mesmos. [...] Os eruditos gastam todas as suas energias dizendo Sim e Não, na crítica daquilo que outros pensam – eles mesmos não pensam mais.” (FN III (II) p. 540, Assim falou Zaratustra).
Esse hábito, me parece, é uma decorrência da falta de coragem para pensar os próprios pensamentos. Somos dominados pelo fetichismo do livro. O que o livro diz tem de ser melhor que aquilo que penso. Schopenhauer advertiu os leitores de que, “quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos o seu processo mental. [...] Daí se segue que aquele que lê muito ou quase o dia inteiro, e que nos intervalos se entretém com passatempos triviais, perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria. Esse é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos”. (Arthur Schopenhauer, Über Lesen und Bücher – Sobre livros e leituras, p.17).
O método de justificar o que se diz por referência ao que outra pessoa escreveu em outro livro é característico da literatura teológica da Idade Média: o que o autor diz é verdade porque a mesma coisa foi escrita por outra autoridade, no passado. Em outras palavras: o que eu digo está comprovado porque outro já disse.
É preciso coragem para dizer o que se pensa. “Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para dizer aquilo que ele realmente conhece”, observou Nietzsche. ( FN III (II), p.943, O crepúsculo dos ídolos). Albert Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou um detalhe sobre a hora em que a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos”. (Albert Camus. Primeiros cadernos, p.438). A coragem chega ao entardecer. A coragem chega na velhice. A velhice é a hora em que se ganha coragem para se dizer o que se soube sempre. É a hora da sabedoria. Hegel sabia disso e observou que “a coruja de Minerva só abre suas asas quando cai o crepúsculo”. Mas a essa linda metáfora poética ele acrescenta uma nota pessimista: “Quando a filosofia pinta o seu cinza sobre o cinza, é porque uma forma de vida ficou velha. Por meio do cinza sobre a cinza da filosofia a vida não pode ser rejuvenescida, mas apenas compreendida. (A filosofia do direito, p. 7. O “cinza sobre o cinza” é uma referência ao Fausto, de Goethe, onde está dito que “cinzenta é toda a teoria”.)
Hegel acreditava em metamorfoses. Mas, fascinado pela ideia da história, ele só as via acontecendo em épocas históricas. O tempo da vida individual era muito insignificante para fazer diferença. Mas eu acredito nas metamorfoses no tempo da vida dos indivíduos. Metamorfoses e ressurreições. É por isso que escrevo.
Na velhice, o medo se vai porque não se tem mais nada a perder. A proximidade da morte nos dá um atributo dos deuses: nada de mais terrível nos pode ser feito.
Essa é a razão para a crença de que as palavras dos que vão morrer são sempre palavras verdadeiras. As últimas palavras dos moribundos devem ser as palavras da verdade! Camus fala de um homem que, ao se preparar para dizer as suas últimas palavras, descobriu que as tinha esquecido. Como não desejo que isto aconteça comigo, trato de dizê-las agora, enquanto me lembro delas. A proximidade da morte tem efeito sapiencial: ela nos abre os olhos para perceber o essencial. Há uma lucidez que só acontece quando a vela se apaga. “Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer”, disse Fernando Pessoa (Obras poéticas, p.363)."
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Exceto do livro: Alves, Rubem: Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietsche, Marx e Babette. SP, Editora Planeta do Brasil, 2011, pp. 46/50.
Imagem da Internet.

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