José de Souza Martins*
"Neste
momento, se compararmos os dois pré-candidatos
com maiores opções de voto, Lula
e Bolsonaro, veremos que tanto seus discursos
quanto o perfil de seus
constituintes
são autoritários e intolerantes."
Aqui se
fala muito em classes sociais e em luta de classes. Mas o mundo atual já não é
o mundo em que as classes sociais nasceram e, enquanto tais, tiveram eficácia
histórica, que foi o dos países que se industrializaram nos séculos XVIII e
XIX. Submergem elas na extensa trama de mediações que vieram para o primeiro
plano na vida cotidiana da sociedade contemporânea. É o dos fatores e motivos
das demandas coletivas: gênero, idade, religião, categorias falsamente raciais,
variadas expressões das novas identidades e da diferenciação social supérflua.
As necessidades sociais que movem a história atual do Brasil não são,
propriamente, as que Lefebvre e Heller definem como radicais. A história de
cumplicidade na reiteração do mesmo.
Apesar de
um imaginário centrado no pressuposto frágil de que as classes sociais são
ainda ativas, têm elas uma eficácia quase que meramente explicativa, cuja
compreensão depende de recursos sociológicos distantes da teoria das classes
sociais. Nas condutas coletivas de hoje, é difícil reconhecê-las como
protagonistas de propósitos e de demandas. Não obstante, existem.
Substancialmente, expressam a desigualdade econômica, de um lado, e a
coexistência social baseada na igualdade jurídica dos cidadãos, de outro. No
desequilíbrio dessa contradição é que a política instaura o equilíbrio que se
chama democracia, a concertação de superação da diversidade tensa.
Mas,
entre nós, os dilemas de agora ainda refletem a forma retardatária e anômala
como a estrutura de classes sociais chegou até nós e aqui se difundiu quando
ainda não tinha cabimento. Na demora cultural e social dessa anomalia, em
consequência, democracia não tem sido aqui o respeito de conviver com o outro e
com a diferença que ele representa. Aqui é o desrespeito de aniquilar o outro,
na hegemonia destrutiva e antidemocrática do mando. É o espetáculo do momento.
Em amplas
áreas do território brasileiro a sociedade de classes sequer chegou a se
realizar e a dominar. Têm elas permanecido à margem de suas possibilidades
políticas, como lugares de um Brasil residual e incompleto. Mesmo a região do
que é hoje o ABC paulista, o lugar em que a indústria se difundiu rapidamente e
extensamente desde fins do século XIX, as classes sociais estiveram submersas
num cotidiano de conflito laboral mediado e atenuado por valores comunitários,
religiosos e familiares e pela mentalidade que lhes corresponde.
Isso
explica por que os dirigentes das ações da luta de classes sejam entre nós, com
frequência, pessoas bifrontes, sujeitas a metamorfoses sociais que as levam a
oscilar e a desencontrar-se consigo mesmas. Ou então, pessoas da classe média,
que usurpam o sistema conceitual próprio do operariado para o desempenho de uma
práxis imitativa pouco consistente, eivada de exageros de teatro amador de
periferia. É a política do supérfluo e do voto farto e populista.
O que
estamos vivendo neste momento é o resultado final desse extenso desarranjo
histórico. Tudo é apresentado como um grande embate entre direita e esquerda,
entre as elites e os trabalhadores, entre coxinhas e mortadelas. Rótulos vazios
de um conhecimento sem conteúdo. Tudo expressão de preconceitos e de falsa
consciência. As distorções são imensas, expressões de um pensamento autoritário
disfarçado que nos arrasta para a incerteza do abismo antidemocrático.
Neste
momento, se compararmos os dois pré-candidatos com maiores opções de voto, Lula
e Bolsonaro, veremos que tanto seus discursos quanto o perfil de seus
constituintes são autoritários e intolerantes. No que se refere aos indícios de
personalidade básica de um lado e de outro, vemos facilmente que são iguais,
ainda que um seja definido como de esquerda e o outro como de direita.
Essencialmente, nada os diferencia, a não ser a superficialidade ideológica
substancialmente de opostos.
É
significativo que nenhum dos dois fale em democracia nem defina que compromisso
têm eles com a concepção de um verdadeiro regime democrático. Se a ambos
somarmos boa parte dos candidatos de menor expressão, igualmente autoritários,
na direita e na esquerda, a partir das pesquisas de opção eleitoral, teremos
que pelo menos 50% dos votos são de inspiração autoritária e antidemocrática. Esse
número pode chegar a 60% dos votos ou mais.
Nesse
sentido, tudo fica dependendo de que surja um candidato aglutinador, com uma
indiscutível bandeira democrática, que consiga convencer o eleitorado da
importância da democracia, da liberdade de pensamento e de divergência, e do
direito à diferença. Se isso não acontecer, no curto tempo que nos resta, o
Brasil estará entrando no beco sem saída de uma democracia de papel.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5486587/adeus-democracia
27/04/2018
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