Juremir Machado da Silva*
Como todo mundo, eu já quis ser muitos.
Já quis ser outros. Houve uma época, faz algumas décadas, que eu
sonhava ser Robert Musil. Sempre que dava, e mesmo quando não dava, eu
citava “O homem sem qualidades”, grande romance do escritor austríaco.
Eu me achava um homem sem qualidades e me via nas qualidades do autor da
obra. Eu queria ser um escritor pensador, um filósofo literário, o
cara. Queria, ao mesmo tempo, detonar o fascismo e não perdoar a
esquerda por seus desvios autoritários. Eu pretendia ser tudo. Lembro
com saudades dessa época de megalomania. Ao receber “Uniões”, volume com
duas histórias de Musil traduzidas por Kathrin Rosenfield e Lawrence
Pereira Flores, viajei no tempo. Eu era jovem o suficiente para saber
tudo. A passagem do tempo nos dá essa modéstia que estraga as coisas.
Hoje, às 21 horas, no Museu do Trabalho, em Porto Alegre, acontecerá a
inauguração de vernissage dos ilustradores do livro – Marcos Sanches,
Maria Tomaselli e Raul Cassou. Dia 24, no mesmo horário e local,
mesa-redonda com os tradutores e lançamento da obra. Parei para refletir
sobre a carne do texto de Musil. Gosto dessa fluência tensa, dessa
corda esticada, dessa travessia sem rede de proteção, essa capacidade de
descrever o subjetivo como uma realidade.
Gosto desta sinuosidade da frase: “Sob a luz acinzentada, aqueles
homens de barbas negras pareciam-lhe figuras gigantescas daquelas
sensações encapsuladas em esferas crepusculares. E tentou imaginar como
seria sentir isso fechando-se ao seu redor. E enquanto seus pensamentos
afundavam-se rapidamente como em um solo macio, informe e esponjoso, ela
ouviu apenas uma voz rouca de tabaco, cujas palavras flutuavam na
fumaça que roçou seu rosto durante toda a conversa. E havia também uma
outra voz, que era clara e alta como um estalido de metal, e ela tentou
representar para si o timbre com o qual, estilhaçada pela excitação
sexual, deslizaria para o fundo”.
Imagino um leitor pragmático dizendo para si: que exagero! Tem gente
que só gosta de conteúdo, o que me faz pensar num personagem de Lima
Barreto, em “Recordações do escrivão Isaías Caminhas”, jornalista
estrangeiro para quem tanto fazia escrever “nós fomos” ou “nós foi”,
pois “o que ele queria era matar, ferir, golpear: a maneira pouco se lhe
dava”. Eu já quis ser assim. Já quis ser Lima Barreto. Até virei boêmio
para ver se conseguia. Mas ao ler a sua biografia e tomar conhecimento
dos seus sofrimentos, imensos, desisti. Voltei a Robert Musil. Até
aprender que a sua vida também não havia sido fácil. Escritor, em geral,
come o pão que a mediocridade amassa com as patas.
Kathrin Rosenfield resumiu Musil assim: “Em 1924, impressionado pelo romance recém-lançado A Montanha Mágica,
de Thomas Mann, Musil percebe as virtualidades de uma nova forma de
romance que mescla as técnicas da narrativa épica com o fluxo de
consciência e a reflexão ensaística. Volta-se então com intensidade para
o seu romance que será o mais amplo, mais crítico e audacioso panorama
da sociedade, da cultura e do imaginário austríacos e europeus do
entreguerras”. Como, estando empanturrado de literatura e de filosofia,
não querer o mesmo?
A professora e tradutora diz ainda: “Nos anos 1934-1938, quando o
fracasso da República de Weimar ocasiona o êxito do Nacional Socialismo,
Musil volta a redigir longos ensaios críticos e palestras nos quais
expressa de maneira corajosa e franca seu repúdio às impiedosas táticas
do fascismo, sem temer criticar de modo igualmente franco os desmandos
totalitários do stalinismo. Essa crítica da cultura e da política
permaneceu em grande parte não publicada devido ao acirrado controle da
imprensa pelos nazistas e em função das práticas propagandísticas
autoritárias de muitos militantes socialistas e stalinistas”. Tentei ser
o Musil da Lancheria do Parque.
Teria encerrado tranquilamente a carreira com este parágrafo: “O
espaço vazio entre ela e as coisas perdeu-se e estava estranhamente
tenso de relações. Os utensílios ocupavam seus lugares com um impacto
inalterável – a mesa e o armário, o relógio na parede –, perfeitamente
cheios de si, separados dela e tão firmemente fechados sobre si como um
punho fechado; contudo, mesmo assim, às vezes estavam novamente como que
no interior de Verônica ou talvez a mirassem como se tivessem olhos, a
partir de um espaço que se estendia como uma parede de vidro entre
Verônica e o espaço”. Sempre quis entender a alma dos objetos.
Não fui Musil. Que pena. Um bêbado de calça vermelha me arrancou da
ficção. Caiu sobre a minha mesa, tomou a minha cerveja e vomitou:
– Você está condenado.
– Eu.
– Usted.
– A quê?
– A ser o que é.
Fui até o bar Lola e na esquisita jukebox ouvi Gal Costa cantar:
“cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. O bêbado provocou:
– Não me olhe como se a polícia estivesse atrás de mim.
Estava. Foi preso horas depois. Voltei para casa e li Musil até o amanhecer, quando saí e fui procurar um emprego. Não achei.
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* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário PUCRS. Sociólogo.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/04/10806/musil-e-as-qualidades-de-um-escritor/ 21/04/2018
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