Vencedor do Prêmio Camões, Mia Couto se volta agora à uma história familiar
Foto: Rafael Arbex/Estadão
O escritor moçambicano lança na segunda, 16, em SP, 'O Bebedor de Horizontes', último livro de sua trilogia histórica e conta que escreve, agora, sobre sua infância e seu pai
Maria Fernanda
Rodrigues,
O Estado de S. Paulo
14 Abril 2018
14 Abril 2018
Mia Couto
já disse que sua infância é um tempo que não terminou e que sua família
e a casa foram, para ele, como uma pequena pátria numa época em que Moçambique vivia em guerra. No centro dessa imagem, desse tempo, está seu pai, a pessoa que lhe ensinou o valor da poesia.
“Ele foi um homem que vivia feliz por construir um mundo
paralelo, porque ele era capaz de sugerir uma história para um mundo
que era feio e estava doente. Meu pai queria ensinar a procurar beleza
nesse mundo em conflito. Estávamos em guerra, vivendo sob uma ditadura,
e, apesar disso tudo, fomos felizes”, conta o escritor.
De passagem por São Paulo para o lançamento de O Bebedor de Horizontes, último volume da série As Areias do Imperador, Mia Couto conversou com o Estado na sede da editora Companhia das Letras
e disse que agora que colocou um ponto final no projeto que mais lhe
deu trabalho – e isso o deixa “aliviadíssimo” –, pode se dedicar a uma
história mais autobiográfica.
“É autobiográfica, mas não é sobre mim, é mais no
sentido da minha infância, do meu lugar, da minha pequena cidade. E é,
sobretudo, sobre o meu pai”, explica.
Depois dessa trilogia histórica, o leitor pode, então,
esperar a volta de um Mia mais poético. “Vou me deixar invadir pela
linguagem poética mais do que nunca, mais do que em qualquer outro
livro. E este é um momento que só posso recuperar pela via de uma
memória inventada”, diz. Portanto, uma ficção.
Mia tem 62 anos. Seu pai morreu há quatro anos, aos 89.
Sua mãe, um ano depois, aos 94. Ele foi poeta, e tudo o que fez além da
poesia era uma grande mentira, lembra. Ao contrário do filho, que é
biólogo atuante, mas poderia viver de sua literatura, o pai não podia
sustentar a casa com seus versos e foi jornalista, trabalhou em estação
ferroviária e fez outras coisas. “A gente percebia que ele estava ali
fazendo só uma representação.”
Mia Couto não tem pressa de terminar esse livro, que já
tem cerca de 40 páginas escritas e deve ser lançado em 2019 ou depois.
Por ora, divide esse mergulho no passado com a divulgação de seu novo
livro.
Na segunda-feira, 16, às 19 horas, ele estará no Teatro
Porto Seguro para um bate-papo e leitura de trechos de O Bebedor de
Horizontes. Haverá, ainda, um pocket show da moçambicana Lenna Bahule.
Os ingressos custam R$ 30 e R$ 40, dependendo do lugar, e quem for
poderá comprar antecipadamente, junto com o ingresso e com 50% de
desconto, um exemplar do livro autografado – Mia assinava pilhas e
pilhas quando a reportagem chegou à editora. Pela manhã, às 10h30, ele
estará ao vivo no Facebook da Companhia das Letras. Sua passagem por São
Paulo inclui também conversas com leitores em escolas – a parte que ele
mais gosta.
“É uma aprendizagem grande para percebermos como somos
lidos, quais são as grandes interrogações desses meninos. Envelhecemos
se perdemos esse contato. Antigamente, eu tinha medo de ir a escolas
falar com meninos bem pequenos porque punham-se em contato com uma
impotência minha. Desaprendemos a falar com as crianças”, diz.
Há anos o escritor vem ao País para conversar sobre sua
obra e, diz, muita coisa mudou. “Não é o mesmo país. Agora, como as
posições se extremaram muito, tenho até receio de falar. Estamos naquele
momento que se eu não disser aquilo que confirma o que o outro pensa,
esse outro vai me classificar como antipático ou inimigo.” E vai além:
“O que vejo é que havia um Brasil mais feliz, mais permissivo, mais
tolerante. Podíamos dizer um disparate e as pessoas respondiam rindo.
Agora ninguém tem vontade de rir”.
Trilogia. Mia Couto diz que quis
escrever essa série de ficção histórica porque percebeu que havia coisas
que aparentemente eram do passado, mas que são profundamente atuais –
pelo menos, ele diz, no país em que vive. “Há dinâmicas sociais,
fenômenos culturais e conflitos vividos na atualidade que só podem ser
entendidos se fizermos esse recuo no tempo. Mas, no fundo, o que me
interessa são as pessoas, as contradições, as esperanças, a violência,
uma certa frustração perante a impotência de mudar o mundo, que são
questões presentes nessa história e que permanecem vivas até agora.”
A trama de As Areias do Imperador gira em torno
de Ngungunyane – Gungunhana, para os portugueses e para o Mia garoto,
que estudou em escola colonial quando ensinavam que aquele era um homem
selvagem –, o último dos imperadores que governaram a metade sul de
Moçambique no século 19. Derrotado pelas forças portuguesas em 1895, ele
foi deportado para os Açores – a história de sua captura é contada
neste derradeiro volume.
A trilogia foi o maior desafio de sua carreira – mais
por escrever uma prosa amarrada à realidade quando sua “alma é de poeta”
do que pela pesquisa – que deu um trabalho e tanto. As fontes
portuguesas estavam escritas, e foi mais fácil. Para ouvir as fontes
moçambicanas, Mia teve que pôr o pé na estrada. “Elas vivem na oralidade
e as informações foram transmitidas de geração para geração e com
muitas versões porque este homem dominou diferentes povos e cada um
desses povos tem uma visão”, explica. Mia Couto ficou feliz com o
resultado e ganhou novos leitores em seu país.
Mia Couto, que estreou há 35 anos, é um dos principais
nomes da literatura lusófona. Vencedor do Camões em 2013 e presença
constante nas listas dos prêmios literários, o biólogo poderia se
dedicar apenas à escrita se quisesse. “Mas não quero, não quero”, é
taxativo. “Não quero olhar para um livro como alguma coisa que tenha
essa relação comigo. A literatura é como se fosse uma ilha que quero
construir, uma ilha que está fora dessa razão funcional.”
'As elites intelectuais estão discutindo o sexo dos anjos’
Mia Couto observa com preocupação a onda conservadora que se espalha
pelo mundo e sabe que uma hora ela chegará a Moçambique. “Ela navega nas
redes sociais, nos noticiários que chamamos de noticiários do mundo,
mas que são de um certo mundo. Vejo isso com muita preocupação porque há
uma forte tendência de regimes conservadores, autoritários, pouco
interessados em construir uma democracia, em ouvir o outro e a respeitar
conquistas sociais”, comenta o escritor.
Mas é preciso, ele diz, que os que se dizem não
conservadores pensem por que isso aconteceu. “Em grande parte foi uma
responsabilidade dos movimentos e partidos de esquerda que não souberam
se repensar e se questionar. E a elite intelectual parece interessada em
coisas que não são essenciais. Algumas dessas elites estão discutindo,
para mim, diante da gravidade de outros assuntos, o sexo dos anjos. Por
exemplo, a linguagem politicamente correta – se pode dizer mulato ou
não. Ou se o uso do turbante é uma ofensa grave à cultura dos outros,
como se houvesse cultura que é propriedade de alguém. Há coisas mais
urgentes a serem debatidas.”
O BEBEDOR DE HORIZONTES
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras (328 págs.; R$ 49,90)
Lançamento: Com bate-papo e show de Lenna Bahule. Teatro Porto Seguro. R. Barão de Piracicaba, 740. 2ª (16), 19h.
R$ 30 e R$ 40
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FONTE: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,mia-couto-diz-que-brasil-ja-foi-mais-feliz-e-que-elites-intelectuais-discutem-o-sexo-dos-anjos,70002267651
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