José de Souza Martins*
É pouco
provável que a maioria das pessoas tenha compreendido o verdadeiro significado
da celebração religiosa de 7 de abril no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.
Aliás, aniversário da abdicação de dom Pedro I ao trono do Brasil, por pressões
políticas, em favor de seu filho criança dom Pedro de Alcântara. No 7 de abril
de agora, Lula não abdicou de nada, embora herdeiros tenham sido indicados:
Manuela d'Ávila, do PCdoB, e Guilherme Boulos, do PSol. Rompimento tardio com o
centrismo da coalizão que levou o PT ao poder e ao desastre.
Teatralidade
sebastianista, na coalizão alternativa de missa, comício e manifestação
popular, a cerimônia foi equivocadamente anunciada por leigos em ritos e religiões
como missa em homenagem à falecida esposa do líder petista. Só Deus é
homenageado na missa. Aos mortos restam as missas fúnebres por eles, e não para
eles, para implorar do todo-poderoso o alívio das penas a que estão sujeitos
todos os pecadores. Portanto, foi missa em memória de uma pessoa.
A todo
instante, com dificuldade, o celebrante, o bispo dom Angélico Sândalo
Bernardino, velho amigo de Lula, teve que chamar a distraída congregação de
volta ao propósito da celebração. Foi uma cerimônia pós-moderna, em que se
combinam o sagrado e o profano, o arcaico e o atual, o desalento e a esperança.
Era o que dava para fazer.
O caráter
semirreligioso do ato de apresentação de Luiz Inácio à Polícia Federal, para
cumprimento da pena a que foi condenado pela Justiça Federal, tem um alto
significado. Diferentemente de todos os outros partidos políticos, o Partido
dos Trabalhadores foi concebido no marco de uma aspiração católica e de algumas
igrejas protestantes à participação de seus membros no processo político
brasileiro. Nos dois lados, inicialmente por meio de presença nos sindicatos de
trabalhadores.
Nos anos
1950, foi primeiro bispo da região do ABC dom Jorge Marcos de Oliveira, oriundo
da Ação Católica, movimento conservador do papa Pio XI. Após a morte do também
conservador Pio XII, a Ação Católica inclinou-se para o
"personalismo" do pensador católico Emmanuel Mounier, fundador da
revista “Esprit”, e dos padres humanistas.
No plano político-ideológico, esse movimento acabou se exprimindo na chamada "esquerda católica" e nas obras do marxismo-estruturalista do franco-argelino Louis Althusser e de sua divulgadora, a chilena Marta Harnecker, ambos oriundos da Ação Católica. Esse marxismo formalista e antimarxiano teve efeitos empobrecedores no pensamento da esquerda brasileira e aprisionou a esquerda católica num binarismo antidialético e anti-histórico. A crise do PT o expressa.
Dom Jorge
concebeu não só o modo do envolvimento dos operários católicos nas organizações
sindicais como também a figura de operário que personificaria esse
envolvimento. Concebeu Lula antes que soubesse de sua existência e antes que este
soubesse que seu destino já estava traçado. Ele seria o elo católico para
enfrentar o monopólio comunista das demandas sociais, camponesas e operárias.
Uma grande e peculiar inovação no cenário político brasileiro que subtrai da
explicação vulgar os acontecimentos políticos destes dias.
Essas
influências definem a retirada de Lula, como um rito sacrifical, ele se
desvelando como personificação e reavivamento do sebastianismo brasileiro.
Getúlio despediu-se dizendo "Saio da vida para entrar na história".
Lula anunciou sua própria ressurreição nas novas gerações: na prisão já não
será Lula, será uma ideia. Deu uma dimensão mística à sua despedida.
Nas eleições
presidenciais de 2002, houve um fato novo e original na história política do
Brasil dominada por composições de partidos e candidatos do clientelismo rural
e do populismo urbano. O fato novo estava nas poderosas candidaturas de dois
nomes igualmente originários de um bairro e do subúrbio industrial de São
Paulo: José Serra, da Mooca, e Luiz Inácio Lula da Silva, da região do ABC,
ambos politicamente originários do movimento católico.
A eleição
foi vencida por Lula. Poderia ter sido vencida por Serra. Em qualquer caso, o
vencedor representaria o novo imaginário do poder e o novo sujeito territorial
da política brasileira: o subúrbio e o suburbano. O Brasil fazendo política e
falando pela margem, pelas rebarbas do urbano, o incompleto e transitório. Não
uma classe social, mas uma situação social de meio do caminho.
A forma
religiosa do evento no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi a sagração
política do subúrbio. O território da margem da sociedade do PT, que as
alianças erradas e a contaminação com o poderio do centro afastaram do destino
dos simples, que continuam à espera do retorno do rei encoberto, dom Sebastião.
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*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da
Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Política do Brasil
Lúmpen e Místico (Contexto).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5449343/sagracao-do-suburbio
13/04/2018
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