Cioran
Rodrigo Inácio R. Sá Menezes
“O bem-sucedido em tudo é necessariamente superficial. O fracasso é uma versão moderna do nada. Ao longo da minha vida, estive fascinado pelo fracasso. Um mínimo de desequilíbrio impõe-se. Ao ser perfeitamente sadio física e psiquicamente falta um saber essencial. Uma saúde perfeita é a-espiritual.” (Entrevistas com Sylvie Jaudeau)
“O despertar independe das capacidades intelectuais: pode-se ter gênio e ser um néscio, espiritualmente falando. Por outro lado, não se está nem um pouco mais avançado com o saber enquanto tal. ‘O olho do Conhecimento’ pode ser possuído por um iletrado, que se encontrará portanto acima de qualquer sabichão. Discernir que o que és não é tu, que o que possuis não é teu, não ser mais cúmplice de nada, nem mesmo de tua própria vida – eis o que é ver com justeza, eis o que é descer até a raiz nula de tudo.” (Le mauvais démiurge)
“Quem és?” — Sou um estrangeiro para Deus, para a polícia, para mim mesmo.” (Le mauvais démiurge)
Cioran tinha duas obsessões aparentemente
díspares, entre tantas outras: uma era o Japão e a cultura japonesa; a
outra a vida mendicante, a indigência.
O que há em comum entre elas? Em primeiro
lugar, o desejo irrefreável de uma liberdade sumamente trágica, pois no
limite fadada ao fracasso: entra em rota de colisão com o “paradoxo sólido” do necessário reunido ao impossível (definição do trágico de Jankélévitch). Tanto o mendigo quanto o sannyasin budista
são figuras do extremo desprendimento por vias distintas, do abandono
do eu com ou sem melancolia, com ou sem ressentimentos.
É conhecida a anedota (verídica) que
Cioran conta a Fernando Savater a respeito do mendigo (e músico de rua)
de quem se tornou amigo, e que o visitava de vez em quando. Nunca é
demasiado citá-la:
“Durante anos recebi a visita de um mendigo que vinha me fazer perguntas sobre Deus, sobre a matéria, sobre o mal, etc., às quais, claramente, eu não podia responder. Levava essas perguntas dentro dele, revirava-as em todos os sentidos, confundia-se com elas. Não conheci ninguém mais possuído, mais tomado pelo insolúvel e o inextricável. Um dia, num momento de desalento, me confessou que merecia a sua condição, que era um mendigo e nada mais, e que tanto o seu modo de existência como as suas obsessões lhe pareciam igualmente desprezíveis. Para levantar o seu ânimo, lhe disse de imediato: ‘Sabe, para mim você é o maior filósofo de Paris neste momento.’ Ele me olhou meio atônito e pensou que eu gozava da cara dele. Mas havia em minhas palavras um tom de sinceridade que não lhe escapou e que deve tê-lo impressionado. Depois, suas visitas se esparsaram até cessarem por completo. Ainda está vivo? Morreu? Não sei. A vantagem de não ter domicílio é poder desaparecer se deixar rastros. Este é o privilégio do mendigo.
Aquele homem é, ou era, verdadeiramente um filósofo. E talvez eu também seja um pouco, na medida em que, a favor dos meus males, eu me atarefei em avançar sempre a graus mais elevados de insegurança. (carta-prefácio a Fernando Savater, 22 de outubro de 1973)
A existência do Mendigo inominado é atestada por amigos de Cioran e também nos seus Cahiers. A julgar pelo ideal de biós philosophikós
que se depreende de seus escritos, um ideal de filosofia nas antípodas
da Academia (existencial, vivida, experimental, marginal, andarilha,
indigente), não há razão para suspeitar de mentira, por complacência ou
piedade, da parte do anfitrião. Cioran compreende muito bem o mendigo e a
distância que o separa da maioria de nós. Ele não se permite ilusões
nem a respeito dele, nem do seu antípoda, o burguês. Ou o filósofo
catedrático e hierático que se julga o último dos sábios por estar
munido de mil teorias, por sua erudição livresca. Ou sobre si mesmo
(sendo isto o mais difícil).
É difícil admitir que haja algo na
existência do mendigo que possa nos fazer alguma falta. Não se venera um
mendigo: um excluído, um ninguém, um nada. O mal do mendigo é que a sua
indigência é muitas vezes imposta, e sempre mal vista. Uma questão de
condição, não de opção. É um pária. O mendigo conhece como ninguém a
experiência da precariedade e da contingência. Que planos fazer? Que
projetos? O que será do dia de amanhã? Outra maneira de dizer que o
mendigo detém uma liberdade vertiginosa, mas não pode dar-se conta dela,
tampouco aproveitá-la. Possui todo o tempo do mundo, mas não tem em que
investi-lo. É a contrapartida negativa de sua liberdade. Se ao menos
soubesse meditar, pois rezar não vai mudar sua situação. Quanto mais
livre, menos expansivo, menos abundante, menos próspero o homem. A
riqueza, o poder, a fama, a ascensão: tudo isso escraviza e cega o
indivíduo em relação a suas próprias dimensões.
E mais:“A fonte de nossos atos reside em uma propensão inconsciente a nos considerar o centro, a razão e o resultado do tempo. Nossos reflexos e nosso orgulho transformam em planeta a parcela de carne e de consciência que somos. Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. Mas viver é estar cego em relação às suas próprias dimensões…” (Breviário de decomposição)
“Enquanto um ser ascende, prospera, avança, não se sabe quem ele é, pois sua ascensão o afasta de si mesmo, rouba-lhe realidade, e assim ele não é. Do mesmo modo, só nos conhecemos a partir do momento em que começamos a decair, quando o êxito, ao nível dos interesses humanos, se revela impossível: derrota clarividente graças à qual, tomando posse de nosso próprio ser, nos separamos do torpor universal.” (História e utopia)
Numa sociedade do apego, da ninharia, da
ganância, do consumismo patológico, da obsessão pela eficácia e pelo
sucesso (numa palavra: da ilusão), só o mendigo é livre — sumamente, vertiginosamente, terrivelmente. Muito embora tenha escolhido uma vida modesta longe do mainstream,
na sombra da marginalidade e do anonimato, Cioran sabia que, enquanto
formos uma realidade composta de corpo e consciência de si, seremos
sempre mais ou menos escravos (sendo a definição do escravo esperar,
contar com algo, uma recompensa ou o que quer que seja), réprobos, non-délivrés
(“não-libertos”). A Ilusão é nossa primeira pele (esta, no caso, uma
“pele metafísica”): variação fisiológico-cioraniana sobre o Véu de Maia.
Não fomos feitos para uma experiência otimizada da liberdade
com que a Natureza nos privilegiou. Cioran sentencia que “na realidade,
só podemos optar entre uma vontade doente e uma vontade má; a primeira,
excelente, porque atingida, imobilizada, ineficaz; a outra, nociva, logo
turbulenta, investida de um princípio dinâmico: a mesma que alimenta a
febre do devir e suscita os acontecimentos.” (História e utopia)
“Contar seja com o que for, aqui ou alhures, é dar prova de que ainda se arrastam cadeias. O réprobo aspira ao paraíso; e esta aspiração o rebaixa, compromete-o. Ser livre é desembaraçar-se para sempre da ideia de recompensa, é não esperar nada dos homens nem dos deuses, é renunciar não somente a este mundo e a todos os mundos mas à própria salvação, é romper inclusive com a sua ideia, esta cadeia entre as cadeias.” (Le mauvais démiurge)
A condição humana “enferma”, segundo
Nietzsche, tem a ver com a natureza desmedida e temerária do homem: o
animal que mais ousa, improvisa, experimenta consigo mesmo e com os
outros, introduzindo em sua própria existência a novidade e o risco.
“Risco glorioso, talvez”, observa Clément Rosset, “pois é a marca
específica do poder humano sobre a natureza, mas risco perigoso: o homem
está armado com um imprevisível poder de intervenção que lhe permite
simultaneamente consolidar e arruinar as construções naturais. No cume
da escala dos seres, o homem reintroduz, por um ligeiro aumento de poder
cujo nome é liberdade, um elemento de incerteza que a natureza, ao
conquistar a matéria, conseguira riscar do mapa das existências” (A anti-natureza).
Quanto ao mendigo, pode-se ter certeza de
que ele não vai ser causa de nenhum acontecimento, vai deixar o mundo
tal e qual o encontrou. O máximo que pode fazer é defecar na via
pública. Mas até aí, não tem outro lugar para fazê-lo. A chave para a
compreensão do interesse de Cioran pela indigência, encarnada pelo
Mendigo, encontra-se nesta observação de Paulo Ferrareze: “Se, por um
lado, o mendigo é alguém que nega parte da vontade de poder pelo
anonimato, por outro, escolher a indigência pode ser uma manifestação do
poder de se tornar aquilo que se deseja. Se o ‘Torna-te o que tu és’,
da Antiguidade até Nietzsche, acerta, é preciso perguntar: qual o
exercício de poder que faz o mendigo quando resolve sê-lo?” (“A
indigência dos corpos”, Carta Capital, 14/01/2016). Permite compreender também a distância entre Cioran e Nietzsche, ao menos a partir do Breviário de decomposição (1949), os fatores que levariam o jovem estudante de filosofia nietzscheano a tornar-se um Docteur ès Négations.
Excluído, Réprobo, “Exilado metafísico”,
“Traidor Modelo”, “Homem-fora-de-tudo”: longe de serem signos do
ressentimento, são as expressões de uma paixão inextinguível do
despojamento, da precariedade, da insegurança, da nudez interior, a
despeito de si mesmo. Cioran sonha em “abandonar tudo sem saber o que
representa esse tudo; isolar-se de seu meio; repelir – por um divórcio
metafísico – a substância que te modelou, que te cerca e que te
sustenta.” (Breviário de decomposição) Não há debilidade aqui,
senão volúpia e entusiasmo, uma paixão violenta – e liberadora – da
negação como forma de “pensar contra si”, para acertar-se consigo mesmo.
E o Japão? Mencionei a figura ascética do sannyasin,
que não se restringe ao Japão, nem ao budismo (pertence também ao
hinduísmo). Mas há outro elemento inerente à cultura japonesa que se
relaciona ainda mais diretamente ao significado existencial do Mendigo
no Ocidente na visão de Cioran. Não se sabe se ele tinha conhecimento
deste fenômeno tipicamente japonês, mas é certo que teria lhe
interessado sobremaneira: Jōhatsu, que significa “pessoas
evaporadas”, “sumidas de repente”, não mortas, não desaparecidas por
sequestro ou outro crime não solucionado. Há um filme japonês de 1967,
intitulado Ningen Jōhatsu (“Um homem esvanece”), e um livro francês sobre o tema, cujos autores passaram anos investigando: The Vanished: The “Evaporated People” of Japan in Stories and Photographs (2016), de Léna Mauger e Stéphane Remael.
Trata-se, literalmente, de desaparecer
sem deixar rastros, a exemplo do relato de Cioran sobre o Mendigo que
lhe prestava visitas. Não se sabe que fim levou aquele amigo do filósofo
de Rășinari. Qual terá sido o motivo do seu sumiço? Chateou-se com Cioran? Achou que zombava dele? Jōhatsu
é um problema social sério no Japão. Uma das principais causas da sua
escolha é a vergonha pela humilhação. Muitos costumam desaparecer caso
percam o emprego, fracassem no casamento ou contraiam uma dívida que não
possam pagar. Estas pessoas abandonam as suas velhas identidades para
começar uma nova vida a partir do zero, no anonimato, invisíveis, em
suas novas identidades falsas, aos olhos dos que ficaram para trás.
Não é o caso de romantizar o que é triste e lamentável. O que é precioso a respeito do jōhatsu
não é a prática em si, mas o que ela pressupõe historicamente em termos
morais e espirituais. Cioran amava o budismo e, se há uma religião que
ele teria abraçado, caso tivesse vocação para aderir ao que
quer que seja, seria esta. Sua “inaptidão orgânica” para a fé não se
aplica somente ao cristianismo; ela o impede de converter-se a qualquer
religião. Como Nietzsche, ele considera o budismo uma religião mais
evoluída, e mais refinada, em termos práticos, do que cristianismo.
Jesus mesmo não entra em questão; a crítica volta-se à igreja, à
religião instituída e traduzida na história: “Toda religião que faz
pacto com a história distancia-se das suas raízes. Tal é o caso do
cristianismo que, na origem, estava impregnado de renúncia, mas, na
sequência, verdadeira traição, transformar-se-ia em religião
conquistadora” (Entrevistas com Sylvie Jaudeau).
Em Le mauvais démiurge (1969),
ele afirma que o cristianismo peca por “assimilar a divindade a uma
pessoa”, preconizando a ideia de um “Deus pessoal” que te conhece e se
importa com você, enquanto individuo singular e especial. “É lamentável,
é degradante assimilar a divindade a uma pessoa. Esta jamais será uma
ideia nem um princípio alheio para quem pratica os Testamentos. Vinte
séculos de altercações não se esquecem da noite para o dia” (Le mauvais démiurge). Eis, segundo Cioran, a causa do apego ao “eu” (ego),
do antropocentrismo, do especismo, do titanismo galopante do Ocidente.
Ateísmo, niilismo: consequências da tendência a preencher a ideia de
absoluto com um conteúdo humanizado, já que não podemos admitir que o
Essencial não tenha nada a nos dizer, nada com que possamos nos
identificar, enquanto pessoas, sujeitos, humanos demasiado humanos. A entrevista a Sylvie Jaudeau serve de comentário à passagem de Le mauvais démiurge:
“Mesmo o descrente aspira a conversar com o ‘Único’, pois não é fácil se relacionar com o nada. O budismo elude essa dificuldade, pois não está baseado, como o cristianismo, no diálogo. Deus não lhe é necessário. Só conta a consciência do sofrimento. Essa forma de espiritualidade é a mais aceitável para uma humanidade assombrada pela ruína mais ou menos iminente.” (Entrevistas com Sylvie Jaudeau)
Cioran simpatiza com o cristianismo, ou
qualquer religião, até quando deixa de preconizar a renúncia e o
despojamento para tornar-se um poder temporal instituído, e um sistema
fechado. “A teologia é a negação de Deus”, escreve o jovem autor de Lacrimi şi sfinţi (1937) nos cumes de uma crise religiosa marcada pela tentação da santidade. E prossegue:
“Que ideia descabelada a de buscar argumentos para provar sua existência! Todos os seus tratados valem menos do que uma exclamação de Santa Teresa. Desde que a teologia existe, nenhuma consciência ganhou com ela uma só certeza, pois a teologia não passa da versão ateia da fé. O menor balbucio místico está mais próximo de Deus que a Suma Teológica. Tudo o que é instituição e teoria deixa de estar vivo. A Igreja e a teologia asseguraram a Deus uma agonia duradoura. Só a mística o reanima de tempos em tempos.” (Lacrimi şi sfinţi)
Além da mística, onde mais Cioran
descobre um vislumbre da divindade? Na música (e em especial a de Bach,
“geradora de divindade”), a arte afirmativa, criadora por excelência, na qual não entra nem um pingo de ceticismo, nem de cinismo (cf. “Música e ceticismo”, Breviário de decomposição).
Negando todo fundamento racional à existência de Deus, ele revela o seu
lado fideísta. Se o fideísmo e o racionalismo foram considerados
historicamente duas heresias e ameaças diametralmente opostas à doutrina
cristã, poder-se-ia talvez conceber a atitude fideísta como uma
tendência antirracionalista ou irracionalista em matéria de teologia, em
matéria da relação entre fé e razão. Ou no minimo cética. A razão
desmente Deus; Deus humilha e aniquila a razão, não submetendo-se às
suas leis e exigências.
Voltemos ao Mendigo que visitava Cioran.
Ele não levou a sério a afirmação de que era o maior filósofo de Paris
naquele momento de dúvida. Talvez estivesse demasiado convencido de sua
insignificância, talvez não pudesse adivinhar a personalidade
“heterodoxa” do interlocutor estrangeiro. Que ele de fato valorizasse a
indigência, que se lamentasse por não poder despojar-se de tudo para
buscar o deserto ou o monastério, que preterisse as respostas à busca
infinita, as certezas à Dúvida, tendo escrito: “Entrego-me ao prazer de
estar desenganado; acima da Dúvida só coloco a satisfação que
proporciona…” (Breviário de decomposição) O filósofo sem
respostas, instalado em sua pequena mansarda na rua l’Odéon, lhe era tão
insondável quanto o Mendigo o era para o anfitrião. Ali estava alguém,
aquele homem cheio de dúvidas sobre Deus, a matéria, a morte, o mal, sem
saber que as respostas para suas questões estavam na experiência
concreta e vivida de suas dúvidas mesmas, na vertigem do pensamento que
busca infinitamente sem alcançar nada de definitivo, nada de último.
Tanto o mendigo quanto o sannyasin representam o oposto da figura em pauta em um dos ensaios de História e utopia,
“Escola de tiranos”. Um e outro encontram-se nas antípodas daquele que é
tentado a ser “o primeiro na cidade”; inclinam-se antes encarnar a
existência do último homem, o avesso do homem político, ambicioso, conquistador, manipulador, no limite um tirano:
“Para tornar-se um homem político, isto é, para ter as qualidades de um tirano, é necessário uma perturbação mental; para deixar de sê-lo, impõe-se outra perturbação: não se tratará, no fundo, de uma metamorfose de nosso delírio de grandeza? Passar da vontade de ser o primeiro na cidade à de ser o último nela, é substituir, através de uma mutação do orgulho, uma loucura dinâmica por uma loucura estática, um gênero de insanidade tão insólito quanto a renúncia que o precede, e que tendo a ver mais com o ascetismo do que com a política, não faz parte de nossos propósitos.” (História e utopia)
O homem é tão inapto a estar satisfeito
de si quanto de estar sozinho e, mais do que isso, saborear a solidão, o
solilóquio. Fernando Pessoa, no Livro do desassossego, escreve
que “se não podes estar só, nasceste escravo.” É na solidão que se
alcança o outro em profundidade, naquilo que possui de essencial
(palavrinha de Cioran). E Cioran: “A única experiência profunda é a que
se realiza na solidão. Aquela que resulta de um contágio permanece
superficial — a experiência do nada não é uma experiência de grupo” (Entrevistas com Sylvie Jaudeau).
Felicidade e liberdade são praticamente excludentes. A exemplo da lenda
do “Grande Inquisidor”, as pessoas optam em grande parte dos casos pela
primeira termos em detrimento da segunda. A História, Queda no tempo,
é a história de nossos fracassos no absoluto, de nossa sempiterna
inapetência à realização. “A história, espaço onde realizamos o
contrário de nossas aspirações, onde as desfiguramos sem cessar, não é,
evidentemente, de essência angélica. Ao considerá-la, só concebemos um
desejo: promover a agrura à dignidade de uma gnose.” (História e utopia)
Cioran lançou-se loucamente, lucidamente,
em busca da liberdade, mesmo que ela viesse com a vertigem e, talvez, o
naufrágio. Liberdade que confunde-se com um fracasso existencial, senão
metafísico. Liberdade que sempre se acompanha da sombra da ilusão
autoconsciente: “Sinto que sou livre, mas sei que não sou.” Ela
não é conquistada impunemente: é preciso engolir muito sapo, passar por
humilhação, vergonha, passar muito aperto, adaptar-se à precariedade
para mantê-la. Por isso fez o necessário para permanecer incompreendido e
obscuro, sendo fiel à regra de ouro: “deixar uma imagem incompleta de
si mesmo” (Aveux et anathèmes). Por isso também buscou a marginalidade, as periferias, mantendo-se à l’ecart
(“Il faut se tenir à l’écart”, diz Beckett), recusando prêmio atrás de
prêmio (mesmo se viessem acompanhados de milhares de francos), assim
como a celebridade midiática, a fama, o espetáculo literário…
------------------A liberdade é, para mim, o direito de ser herético. Eu não poderia viver num estado no qual vigora uma filosofia oficial; porque sou, por temperamento, um herético, e por isso mesmo um apóstata. A liberdade representa para mim não apenas a possibilidade de pensar diferentemente em relação aos outros, mas também de viver as próprias contradições, com desenvoltura. Onde não há liberdade é melhor ocultar as próprias contradições íntimas, e isso não é bom para o equilíbrio de uma pessoa. Se preferir, a liberdade é, para mim, simplesmente, a única forma de salvação. (Entrevista com Leonhard Reinisch, 1974)
Fonte: https://emcioranbr.org/2018/04/02/cioran-vertigem-da-liberdade/
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