José de Souza Martins*
Na
direita, assim chamada, milhões de brasileiros desiludidos e alienados querem
Lula na cadeia já. Nem mesmo percebem que a Justiça processa Luiz Inácio, não
Lula, que são diferentes personificações do processo político. No extremo
oposto, outros milhões de brasileiros irados e também alienados pressupõem que
crime de esquerda não é crime e querem seu herói livre da possibilidade de
prisão para que volte ao poder.
Entre os
extremos, há o silêncio do processo, quebrado apenas no vozerio dos
julgamentos. A lei, que o sustenta, reconhece, mesmo a quem já condenado em
segunda instância, o direito aos recursos nela previstos. É o mesmo direito que
tem os que urram e berram por soluções extremistas e ilegais. Lei é lei. Berro
é outra coisa, bem aquém da civilidade.
Para
entender este complicado momento da história política brasileira, talvez seja o
caso de reler "O Processo", de Franz Kafka. Luiz Inácio não é Josef
K., a personagem do romance. Mas o é também. No cenário atual, todos somos
Josef K. Todos fomos detidos e acusados naquela misteriosa manhã em que surgiam
as primeiras informações do que veio a ser chamado de mensalão. Porque ou
votamos nele ou não tendo nele votado reconhecemos a legitimidade de seu
mandato. Na democracia é assim: simples e complicada.
Desde
então, todos os dias, como Josef K., quando levantamos e nos preparamos para ir
ao trabalho intuímos que o olho de um poder oculto nos diz que somos o avesso
do que julgávamos ser. Urros e berros das multidões inquietas, de "direita"
e de "esquerda", estão muitíssimo longe do drama político brasileiro
e mesmo do drama pessoal de Lula.
Na pessoa
do ex-presidente, somos interrogados sobre os mistérios do poder. E quanto mais
respondemos, mais nos desculpamos e mais nos sentimos culpados. Falta saber
culpados de quê. Os acusados e condenados da Lava-Jato sabem o que fizeram, mas
os processos caminham com base em evidências indiretas, delações pela via torta
da infidelidade, a obra dos manipuladores ocultos do malfeito.
Lula temeu
a possibilidade desse momento. Revelou seu temor naquele documentário que João
Moreira Salles fez a respeito de sua trajetória. Quando, já finalmente eleito
presidente da República, declarou que queria ter meia hora para refletir sobre
quem seria ele após a Presidência da República.
Ele
intuía, no limiar da travessia, que, do lado de lá, já não seria ele mesmo. De
certinho retrato de pintura acadêmica, sairia como retrato pós-moderno. Tudo
sugere que ele temia o poder, com razão, justamente o contrário de seus milhões
de constituintes, no PT e fora dele, que na alucinação política do mando,
equivocadamente, achavam e ainda acham que o poder, sendo deles, pode tudo. Não
pode.
Estas
horas difíceis, que se iniciaram com o mensalão e tem seu apogeu cada vez mais dramático
na Operação Lava-Jato, mostram que o poder não é a pessoa que o ocupa
transitoriamente. O poder é o conjunto das instituições, das leis, a
Constituição, os códigos, os funcionários da lei. O poder é sempre maior do que
quem se deixa fascinar pela cadeira que o simboliza. O poder é performance e
personificação. Lula está fora do poder, mas ainda se imagina nele, o que nele
dificulta a ação política que dos políticos se espera.
No
entanto, a Justiça vai, lentamente, mostrando-lhe quem manda. No STF vai
ficando claro, também para Lula, que é a Justiça que decide quem ele é. Não a
rua. Mesmo que a Suprema Corte decida que, por enquanto, ele não vai para a
cadeia. Não irá para a cadeia não porque tenha direitos que outros não têm, mas
porque a Justiça está sendo benevolente ao considerá-lo ficção do poder. Mesmo
ganhando, sairá perdendo. Esse é o aspecto doloroso do processo.
A crua
realidade da história faz isso com todos os que um dia são chamados a
desempenhar um papel diferente daquele a que estavam acostumados. Numa sexta-feira
chuvosa de 1889, dia 15 de novembro, dom Pedro II acorda imperador do Brasil e
anoitece prisioneiro, sem destino, sem segurança nem mesmo sobre as condições
de sobrevivência de sua família. Getúlio Vargas, que o PT já execrou e agora
quer imitar, dormiu mal aquela noite de agosto de 1954, mas amanheceu
presidente da República. Antes do café da manhã, do dia 24, estava morto com um
tiro que dera no próprio peito.
Mesmo
absolvido ao fim de um processo judicial que poderá ser longo, Lula estará
condenado. Viverá todos os seus dias até lá temendo que lhe batam à porta, que
o sucessor do japonês da Federal tenha ido buscá-lo. Até esse dia, se ele
chegar, Luiz Inácio terá sido prisioneiro do tormento da incerteza. O condenado
confinado atrás das grades invisíveis do seu próprio medo difuso,
perguntando-se: medo de quê?
-------------------
* José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5434051/o-processo 06/04/2018
-------------------
* José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5434051/o-processo 06/04/2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário