O desespero: forma negativa do entusiasmo.
CIORAN, O livro das ilusõesEntusiasmo (do grego in + theos, literalmente ‘em Deus’), originalmente significava inspiração ou possessão por uma entidade divina ou pela presença de Deus. Atualmente, pode ser entendido como um estado de grande arrebatamento e alegria. Uma pessoa entusiasmada está disposta a enfrentar dificuldades e desafios, não se deixando abater e transmitindo confiança aos demais ao seu redor. O entusiasmo pode portanto ser considerado como um estado de espírito otimista… (Wikipedia)
HÁ PESSOAS CUJA VIDA se realiza sob
formas de uma pureza e de uma limpidez difíceis de imaginar para quem
vive preso a contradições dolorosas e impulsos caóticos. Passar por
conflitos interiores, consumir-se num dramatismo íntimo e viver seu
próprio destino sob o signo do irremediável, atinge um estado de
satisfação e encantamento em que os aspectos do mundo se apresentam
plenos de luz e fascínio. E não seria entusiasmo aquele estado que
reveste os aspectos do mundo com um brilho cheio de seduções e alegrias?
Descrever o entusiasmo significa sublinhar uma forma totalmente
especial de amor, significa individualizar uma maneira de abandono do
homem no mundo. O amor tem tantas facetas, tantos desvios e tantas
formas, que é bastante difícil encontrar um núcleo central ou uma forma
típica de amor. É um problema essencial de toda erótica identificar a
manifestação original do amor, como ele se realiza primordialmente.
Fala-se do amor entre os sexos, do amor pela Divindade, do amor pela
natureza ou pela arte, do entusiasmo como forma de amor etc. Qual seria,
dentre essas manifestações, a mais orgânica, primordial e estrutural?
Tem que existir uma, diante da qual todas as outras dependam ou mesmo
derivem. Não concebo a multiplicidade das formas eróticas sem a
irradiação, sem a fosforescência e o calor central de uma só que, a
feitio de um sol, propaga seus raios, independente da natureza dos
objetos ou do aspecto das formas. Os teólogos afirmam que a forma
primordial do amor é o amor a Deus. Todas as outras manifestações não
passariam de pálidos reflexos desse amor fundamental. Certos panteístas
de tendências estetizantes optam pela natureza, ao passo que certos
estetas puristas optam pela arte. Para os adeptos da biologia, seria a
sexualidade pura, sem afetividade e, para certos metafísicos, a sensação
de identidade universal. Entretanto, nenhum deles será capaz de provar
que essa forma é absolutamente constitutiva do homem, pois ao ongo da
vida histórica ela oscilou e variou tanto, que ninguém hoje pode
determinar com precisão o seu caráter. Considerado que a forma mais
essencial do amor é o amor entre o homem e a mulher, que, longe de se
reduzir à sexualidade, envolve todo um complexo de estados afetivos,
cuja fecundidade é bem perceptível. Quem se suicidou por Deus, pela
natureza, pela arte? São realidades demasiado abstrats para poderem ser
amadas com intensidade. O amor se torna mais intenso ao se conectar ao
individual, concreto e único. Amamos uma mulher por aquilo que a
diferencia no mundo, por sua singularidade. Nada no mundo pode
substituí-la nos momentos de amor extremo. Todas as outras formas de
amor participam desse amor central, embora sua tendência seja a de se
tornarem autônomas. Assim, o entusiasmo é visto como perfeitamente
autônomo em relação à esfera de Eros, quando na realidade ele se
encontra profundamente enraizado na substância mais íntima do amor,
gerando porém uma forma com tendências de emancipação da esfera erótica.
Na natureza interna de todo entusiasta, existe uma receptividade
cósmica, universal, uma capacciade de assimilar tudo, de se orientar em
qualquer direção, a partir de um impulso e de um excesso interior, de
não perder nada e de participar de todas as ações com uma vitalidade
desbordante, que se dispersa na volúpia da realização e na paixão da
ação, no gosto desinteressado da agitação e no culto dinâmico da
eficiência. O entusiasta não conhece critérios, perspectivas e cálculos,
mas só abandono, agitação e devotamento. A alegria da realização e o
êxtase do efetivo são as notas desse homem, para que a vida é um elã
cuja fluidez do vital, cujo impulso imaterial é a única coisa que
importa, é o que alça a vida a aturas onde as forças destrutivas perdem
seu vigor e negatividade. Cada um de nós somos acometidos por estados de
entusiasmo, raros demais, porém, para nos definir. Falamos aqui
daquelas pessoas em quem o entusiasmo predomina, cuja frequência é tão
alta a ponto de constituir a nota específica de uma individualidade. O
entusiasta desconhece derrotas, pois ele não está interessado em
objetos, mas na iniciativa e na volúpia da ação como tal. Ele não se
lança a uma ação por ter refletido sobre sua utilidade ou sentido, mas
porque não pode fazer de outra maneira. Sucessos ou fracassos, se não
lhe são indiferentes, com certeza não o estimulam nem o desencorajam. A
vida e muito mais medíocre e fragmentária, em essência, do que as
pessoas suspeitam. Não seria esta a explicação do fato por que caímos
todos, por que perdemos o frescor de nossas pulsões interiores e nos
encapsulamos, cristalizando-nos em prejuízo da produtividade e do
dinamismo interior? A perda da fluidez vital e desbordante destrói a
nossa receptividade e nossa capacidade de abraçar a vida com elã e
generosidade. O entusiasta é o único que se mantém vivo até a velhice.
Todos os outros, se não nasceram mortos, como a maioria das pessoas,
morrem antes do tempo. São tão raros os verdadeiros entusiastas! É
difícil imaginarmos um mundo em que todos amassem tudo. Um mundo de
entusiastas oferece uma imagem mais sedutora do que a imagem do paraíso,
pois a tensão sublime e a generosidade radical ultrapassam qualquer
visão paradisíaca. A capacidade de renascimento contínuo, de
transfiguração e intensificação da vida faz do entusiasta uma pessoa
permanentemente além das tentações demoníacas, do medo do Vazio e do
suplício da agonia. A vida do entusiasta desconhece o trágico, pois o
entusiasmo é a única expressão de vida completamente opaca para o
fenômeno da morte. Até na graça, forma tão próxima do entusiasmo, esse
desconhecimento, essa negligência orgânica e ignorância irracional da
morte são menos evidentes. As ondulações da graça são por vezes uma
alusão distante ao caráter ilusório da vida. Existe na graça bastante
encanto melancólico; no entusiasmo, não há nada disso. Minha profunda
admiração pelos entusiastas se deve ao fato de eu não conseguir entender
como podem existir semelhantes criaturas num mundo em que a morte, o
Nada, a tristeza e o desespero formam um coro tão sinistro a ponto de
impossibilitar todos os nossos esforços por escutar melodias sublimes e
transcendentes. Existem pessoas que jamais se desesperam: eis um fato
impressionante que dá o que pensar. […]
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