Eliana
Cardoso*
Felícia
se afasta da janela. Tonteia. Perde o chão. Passa os dedos nos olhos e acende a
luz. Abre a blusa na frente do espelho e avalia os dois peitos diferentes e a
cicatriz em forma de meia lua que corta o esquerdo. Tira a blusa e inspeciona a
pelanca pendurada entre o sovaco e o cotovelo. Podia sair na rua, tropeçar na
frente de um carro que voa, levar um tiro. O nome do abismo é sossego. Espia a
sacola de plástico na cadeira. Não é o que procura.
Outra vez
se aproxima da janela e olha o céu de cores lentas. Pensa na princesinha no seu
álbum de retratos, o que foi e nunca mais será, o João que a amou quando
mocinha, o que teve e não tornará a ter. Mistério é continuar a existir e ainda não ser tudo. A luz de muitas qualidades de amarelo esmaece atrás da vaga neblina de fuligem e fecha o intervalo entre dois nadas. Numa pancada negra, a chuva chorona, batendo contra o silêncio da casa fechada, desaba contra a vidraça.
mocinha, o que teve e não tornará a ter. Mistério é continuar a existir e ainda não ser tudo. A luz de muitas qualidades de amarelo esmaece atrás da vaga neblina de fuligem e fecha o intervalo entre dois nadas. Numa pancada negra, a chuva chorona, batendo contra o silêncio da casa fechada, desaba contra a vidraça.
Felícia
se assusta e considera o que está acontecendo com ela: esse vazio, esse tédio,
a insatisfação que não passa, a reconsideração dos erros do passado, esse
desejo de morte. Depressão, diriam muitos. Crise da meia-idade, diriam outros:
sem hora marcada para chegar ela atormenta muita gente depois dos 50.
O abalo
da meia-idade é o tema que Kieran Setiya explora com grande sabedoria no seu
excelente "Midlife: A Philosophical guide" (Princeton University
Press).
Setiya
ensina filosofia no MIT e seu trabalho se concentra nas áreas de ética e
epistemologia. Autor dos livros: "Practical Knowledge", "Reasons
without Rationalism" e "Knowing Right From Wrong", seu
"Midlife" recebeu muitos elogios. Ele descreve "Midlife" como
um livro de autoajuda, inspirado na tentativa de diminuir o próprio
desconforto. Aos 35 anos, insatisfeito, sofrendo de nostalgia, arrependimento,
vazio e medo, via no futuro apenas a aposentadoria, o declínio e a morte.
A
reflexão de Kieran Setiya nos serve a todos. Por que? Não importa a idade,
estamos sempre no meio do caminho de nossas vidas sob a perspectiva de quem
considera o futuro e reflete sobre o passado. Vale a pena viver?
Algumas
pesquisas afirmam que as pessoas ficam mais felizes à medida que envelhecem,
dando credibilidade à visão de Aristóteles de que atingimos a vida plena depois
que o corpo alcança seu apogeu aos 35 anos e a mente encontra seu
desenvolvimento mais completo aos 49.
Outros
estudos afirmam que existe uma "Curva em forma de U" para a felicidade:
somos mais felizes quando jovens, infelizes no meio do caminho e felizes outra
vez na velhice. "A merda acontece na meia-idade", escreve Setiya. O
jovem superestima a felicidade futura, enquanto a pessoa de meia-idade duvida
da possibilidade de ser feliz na velhice. Quem sabe poderíamos evitar crises da
meia-idade calibrando nossas expectativas?
Na
meia-idade também nos perguntamos sobre as escolhas feitas no passado. Setiya
examina sua decisão de se tornar professor de filosofia em vez de médico e
decide que arrependimentos refletem uma apreciação saudável e multidimensional
da nossa história. Mas a possibilidade de uma existência sem perdas tornaria
nossas vidas mais rasas. Por causa do "efeito borboleta", a
alternativa não escolhida implica num mundo que exclui muitas coisas que
valorizamos.
Para
muitas pessoas, a proximidade crescente da morte é a pior coisa da idade.
Setiya sugere a superação do medo da própria morte através da reconciliação com
a morte de um amigo. Considera também o consolo proposto por Epicuro: é
irracional se preocupar com a morte enquanto se está vivo e, uma vez morto,
você já não terá como se preocupar. E lembra a reflexão de Lucrécio: não
conhecemos a vida e a história antes de nosso nascimento e o tempo depois da
morte não deveria nos alarmar mais do que aquele que existia antes do nosso
nascimento. Estou com Lucrécio. E mais. Acredito que, não passando de um átomo
no fluxo inesgotável do universo, o passado está em mim, como estarei nos que
hão de viver no futuro.
Embora
Setiya identifique uma variedade de diferentes crises da meia-idade e uma
variedade de maneiras pelas quais a filosofia pode ajudar a lidar com elas, sua
tese mais fundamental está vinculada à análise de dois tipos de comportamento.
Existem
duas maneiras fundamentalmente diferentes de conceber as atividades em que nos
envolvemos. Muitas vezes as consideramos como direcionadas a um objetivo a
atingir. Acontece que o plano bem-sucedido tem um fim. Tirar uma nota boa em um
exame ou publicar um livro são projetos com conclusão. Nas atividades dirigidas
por um objetivo, você acaba por colocar um ponto final à sua interação com algo
bom, como se fizesse amigos para se despedir deles. A essas atividades Setiya
chama de atividades "telic" (orientadas para a completitude).
Essas
atividades, que constituem grande parte de nossas vidas, têm um lado paradoxal
e autodestrutivo. Por exemplo, você estuda para passar nos exames da
universidade. Há duas possibilidades. Até agora não conseguiu alcançar seu
objetivo, e seu desejo continua frustrado. Ou conseguiu passar nos exames, e
deixando de ter um propósito, sente tédio. Desta forma, segundo Arthur
Schopenhauer, estamos condenados a oscilar entre a dor do desejo insatisfeito e
o tédio de sua satisfação.
O
reconhecimento desta verdade deprimente é um elemento central na crise da
meia-idade. Mas não estamos condenados a esse destino, diz Setiya. Pois nem
todas as atividades são "telic". Muitas atividades não são
direcionadas para a conclusão de alguma tarefa ou para a realização de um
objetivo. Se posso caminhar para colocar uma carta no correio, também posso
simplesmente caminhar, dando um passeio, sem nenhum objetivo. Nesta atividade
"atelic", posso encontrar valor no que estou fazendo, sem conceber
esse valor como dependente de um fim além da própria atividade.
É possível
colocar a maioria de nossas atividades sob uma perspectiva "telic" ou
"atelic". Posso ver a atividade de escrever esta coluna com o
objetivo de publicá-la ou posso vê-la como oportunidade para a valiosa
atividade de pensar sobre a vida, uma atividade que não termina com a
publicação da coluna. Desta forma, a resposta ao desespero de Schopenhauer
seria uma mudança de perspectiva: apreciar o valor "atelic" de cada
atividade e, assim, viver no presente.
É verdade
que todo ser humano se encontra entre o passado e o futuro, mas a deliberação
sobre o futuro domina a juventude, e o exame do passado, a velhice. Por isso,
seria na meia-idade que a consciência da dupla temporalidade se faz mais presente.
Essa consciência pode desencadear uma crise. A crise, portanto, revela que as satisfações
da juventude e da velhice podem ser ilusórias. Tais satisfações "dependem
da falta de consciência da natureza da vida presa no fluxo do tempo", diz
o professor de filosofia da Universidade da Califórnia, Karl Schafer, (na sua
resenha de "Midlife" no Los Angeles Review of Books).
Neste
caso, continua Schafer, a pergunta que Setiya de fato tenta responder não é se
vale a pena viver, mas como podemos entender o valor da vida dada que ela é
passageira. A avaliação na maturidade da natureza da vida, presa entre o
nascimento e a morte, nos deprime. Neste caso, a receita "viver no
presente" lembra as ilusões saudáveis da juventude: uma técnica para
evitar a verdade trágica da nossa existência; uma forma de viver, não com a verdade,
mas apesar da verdade.
Schafer
pode estar certo e, ainda assim, "Midlife", sendo leitura leve, é ela
mesma boa terapia. Setiya combina acuidade, franqueza e humor. Enriquece seus
argumentos não apenas com a contribuição de filósofos como Aristóteles e
pensadores, como Schopenhauer e Montaigne, mas também com os achados de poetas
e romancistas, como Philip Larkin, Virginia Woolf e Kurt Vonnegut. Difícil
encontrar um filósofo capaz de escrever um livro tão breve e atraente. Talvez
Felícia encontre ali a saída que procura.
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*Eliana
Cardoso, economista e escritora, escreve no jornal Valor Econômico.
E-mail:eliana.anastasia@gmail.com
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5434027/meia-idade 06/04/2018
E-mail:eliana.anastasia@gmail.com
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5434027/meia-idade 06/04/2018
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